quinta-feira, 24 de maio de 2012

A velha senhora que receitava poesias

A última revista LER-Livros & Leitores, da Bertrand, traz um artigo de José Eduardo Agualusa que conta a história de uma velha senhora que receitava poesias. 

Encantamentos

No primeiro dia de setembro de 2010 entrei na Livraria da Travessa, no Leblon, no momento em que o poeta Ferreira Gullar apresentava Em alguma parte alguma. As cadeiras estavam todas ocupadas. Havia dezenas de jovens sentados no chão. No momento em que me sentei, uma moça ergueu a mão:

- Para que serve a poesia?

Esta é uma daquelas questões que, cedo ou tarde, todos os poetas enfrentam. A resposta mais frequente, mais filha de imaginação e de verdade, assegura que a poesia não serve para nada. Alguns poetas, em especial os portugueses, acrescentam a seguir que também a vida não serve para nada, etc.
Felizmente, Ferreira Gullar tinha uma boa resposta. Muitos anos antes, exilado no Chile, durante o Governo de Salvador Allende, costumava almoçar, aos sábados, com um grupo de outros expatriados sul-americanos. Ao seu lado, sentava-se habitualmente um economista argentino, namorado de uma bela morena brasileira. O economista não tinha outro assunto que não fosse o da sua especialidade.

Até que um dia a morena o abandonou. No sábado seguinte o economista chegou triste e desmazelado. Sentou-se, e só falou de poesia. «Quando a morena vai embora», concluiu, triunfante, Ferreira Gullar, «a economia não serve para nada. Nenhuma ciência nos ajuda. Só a poesia nos pode salvar». Na origem, a poesia era uma disciplina da magia. Servia para encantar. Continua a ser assim, embora, no sentido literal, poucas pessoas ainda exercitem essa antiquíssima arte. Uma tarde, em Benguela, conheci uma das derradeiras praticantes. Almoçava com amigos, e amigos de amigos, num desses quintalões aniigos, carregados de frutos, e de boa sombra, da cidade das acácias rubras.

A determinada altura escutei um sujeito referir-se a uma tal Dona Aurora:

- A velha receita poesias.

- Recita - corrigi.

O homem, um oficial do exército, encarou-me, irritado:

- Não senhor! Receita! Dona Aurora receita poesias. Resolve problemas de amor, amarrações, mau-olhado, tudo com versinhos.

Fiquei interessado. Anotei o endereço da curandeira num guardanapo e na manhã seguinte bati-lhe à porta. Dona Aurora morava na Restinga, num casarão, em madeira, muito maltratado. A velha senhora, miúda, muito magra, vestia de cor de rosa. Toda a sua força parecia residir na cabeleira, a qual mantinha uma vigorosa rebeldia juvenil. Convidou-me a entrar. Móveis dos anos 50, muito gastos. Estantes carregadas de livros velhos. Aproximei-me. Poesia, e mais poesia: Florbela, Camões, Vinicus, José Régio, Sophia, Drummond, Manuel Bandeira, tudo misturado, num bem-aventurado desrespeito a fronteiras politicas, estéticas e ideológicas. «O meu marido sempre gostou de poesia», justificou-se: «Eu, menos. Foi só depois dele morrer, há 30 anos, que descobri o poder dos versos

Acontecera um pouco por acaso — contou. Uma tarde deu-se conta de que certos sonetos parnasianos (os mais trabalhosos) a ajudavam a vencer a insónia. Mais tarde, que João Cabral de Melo Neto, a partir de «O cão sem plumas», era muito eficaz no combate à cefaleia. Pouco a pouco foi desenvolvendo um método. Combatia a prisão de ventre lendo alto a Sagrada Esperança. Mantinha o quintal livre de ervas daninhas, percorrendo-o, ao crepúsculo, enquanto soprava devagar «O guardador de rebanhos».

Numa cidade pequena não tardou que tais excentricidades lhe trouxessem, primeiro inimigos, e depois devotos seguidores e pacientes. Hoje, ela recebe a todos, ricos e pobres, na sala onde me recebeu a mim. Ouve as suas queixas, levanta-se, percorre as estantes, e regressa com a solução. «Quem me procura mais são mulheres querendo reconquistar o coração dos maridos. Recomendo que lhes murmurem, enquanto dormem, algum Neruda, às vezes Camões, outras Bocage

Dona Aurora não aceita dinheiro pelos serviços prestados. «Não sou eu quem cura», explicou-me, «é a poesia». 

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