sábado, 15 de fevereiro de 2014

De Lídia Jorge para Clarice Lispector


Lidia Jorge escreveu este prefácio para o livro "Laços de Família", de Clarice Lispector. No final, reconhecida, agradece a Vergílio Ferreira por lhe ter dado a conhecer a escritora brasileira.

«Para Clarice Lispector

Entre nós, poucos são aqueles que têm de Clarice outra referência que não seja o nome, e no entanto, trata-se de um dos mais singulares escritores da nossa língua. As razões deste clamoroso desconhecimento não podem deixar de se inscrever na contenciosa fraternidade que existe entre Brasil e Portugal e que leva a que, salvo raras excepções, as ligações em Cultura se produzam pelas cinturas mais frágeis ou já canónicas. No caso de Clarice, porém, a sua obra tarda de modo inusitado a chegar até nós e por duas razões — a primeira é que Clarice Lispector deixou há muito de ser um escritor de pequenos grupos aficionados para ser, no Brasil, uma referência obrigatória caída no domínio público universitário que a cada hora a faz e a refaz de análises e suposições teóricas. A segunda razão de estranheza prende-se com o facto de que, sendo Clarice parente legítima da dispersão de Pessoa, não tenha aproveitado da onda irreversível em que se vai espalhando a fama do poeta português. Que resistam, pois, outras culturas como a francesa a deixar-se emocionar com a prosa de Clarice, ainda se entende. Entre nós, que nem se conheça por quase impublicação, é incompreensível. Sobretudo porque quem leu sabe que a prosa de Clarice assenta em uma daquelas raras escritas da qual se sai diferente quando uma vez lá se entrou, como se ela mesma fosse e contivesse em si a oferta de uma revelação surpreendente e por vezes devastadora. Deve-se dizer quando se oferece ou empresta Clarice Lispector — Protejam-se contra a tortura da beleza.

Ou mais propriamente, protejam-se contra a beleza da tortura. De facto, as páginas de Clarice, longas ou breves que sejam, incomodam a ponto de doer e ao mesmo tempo empurram para a escrita como única forma de compreender e existir. Ou melhor, têm a qualidade próxima da que se reconhece em Faulkner, em Virginia Woolf, em Joyce ou em Kafka, para falar apenas dos seus quase irmãos de tempo literário e parentes na condição de alma. Isto é, contém um mistério que permanece para além de tudo o que na escrita é decifrável e que chama com uma voz parada e luminosa para um estado de alma próximo do êxtase manso, ou ele mesmo. Sem pretender brandir o ferro da importância e dos papéis que cada um tem no Mundo, devo dizer mesmo que reivindico para Clarice, como para nenhum dos outros atrás citados, a capacidade de desencadear o manso e o violento que acontece a partir do limiar onde a linguagem se enaltece antes da ficção. Porque disso se trata — os seus textos, longos, breves ou fragmentários, falam de uma experiência inefável em que a escrita surge como salvação, e por isso, o seu jogo é esplêndido, humilde e derradeiro. Tão derradeiro que dispensa a alegoria e a metáfora, a ficção dispensa a ficção. Quem uma vez se deixou revestir do olhar que dimana da prosa de Clarice compreende como a escrita pode ser a vida, muito mais do que ela, nunca parte dela. Essa, de todas, a melhor revelação. O sentimento de que quem assim escreveu o fez deforma absoluta leva a que ninguém se surpreenda, quando antes da biografia se conheceu a obra, que dez meses antes da morte, em Fevereiro de 1977, Clarice tenha declarado numa entrevista que cedeu à TV Cultura de São Paulo — «Quando não escrevo, estou morta.» E que tenha terminado o diálogo com o jornalista declarando — «Neste momento estou morta. É do meu túmulo que vos falo.» Naturalmente que teria de ser assim. Estamos perante a vida do escritor perfeito, aquele para que muitos tendem mas poucos alcançam, o que não tem a ver com a vontade.

Mas se o halo da sua misteriosa singularidade se desprende de toda a obra por inteiro — e cada um vê-lo-á como entenda e possa —, não é nos romances que lhe deram mais fama que Clarice melhor me abre a sua porta. Pelo contrário. Sem pretender diminuir de modo algum a revelação que pode constituir Perto do Coração Selvagem, seu romance de estreia, ou A Maçã no Escuro ou ainda A Paixão segundo G. H., é no fragmento que a sinto revelada, melhor encontro a sua arte poética e o espanto da existência, no fundo, as duas matérias compulsivas da sua Arte. Suponho mesmo que Clarice pertence àquela categoria de escritores para quem o fulgor é encontrado em breves momentos sem antecedente nem consequente, ainda que múltiplos e repetidos, sendo os romances tentativas de conjugar parcelas que não precisariam de ser emparceladas para constituírem totais. Mas Clarice quis que se juntassem em parábolas sem espessura para que o fossem. Aliás, também na insistência da junção dos pequenos incidentes autónomos Clarice se aproxima da sua quase contemporânea Virginia Woolf, tal como na tentativa de os fazer convergir e os fazer unir literariamente. Essa tentativa em Clarice desprende-me por vezes o gosto da leitura. No fragmento não. Em cada um ela é inteira, não dizendo em três linhas menos do que se diria em dez páginas, e no entanto revelando o mundo. E de três linhas a crónica intitulada A Experiência Maior e diz tanto, que mais sobre a ficção não se pode dizer:

“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.”

Escrevendo como escreveu, a sua escrita não poderia deixar de criar resistência. Então o confronto entre o contar e o apenas dizer era uma contenda e Clarice não pôde afastar-se do dilema. Mas colocou-se do lado certo, isto é, do seu próprio lado, o que é uma felicidade para a escrita e para o escritor, já que a perdição acontece exactamente quando esse encontro não se produz. Mas Clarice achou--se. Ela repousa na palavra de Alberto Dines — As histórias não têm desfecho — exactamente para abrir uma das suas fulgurantes histórias sem desfecho que constitui o texto inqualificável Onde Estivestes de Noite e que dá o título à publicação onde se encontra. De facto, não tem desfecho. Porque precisaria de ter se se trata de uma oração maligna sobre o imponderável da beleza e da perfeição que o ser andrógino experimenta no cimo da montanha? O mesmo se pode dizer sobre O Ovo e a Galinha, nono conto-crónica de A Legião Estrangeira, centrado no mistério do ovo, texto tão místico e inqualificável que haveria de levar Clarice a lê-lo num congresso de bruxaria em que representou o seu país.

Às vezes, porém, esses textos inqualificáveis que tanto removem são contos. Laços de Família, obra com que na prática se inicia a publicação de Clarice Lispector entre nós, é um conjunto de treze contos surgidos no Brasil em 1960, e contém alguns dos traços que esse género costuma ter. Tem personagens, tem aventura, acidentes e desfechos. Só que neles, tanto quanto nos romances, os personagens começando por ser comuns, logo se revelam incomuns, avançando como se não tivessem olhos para ver, e quando quisessem ouvir não tivessem ouvidos. Ou inversamente, se têm ouvidos não têm sons, e se têm olhos não há paisagem que se veja. Quando acontece a coincidência, e é por escassos instantes, a visão produz-se, dá-se a fulminação e a matéria ficcional sucede. É por esses momentos de excepção do conhecimento que laboram os personagens e em torno deles labora a peripécia, que, aliás, não é mais do que uma reviravolta interior acompanhada pela raiva, o ódio ou a náusea diante da abertura no escuro, ou dela decorrendo em marcha inversa. Trata-se de contos sobre a aventura do conhecimento no sentido menos cartesiano possível, acontecido portas adentro do familiar, até se chegar, em última instância, à poderosa visão do nada. Não admira, pois, que se evoque Sartre e La Nausée quando se deseja entender Laços de Família, obra onde se encontram alguns dos mais célebres contos brasileiros, como é o caso de O Búfalo, O Jantar, Feliz Aniversário e sobretudo Amor, narrativa que se tornou de leitura obrigatória para quem se inicie na compreensão do processo Epifânio de Clarice. É justo que se evoque certo modo existencialista de questionar o ser e o não ser, mas, retomando Sartre, onde o autor francês fica pela demonstração, Clarice Lispector cria uma apoteose mística e pagã sobre a marcha da descoberta. Essa a primeira das incomparáveis diferenças.

Claro que toda a obra vive do influxo do seu tempo histórico e a prosa de Clarice não se mantém asséptica em relação ao mundo mental em que viveu e, por isso, com alguma facilidade se pode integrar a autora de A Maça no Escuro no quadro de certo simbolismo e certo decadentismo. Também se pode aproximá-la do metamorfismo de Kafka, do psicologismo brutal de Joyce ou do enfoque microscópico de Virginia Woolf, ou ainda da transversalidade temporal de Faulkner. Pode-se. Clarice, porém, fica para além das leituras que tenha feito, revelando uma originalidade pessoal tão intensa quanto cada um dos outros autores isoladamente a revelou também. Singularidade que teria levado a que já na adolescência Clarice escrevesse contos que começavam naturalmente por «Era uma vez. . .» para logo interromper e terminar — «... Meu Deus.»

Ao Vergílio Ferreira, que me deu a conhecer Clarice.

Lisboa, 26 de Novembro de 1989


LÍDIA JORGE»

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