Li desenfreadamente as últimas páginas de “O Vale da Paixão”, de Lídia Jorge. O romance, escrito em 1998, foi galardoado com vários prémios. Muito justamente, aliás. “O Vale da Paixão” é uma história complexa de várias paixões. É a escrita de uma história de amor e ressentimento entre uma filha e um pai, a quem se obrigou a tratar por tio.
A narradora coloca-nos no momento final da história. É muito curioso que Lídia Jorge se tenha inspirado na “Aparição”, de Vergílio Ferreira, autor, aliás, pelo qual ela nutria admiração. Nenhum mal. Em “Aparição”, o autor começa e finaliza o romance com a seguinte frase: «Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro».
Em “O Vale da Paixão”, escreve a narradora ao início «E foi assim que aconteceu». É partir deste momento temporal que, em analepse, ela conta toda a história. O momento do discurso é, aliás, profusamente recordado ao longo da narrativa, já que se repete insistentemente: «Conto-o para que Walter saiba» ou «Lembro-o para que Walter, esta noite, saiba» ou simplesmente, «esta noite».
E qual é a história deste fascinante romance? O livro dá-nos o retrato impressivo de uma família rural algarvia. A acção desenrola-se na aldeia de Valmares ou São Sebastião de Valmares, uma campina entre a serra e o mar. É a história da família Dias, à volta do patriarca, Francisco Dias, mas, no fundo, no fundo, a personagem principal há-de ser o filho mais novo, Walter Dias, o rebelde.
Walter Dias, qual bandoleiro, há-se incendiar a campina, despertando amores e ódios. Numa das suas aventuras, ainda antes de sair de Valmares, engravida uma rapariga, mas entretanto é enviado para a tropa e prefere ir para a Índia cumprir serviço militar do que regressar à aldeia e casar.
Ema Baptista há-de casar com o filho mais velho, Custódio, para ser salva a honra do clã Dias. Há-de nascer uma rapariga, a narradora do romance, que participa como personagem (inominada). Simplesmente, a filha ou a sobrinha.
Walter Dias corre o mundo, mas, de tempos a tempos, regressa a Valmares. Só desejado por alguns, é um desassossego. Ema Baptista fica doente de cama, durante vários dias, quando ele parte. Para a filha, de quem nunca se sabe o nome, Walter é o Sol, «vejo-o como uma luz». Também ela, como a mãe, não suportou a partida. Ela tinha querido que ele a levasse a correr mundo, «mas eu ainda desci, ainda me coloquei no caminho. Ainda pûs o meu corpo diante das rodas e ele ainda saiu do carro».
A filha de Walter gostaria de ter sido uma imitação do anjo rebelado. Ele era um sedutor, mas errava pelo mundo. Depois de 63, ele nunca mais voltou a Valmares.
Com o tempo, ela percebeu que não podia continuar a viver se não "aniquilasse" a vida de Walter. Começou o trabalho de traça, de espia.
Foi assim que ela iniciou um texto sobre Walter Dias. Uma espécie de catarse. Escreveu três narrativas para o atingir. O objectivo seguinte era entregar-lhe as narrativas em mão, cara a cara. Mas como? Nem sequer sabia onde ele se encontrava. As investigações foram demoradas mas acabaram por ser fornecidas pela Embaixada da Argentina. Walter encontrava-se, desde 81, nas terras do Fim do Mundo.
Finalmente, estava frente-a-frente com o homem sedutor. Ele leu, mas não gostou. Ficou em fúria, - «Fora, fora!» - disse ele. Não gostou de ouvir as verdades. Mas a filha, de quem não se sabe o nome, encontrava-se finalmente pacificada.
Anos mais tarde, há-de receber a notícia da morte de Walter Dias e, dias depois, um pacote postal. No interior do embrulho, uma manta e no meio desta uma tarjeta escrita: - «Deixo à minha sobrinha, por única herança, esta manta de soldado». A manta estava muito surrada, mas limpa. Era do tempo do soldado recruta Walter Dias, no RI 16, em Évora, em 45, na véspera de ele embarcar para a Índia.
A filha de Walter há-de encontrar um palmo de terra, entre as árvores do jardim da casa, para fazer, ela mesma, uma cova para enterrar a manta. Não chega ao fim, porém. Serenamente, Custódio chega junto dela e tira-lhe a enxada das mãos e ele mesmo empurra a terra, acama-a e alisa-a.
A manta está finalmente enterrada. A manta é grande metáfora da viagem, da grande viagem do «trotamundos”.
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