Acabei de lei “A Máquina de Fazer Espanhóis”, de Valter Hugo Mãe. Como ele disse, é uma homenagem ao seu pai, falecido 10 anos antes, no abraço apertado de um cancro. Narra a história de António Jorge da Silva, um barbeiro de 84 anos que, depois de perder a mulher, passa a viver num asilo. Para lá, leva o fado, o futebol e uma imagem da Nossa Senhora de Fátima (“a mariazinha”). Mas lá cabem mais coisas. É um romance sobre a velhice, o definhamento do corpo humano, a morte. Fala-nos ainda do amar demais, do salazarismo e das santinhas da nossa devoção. Há ainda espaço para figuras reais, como o conservador do Museu Nacional de Arte Antiga, Anísio Franco, para polícias ficcionais (Jaime Ramos do escritor Francisco José Viegas) e para uma personagem pessoana (o Esteves sem metafísica, esse mesmo, o da “Tabacaria”).
A personagem do romance é, em certa medida, um herói, porque resiste. É ainda a prova que é possível aprender aos 84 anos, que é capaz de sofrer pelos outros. Como, por exemplo, pela morte do Esteves sem metafísica, seu companheiro no Lar Feliz Idade (uma metáfora da morte?), que o havia conquistado pelo lado da poesia.
A temática do livro não é original. Vergílio Ferreira abordara o mesmo tema, "Em Nome da Terra", escrito em 1989, livro que António Mega Ferreira disse, já mais que uma vez, gostaria ter escrito. VF conduz, claro, a narrativa com uma "mão" que o VHM ainda não tem.
De todo o modo, Valter Hugo Mãe consegue autonomizar a sua narrativa, durante a qual vai deixando a uma forte crítica à sociedade em que vivemos: a futilidade daqueles que apenas lêem pasquins, revistas cor-de-rosa ou jornais desportivos; a glória fantasiada do Benfica (aqui concordo inteiramente); o fascismo que nos está entranhado na alma, que se vê na forma como idolatramos políticos com pés de barro e, ao mesmo tempo, esperamos por um qualquer D. Sebastião salvador e redentor; o sistema capitalista feito de chicos-espertos que continuam a sugar o sangue e o suor do povo.
Foi o primeiro livro que li de Valter Hugo Mãe. Está escrito numa prosa a que Saramago nos habituou, o que, claro, não me perturbou absolutamente nada. Saramago definiu o livro como um “tsunami linguístico, semântico e sintáctico”. Eu não diria tanto, mas quem sou para contrariar o nosso Prémio Nobel.
É um retrato delicado e sensível da terceira idade, com o que acarreta de ideias confusas sobre o passado e sobre o presente. Vale a pena ler.
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