terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Então vamos, disse Fernando Pessoa



« […] Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, E estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The God of the Labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera. »

É assim que acaba “O Ano da Morte de Ricardo Reis” Quando faltavam duas páginas, tive de o fechar, porque pensei: “O que vou fazer para o resto da minha vida, quando este livro se acabar”.

Há livros que me acontece isto. “O Ano da Morte de Ricardo Reis” é um deles.

domingo, 29 de dezembro de 2013

O Ano da Morte de Ricardo Reis (respigo)


«[…] E pronto, a não ser que queira que lhe leia as desordens e agressões, o jornal está lido, Que horas são, Quase meia-noite, ih, como o tempo passa, Vai-se embora, Vou, Quer que o acompanhe, Para si ainda é cedo, Por isso mesmo, Não me compreendeu o que eu disse é que ainda é cedo para me acompanhar lá para onde eu vou, Sou apenas um ano mais velho que você, pela ordem natural das coisas, Que é a ordem natural das coisas, Costuma-se dizer assim, pela ordem natural das coisas eu até deveria ter morrido primeiro, Como vê, as coisas não têm uma ordem natural. Fernando Pessoa levantou-se do sofá, depois abotoou o casaco, ajustou o nó da gravata, pela ordem natural teria feito ao contrário, Então cá vou, até um dia destes, e obrigado pela sua paciência, o mundo ainda está pior do que quando o deixei, e essa Espanha, de certeza, acaba em guerra civil, Acha, Se os bons profetas são os que já morreram, pelo menos essa condição está do meu lado, Evite fazer barulho quando descer a escada, por causa da vizinhança, Descerei como uma pena, E não bata com a porta, Fique descansado, não ecoará o som cavo da tampa do sepulcro, Boas noites, Fernando, Durma bem, Ricardo. […]»

José Saramago, in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Diálogos Poéticos: Camões & Pessoa

Eis aqui se descobre a nobre Espanha, 
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo senhorio o glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lhe não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.

Com Tingitânia entesta, e ali parece
Que quer fechar o mar Mediterrano,
Onde o sabido Estreito se enobrece
Co'o extremo trabalho do Tebano.
Com nações diferentes se engrandece,
Cercadas com as ondas do Oceano;
Todas de tal nobreza e tal valor,
Que qualquer delas cuida que é melhor.

Tem o Tarragonês, que se fez claro
Sujeitando Parténope inquieta;
O Navarro, as Astúrias, que reparo
Já foram contra a gente Mahometa;
Tem o Galego cauto, e o grande e raro
Castelhano, a quem fez o seu Planeta
Restituidor de Espanha e senhor dela,
Bétis, Lião, Granada, com Castela.

Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros

Luís de Camões, “Os Lusíadas", Canto III, estrofes 17-21

















A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal


Fernando Pessoa, “Mensagem”.

É curiosa a forma antropomórfica a que os dois poetas recorrem para falar da Europa. Simbolicamente, põem-na a olhar em determinada direcção. A dúvida que se coloca é se eles olham na mesma direcção.

Pessoa devia conhecer bem estes versos do Camões. Embora não se saiba quando foi escrito o poema "O dos Castelos”, assim se chama, ele só ficou conhecido em 1934, quando Pessoa o escolheu para encabeçar o conjunto de poemas históricos a que veio a dar o nome de Mensagem.

Os versos do Pessoa são bem claros. É caso para dizer que ele, logo no primeiro poema da Mensagem, diz ao que vem. O papel de Portugal na Europa, O Quinto Império. 

A diferença que eu supostamente encontro entre os dois é a seguinte. Camões está concentrado, quase exclusivamente diria, na exaltação dos feitos dos portugueses no Oriente, portanto, virado a Sul. Pessoa, falando do que os portugueses foram capazes, constata que Portugal está num impasse, jaz (tal como a Europa). Todavia, há dentro dele forças que o podem tornar a cabeça de um novo império, O Quinto Império. Não através das armas, como antigamente, mas através da Cultura e da Língua. Camões fala-nos só do passado. Pessoa fala do passado a pensar no futuro. E pensando no futuro, mais virado para Ocidente.

Aliás, penso que a terceira estrofe do poema do Pessoa diz tudo: “Fita, com olhar esfíngico e fatal/o Ocidente, futuro do passado”. Olha para o Ocidente e constrói no futuro o passado (não o presente) que já  foi.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Votos de Bom Natal!...


Alegrem-se o céu e a terra
Cantemos com alegria
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Maria.

Votos de Bom Natal!

domingo, 22 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...

Natal de Quem? 

Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.

- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!
- Está bem, eu sei!
- E as garrafas de vinho?
- Já vão a caminho!

- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?
- Não sei, não sei...

Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.

Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!

Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.

E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.

A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!

Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:
- Foi este o Natal de Jesus?!!!

João Coelho dos Santos - in Lágrima do Mar - 1996

sábado, 21 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...

Poema de Natal

O meu presépio não tem Estrela
nem pastores
nem Reis Magos
e não há musgos verdes e macios
sobre a rocha da gruta.
O meu Presépio não tem flores de papel
nem bonecos de barro
nem casinhas de cartolina.
E não há espelhos a fazer de lagos
nem farinha branca a traçar caminhos.
O meu Presépio não tem luzes de mil cores
nem Anjo de asas de renda
nem um Menino Jesus a sorrir para mim.
Assim era outrora
o meu Presépio na sala toda iluminada
no tempo em que eu usava bibe cor-de-rosa
e duas tranças morenas.

O meu Presépio
agora
tem o tamanho do mundo inteiro
e não tem luzes de mil cores
nem estrelas no azul
e não há bonecos de barro
nem anjos de asas de renda,
mas há noites de angústia
e manhãs sem esperança
em casas feitas de lata,
em casas feitas de caniço.
E há crianças sujas
com um sorriso triste
que me faz doer.
Pudesses voltar!,
Menino Jesus do meu Presépio de criança.

Leonilda Alfarrobinha, in Antologia de Poemas de Natal, de Paula Mateus

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...









Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

Álvaro de Campos, Antologia de “Poemas de Natal em Busca”, de Paula Mateus

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...


Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei !

Fernando Pessoa

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...


Natal

Mais uma vez, cá vimos
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!

Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, ─ do fundo
Da miséria que somos.

Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos ─ não uma vez, mas cada ─
Teus assassinos.

À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.

Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infame.

Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.

Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.

Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.

Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, ─ e te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa Tudo que lhe ofereces?

Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos cala a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!


José Régio

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...


Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei !


Fernando Pessoa

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Anagramas com Literatura


As obras anagramadas pedidas no último passatempo são as seguintes:
“A Cidade e as Serras “, de Eça de Queiroz
“Para Sempre” de Vergílio Ferreira
“Em Nome da Terra”, de Vergílio Ferreira,
“ O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago


Agradeço as respostas que recebi, através do email e no Facebook, de: Manuel Amaro, António Monteiro, Arnaldo Sarmento, Emanuel Magno, Elizabeth Sá e Pedro Varandas, todos com respostas certíssimas, assim como de Manuel Caleiro (excepto à 3ª obra) . Uma palavra de agradecimento, também, para os que resolveram e não comentaram. Obrigado a todos! Não tenho prémios para atribuir. Deixo a minha amizade.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...



Em tempo e memória

A um simples aceno
a vida nasce:
cobrem-se de orvalho
e de flores
nossos dedos.

Nós que nascemos
para a luz deste mundo,
para o voo subtil
dos pássaros mais altos,
de pálpebras abertas,
mudos, nos olhamos,
nos reconhecemos
e amamos
sobre a face da terra.

Albano Martins

sábado, 14 de dezembro de 2013

Porquê eu?

Porquê? Eu, que não procuro palco. Eu, que gosto de estar no meu cantinho. Eu, que sempre fugi dos holofotes. Eu, que sempre me tenho agachado no momento de subir. Eu, que tantas vezes fui ridículo em público. Eu, que sei que nisto não tenho par neste mundo. Porquê eu? 

Então, era eu, entre tanta gente sábia, o iluminado, o eleito para o discurso? Porquê eu? 

Vem aí o Natal!...

Último poema

É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...


«[…] A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:
— Oh mãe! Jesus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
— Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
— Mãe, eu queria Ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
— Aqui estou.»

Eça de Queiroz, “O Suave Milagre” (excerto), in Contos

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...

«[…] E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.
E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.»


Sophia de Mello Breyner, “Os Três Reis do Oriente” (excerto), in “Contos Exemplares”

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!...

NATAL 

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirasse daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver. 

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe em cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra dum borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nuncamais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta, passava das quatro. E, como anoitecia cedo, não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer.Importava-lhe lá

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa... 

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama! 

Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. caiados, os penedos lembravam penitentes. 

Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças! 

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver em ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois dum clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos, é que não. 

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel. 

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao Céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. 

- Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. 

Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo. 

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de se cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra, e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. 

- É servida? 

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também. 

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia dum patriarca. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José. 


Miguel Torga, in Novos Contos da Montanha

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Vem aí o Natal!....

Voto de Natal

Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida ...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
Ó calor destas mãos nos meus dedos tão frios!
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos.

David Mourão-Ferreira (1960)

Anagramas de obras de escritores portugueses

Mais um desafio. São quatro obras anagramadas de escritores portugueses. A primeira, de um escritor do séc. XIX; a segunda e terceira, ambas de um escritor do séc. XX; a quarta, de um escritor também do séc. XX.


Recebo soluções até ao próximo dia 13, através do meu chat do Facebook ou para este email: boavida.joaquim@gmail.com. A partir do dia seguinte, apresentarei a solução, assim como o nome dos decifradores.

domingo, 8 de dezembro de 2013

A Cidade e as Serras


O romance “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queiroz, foi publicado em 1901, um ano depois da sua morte, romance que ele desenvolveu a partir do conto “Civilização”, datado de 1892. É um romance ao longo do qual Eça de Queiroz ironiza ferrenhamente os males da civilização, fazendo o elogio dos valores da natureza.

O romance é escrito na primeira pessoa, como a maioria dos romances de Eça de Queiroz. Zé Fernandes é, neste caso, o contador da história; é um narrador participativo.

É considerada uma obra das mais significativas deste escritor. Nela, ele relata a travessia de Jacinto, um ferrenho adepto do progresso e da civilização, da cidade para as serras. Ele troca o mundo civilizado (Paris), onde impera o progresso tecnológico, pelo mundo natural (Tormes), selvagem, primitivo e pouco confortável, no sentido dos bens que caracterizam a vida urbana moderna, mas onde encontra a felicidade, mudando radicalmente de opinião.

O protagonista faz uma viagem, da cidade para as serras, o que representa, ao mesmo tempo, um percurso interior. Em Paris, no Palácio 202, rodeado de todos os luxos, mergulhado numa biblioteca em que repousavam mais de trinta mil livros, Jacinto carregava o pessimismo às costas. “Sua Excelência sofre de fartura!”, sentenciou, um dia, o criado Grilo.

Depois, em Tormes, o protagonista, Jacinto, irá buscar a síntese, ou seja, o equilíbrio, que vem da racionalização e da modernização da vida no campo. “Sua Excelência brotou!”, declarou, desta vez, o venerando preto. O criado Grilo era muito perspicaz, era um óptimo observador, e tinha estas sínteses extraordinárias.

É sabido que Eça não teve tempo de rever esta obra, como tanto ele gostava de fazer. Uma parte, foi revista pelo seu amigo Ramalho Ortigão e a parte final é apenas e tão só o manuscrito que o Eça deixou escrito. Já agora, pergunto eu, a razão pela qual Ramalho Ortigão não fez o trabalho até ao fim? A edição que possuo tem 247 páginas, sendo que o Eça fez a revisão até à página 159, ou seja, apenas 65% da obra. Eu penso que a obra se ressente com isso. O romance, a partir da última página revista pelo autor, perde força.

Se eu tivesse que escolher o capítulo da obra que me deu mais gozo ler, não hesitava um minuto. É o Cap. VIII. Nele estão escritas das páginas mais belas da literatura portuguesa. A chegada à estação de Tormes, o chefe Pimenta, condiscípulo de Zé Fernandes em Retórica, no liceu de Braga; o desaparecimento das 23 malas trazidas de Paris, onde o Jacinto pensava transportar o 202 para a serra; a subida da serra bendita, “Que beleza”, murmurava Jacinto adiante, na sua égua ruça; aquele arroz de favas ao jantar, “deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!”; e, à noite, para dormir, uma enxerga de granito e uma camisa da mulher do Melchior, áspera como uma estamenha de penitente. São páginas inolvidáveis!

Só para ler estas páginas, vale a pena revisitar o livro. É o que eu faço…e muitas vezes. E seguir o conselho de Jacinto. Um dia, estando ele na biblioteca com o seu amigo Zé Fernandes, este, perante a imensidade de livros, disse não contendo a sua admiração:
-Oh Jacinto, que depósito!
Jacinto murmurou, num sorriso descorado:
- Há que ler, há que ler….

Belo conselho, digo eu. Enquanto tenho livros para ler, nunca me sinto só.

Nelson Mandela e a Rendição de Breda


Este é um dos célebres quadros de Velásquez que representa a rendição de Breda, nos Países Baixos. O general espanhol Ambrósio de Spinola, comandante das tropas de Felipe II, recebe das mãos de Justino de Nassau, defensor de Breda, as chaves da cidade, que capitula depois de uma resistência intrépida. 

O quadro é um exemplo de como se devem comportar vencedor e vencido no momento da rendição.

Lembrei-me dele a propósito de Nelson Mandela. Já tudo está dito sobre o homem, e do político que também foi. Por mim, sobrestimo, inspirado no quadro de Velásquez, a sua capacidade de perdoar aos seus adversários, incluindo os próprios carrascos. Mandela sabia que só no perdão, no gesto magnânimo, se encontra a verdadeira e duradoura redenção humana.

Ou, ainda, como diria a nossa Sophia, “Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos/A paz sem vencedor e sem vencidos”.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Palavras-Cruzadas com História - Eça de Queiroz

“Zé Fernandes” é o nome do personagem que era pedido no final da resolução do passatempo de Palavras Cruzadas, de 3/12/2013. Zé Fernandes é o contador participativo da história do seu amigo Jacinto de "A Cidade e as Serras".

Para que conste, e com a devida vénia, junto a solução que me foi enviada pelo Paulo Freixinho, e que está, claro, certíssima.
Agradeço as respostas que recebi, através do email e no Facebook, de: António Monteiro, Arnaldo Sarmento, Emanuel Magno, Filomena Alves, Elizabeth Sá, João Alberto Bentes, Paulo Freixinho e Pedro Varandas, todos com respostas certíssimas. Obrigado a todos! Até ao próximo!

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Palavras-Cruzadas com História-Eça de Queirós

Hoje, foi dia de, na companhia dos meus amigos das leituras, revisitar “A Cidade e as Serras”, do Eça de Queirós.

Por isso, o desafio que aqui deixo é o seguinte: Resolver este problema de Palavras-Cruzadas e, a final, encontrar, na diagonal, o nome de um personagem do livro (2 palavras).



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HORIZONTAIS: 1 - Contagiar; Demónio. 2 – Ataviei; Debruar. 3 – Zircónio [símbolo químico]; Cena pungente; Sociedade Anónima [abreviatura]. 4 – Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de ar; Transpirei. 5 – Corda de rebocar. 6 – Lenda; Casas. 7 – Igual; Desgraça; Magoe. 8 – Tímida [figurado]; Instrumentos musicais de sopro, de madeira, em forma de tubo troncocónico, com palheta dupla e chaves. 9 - Liso; Empunhais. 10 – Continuar; Festa cristã que se realiza todos os anos e que comemora o nascimento de Jesus Cristo; Catedral. 11 – Tabernas imundas.

VERTICAIS: 1 – Fruir; Cidade onde morreu o escritor Eça de Queirós. 2 – Interjeição que exprime impaciência, aborrecimento ou irritação; Eliminar. 3Fazenda Nacional [sigla]; Dores na região dos rins. 4 – Poeta e cantor ambulante entre os Gregos antigos; Senhorio. 5 – Gracejar; Agarra; Prefixo que exprime a ideia de movimento. 6 – Tempo que a Terra gasta para dar uma volta em torno do Sol; Submeta. 7 – Qualidade; Flauta; Prata [símbolo químico]. 8 – Fúrias; Projéctil metálico, esférico ou alongado, próprio para ser disparado por arma de fogo. 9 – Outra coisa [antiquado]; Pruridos. 10 – Qualidade; Ecoeis. 11 – Rogais; Queimes.

Clique Aqui   para ver e imprimir.

Recebo soluções até ao dia 6 de Dezembro, as quais devem ser enviadas para boavida.joaquim@gmail.com. No dia seguinte, apresentarei a solução, assim como os nomes dos decifradores. Com muita pena minha, não tenho prémios para dar, mas deixo a sugestão de lerem o livro. Aconselho vivamente.