sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Pessoa e Ofélia, um namoro difícil

Manuela Parreira da Silva é a autora do livro CARTAS DE AMOR DE FERNANDO PESSOA E OFÉLIA QUEIROZ. A autora é professora auxiliar do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa e há muito que voltou suas atenções para o estudo do espólio de Fernando Pessoa. Depois de ter publicado Realidade e Ficção - Biografia Epistolar de Fernando Pessoa (em 2005) reuniu agora num só volume a correspondência entre o poeta e a única namorada que se lhe conhece: Ofélia Queiroz. Publicado pela Assírio & Alvim, o livro é surpreendente, mesmo para quem julga saber quase tudo sobre o autor da Mensagem. Podemos ler, a seguir, a entrevista que esta estudiosa portuguesa concedeu, em Lisboa, a um jornal do Brasil.

Com que imagem a senhora fica da relação entre Pessoa e Ofélia após a reunião das cartas num só volume? É diferente da que tinha antes?
Ler as cartas em sequência cronológica permite ter uma ideia muito mais aproximada do que teria sido, de facto, a relação amorosa de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. É como se tivéssemos nas mãos um romance epistolar, em que os dois protagonistas dialogam, combinam encontros, lamentam os desencontros, manifestam, sem pudor, a saudade, o desejo e confrontam dúvidas, expõem incompatibilidades, escondem e desvelam inquietações. A uma carta segue-se a resposta, mas, por vezes também, o silêncio do outro (quase sempre o dele). Outras vezes, a uma carta segue-se outra do mesmo remetente, escrita na pressa da paixão (sobretudo a dela) ou há duas cartas que se cruzam no tempo e criam equívocos. Enquanto leitores, podemos, de facto, acompanhar o dia a dia do casal de namorados, e imaginar mesmo, nas entrelinhas, aquilo que não é possível ser presenciado (lido) por se ter passado, por assim dizer, fora da cena epistolar.

O que a levou a fazer essa "reunião"?
A reunião das cartas teve em vista, por um lado, uma maior facilidade de manuseamento das que tinham sido publicadas em volumes separados e, por outro lado, ter uma melhor percepção do envolvimento de cada um dos interlocutores nessa relação de que a sua escrita dá conta. Reunindo as cartas, que se sucedem quase sempre em alternância, podem compreender-se melhor certas afirmações de um ou de outro, certas frases tidas por enigmáticas.

Com que retrato ficou da figura de Ofélia?
A ideia que eu tinha sobre Ofélia confirma-se: era, sem dúvida, uma jovem de feitio alegre e expansivo, carinhosa, insinuante e até um pouco atrevida nas suas manifestações amorosas. Se atendermos a que estamos em 1920-1929, numa época em que o feminino estava sujeito a uma grande pressão social, Ofélia surge como uma mulher de espírito aberto, trabalhando fora de casa e dispondo-se a sair sozinha (ainda que, às vezes, às escondidas) com um homem mais velho, seu namorado. Embora revele alguns preconceitos, vê-se que eles são mais fruto de uma imposição familiar do que do seu natural. Ofélia não estaria, obviamente, à altura intelectual de Fernando Pessoa, mas era, sem dúvida, uma mulher inteligente, capaz de entrar, por exemplo, no seu jogo heteronímico e de compreender e aceitar o fato de ele ser alguém fora do comum.


E no contexto da biografia de Fernando Pessoa, que "peso" ou importância teve este namoro?
Relevante é, acima de tudo, a obra. E a obra de Fernando Pessoa é tão diversificada e de tanta qualidade, tão estimulante e luminosa que poderíamos prescindir da sua biografia. Curiosamente, é quando a obra de um autor se impõe de uma forma tão intensa, que começa a tornar-se quase inevitável querer conhecê-lo de corpo inteiro. Quem se escondia ou esconde, afinal, por detrás deste autor múltiplo e paradoxal? É aí que entra a pesquisa sobre a vida "real" do autor empírico. Ora, no caso pessoano, esta relação amorosa, sendo a única que se lhe conhece (vagamente, sabe-se que a irmã terá tentado aproximá-lo de uma inglesa, cunhada de um dos irmãos de Fernando Pessoa, Madge Anderson, que esteve em Lisboa, nos anos 30. Ele não se terá manifestado muito interessado. No entanto, os dois correspondem-se. Existe, pelo menos um postal de Madge, referindo um livro que Pessoa lhe terá enviado e mostrando uma forte simpatia), não pode deixar de "pesar". Serve, certamente, para desmentir a ideia de que Fernando Pessoa carecia de uma grande sensibilidade e seria incapaz de se relacionar com uma mulher. Estas cartas demonstram o contrário. E este namoro terá sido uma lufada de ar fresco numa vida que o próprio, por vezes, confessa, ser marcada pela solidão.

A biografia de Fernando Pessoa é um continente misterioso para o investigador? O que sabemos concretamente?
O que sabemos é pouco e é muito. Pouco, porque sempre sabemos tão só uma ínfima parte do que é uma pessoa. E muito, porque, sobretudo nos últimos anos, com o cada vez maior conhecimento do seu espólio, se têm desfeito alguns equívocos que a primeira biografia de João Gaspar Simões (feita numa altura em que ainda estava muito perto a data da morte do poeta, ocorrida em Lisboa, no mês de Novembro de 1935) tornou inevitáveis. Gaspar Simões introduziu a ideia de que Pessoa vivera com dificuldades económicas, entregue à bebida. Isso foi desmentido pouco tempo depois num livro escrito por um primo do escritor, Eduardo Freitas da Costa, que desmontou as "imaginações" do citado biógrafo. Mais recentemente, um volume de escritos autobiográficos, editado pelo norte-americano Richard Zenith, trouxe bastantes esclarecimentos sobre a vida verídica do poeta. Aliás, ficou a saber-se, por exemplo, que, como afirmara o primo, Fernando Pessoa tinha, à data da morte, uma empregada, espécie de governanta, a D. Emília a quem devotava grande estima, ao ponto de desejar obter o lugar de conservador da Biblioteca-Museu Conde de Castro Guimarães (em Cascais) para poder, entre outras coisas, prover às necessidades económicas dessa senhora e da filha. Eu própria tinha recenseado uma carta de Pessoa, de 1918, em que refere a D. Emília e a filha, Claudina, que terá conhecido numa casa onde viveu (pertencente a Manuel António Sengo), num quarto alugado. Também, a partir do trabalho de Richard Zenith, foi possível já corrigir datas, nomeadamente de empreendimentos pessoanos, como a sua tipografia Íbis (comprada em 1909 e não 1907). Recentemente, a polémica que tem visado uma obra (designada de "quase autobiografia") de José Paulo Cavalcanti Filho (publicada no ano passado no Brasil pela editora Record) tem demonstrado os graves erros que contém e que, infelizmente, leva a criar nos mais incautos uma imagem completamente deturpada de Pessoa. Este é um mau serviço prestado ao poeta. Espero que surja, em breve, uma verdadeira biografia (no sentido de ser feita a partir de uma verdadeira investigação), que lhe faça justiça e não caia na tentação de construir um Fernando António Nogueira Pessoa à imagem e semelhança do biógrafo.


E o seu espólio é, de facto, praticamente inesgotável?
Não diria inesgotável. Há um número limitado de documentos… O que pode ser inesgotável é, naturalmente, aquilo que se pode fazer com esses documentos, como aquilo que se pode fazer com a sua obra. Há ainda muito para fixar e decifrar nos seus papéis. A principal dificuldade, creio eu, é a de que é necessário que os investigadores estejam apetrechados de instrumentos de conhecimento adequados e não caiam no erro fácil de agarrar uma meia dúzia de documentos e editá-los descontextualizadamente, correndo o risco de confundir textos próprios e alheios, confundindo apontamentos ou citações de outrem com textos do próprio. Depois, há temas tratados por Pessoa de forma fragmentária que precisam de ser dominados também pelos investigadores, sem o que não se aperceberão do seu real valor ou da sua originalidade, ou sequer a que conjunto pertence. O aliciante, no entanto, para quem frequenta o espólio, é saber que é preciso nunca dar por adquirido aquilo que exige um contínuo estudo e entrega pessoal.

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