sábado, 25 de abril de 2015

Liberdade

(Ilustração: Liberdade/Vieira da Silva/Abril1974)

Liberdade


— Liberdade, que estais no céu... 
Rezava o padre-nosso que sabia, 
A pedir-te, humildemente, 
O pão de cada dia. 
Mas a tua bondade omnipotente 
Nem me ouvia. 

— Liberdade, que estais na terra... 
E a minha voz crescia 
De emoção. 
Mas um silêncio triste sepultava 
A fé que ressumava 
Da oração. 

Até que um dia, corajosamente, 
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, 
Saborear, enfim, 
O pão da minha fome. 
— Liberdade, que estais em mim, 
Santificado seja o vosso nome. 

Miguel Torga, in Diário XII, Albufeira, 28 de Agosto de 1975

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Vagão J

Re(visitei), de rajada, o romance "Vagão J", de Vergílio Ferreira. O ano de publicação que consta é 1946, mas não sei se o livro chegou a estar à venda. Não passou na Censura.

E este é o despacho de 9 de Março de 1947, a proibir a sua publicação. Vem na primeira página de uma reprodução fac-similada, da iniciativa do jornal "Público", que, em boa hora, promoveu a sua publicação, a par de outras obras de outros autores, no ano passado.


A fundamentação do relator é incompreensível, pouco inteligente. Um texto acabrunhante!

Por comodidade, (re)li o romance por uma edição impressa pela Editora Arcádia, em Janeiro de 1974. O prefácio é do próprio autor, um longo prefácio, escrito em Lisboa, em 18 de Outubro de 1971.

O autor explica as razões porque não faz correcção alguma, «...obviamente essa obra é mais do público do que nossa, obviamente essa obra deve, pois dar-se como fixa.». Justifica ainda, «Não se renegam assim esses livros, como se não renega um filho que nos nasceu aleijado...».

Este romance foi escrito quando Vergílio Ferreira navegava ainda em águas do Neo-Realismo. Escreve ele ainda no dito prefácio, «...em que fiz a minha tarimba de escritor...E a escolher um livro
dessa fase para que ela de novo existisse, este seria sem dúvida o mais plausível ou o menos rejeitável.»

Vergílio Ferreira escreveu a seguir, em 1949, o romance "Mudança", que é considerada a obra que marca a sua transição para o Existencialismo.

Saiu e bateu a porta com força. Nunca lhe perdoaram! 

terça-feira, 21 de abril de 2015

Palavras Cruzadas com história - Júlio Dantas

"Outros Tempos" é o nome do livro do escritor português Júlio Dantas, que era pedido com a resolução do problema do passado dia 1 de Abril.

E a solução completa do passatempo é esta:


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Recebi respostas de: Aleme, Anjerod, António Amaro, Arnaldo Sarmento, Bábita Marçal, Baby, Caba, Corsário, El-Nunes, Horácio, Jani, João Alberto Bentes, João Carlos Rodrigues, João Rodrigues, Joaquim Pombo, José Bernardo, Mafirevi, Magno, Manuel Amaro, Manuel Caleiro, Manuel Carrancha, Mister Miguel, Olidino, Osair Kiesling, Paulo Freixinho, Raquel Atalaya, Ricardo Campos, Russo, Salete Saraiva e Virgílio Atalaya.

Um agradecimento especial ao meu amigo Manuel Amaro que me honrou com a sugestão para o passatempo deste mês. 

Grato a todos por participarem. Até breve!

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"O Meu Irmão" não merecia...


Já li "O Meu Irmão", de Afonso Reis Cabral, há algum tempo e estive a pensar antes de vir aqui falar sobre o livro. Estou ainda aqui a indeciso sobre se é, ou não, um bom livro.  O livro foi uma surpresa, que chega, de forma brutal, no final. Um autêntico soco no estômago.

Perante a descrição da sinopse que li, eu esperava um livro sobre a Trissomia 21, um livro que me falasse das limitações e das dificuldades do irmão com esta condição, assim como da vida familiar, das adaptações forçadas, do sofrimento, e, por experiência própria, da eventual desestruturarão da família.

Afinal, enganei-me rotundamente. O narrador (um narrador participativo) dá-nos um retrato objectivo, muitas vezes até cruel e impiedoso. E tem duas partes distintas.  As primeiras 300 páginas um bocadinho difíceis de transpor, embora, aqui e ali, abanados com a forma brutal como o Professor trata o irmão Miguel. Mas, diga-se em abono da verdade, também com bons nacos de prosa. Para um primeiro livro, para um livro de formação, o prémio é merecido.  

As últimas 60 páginas são alucinantes, de violência, de suspense. Uma grande surpresa. Eu não vinha preparado para isto, como disse um ex-Primeiro Ministro ao sentir-se apertado numa entrevista na RTP1.

O Professor não aceita a relação do irmão Miguel com Luciana, também deficiente. E porquê? Não se percebe. Por motivo médico? Por ética? Por ciúme? Este parece o mais plausível. O Professor tenta, a todo o custo, separar o irmão Miguel da  Luciana, indo ao ponto de o tirar da Escola que ambos frequentavam. Não vai a bem, vai a mal.

Veio-me à cabeça o desfecho que o seu genial antepassado escolheu para final de "O Crime do Padre Amaro", mas, atenção, na 1ª Edição (1875). Como se sabe, este romance teve 3 edições (1875, 1876 e 1880), todas bem diferentes. 

Afinal, o autor não resistiu a inspirar-se no seu trisavô. 

Tanto num caso, como noutro, a solução passa pela eliminação física, com as próprias mãos, da pessoa que está a ser o empecilho à relação (Amaro/Amélia ou Professor/Miguel). Pode ser uma suposição ousada, mas não encontro outra.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O que nos acontece depois da morte?

Acabei de ler "Lugar Caído no Crepúsculo", de João de Melo, que mão amiga me pediu para eu ler. O que nos acontece depois da morte? Esta é a pergunta implícita ao longo das páginas deste romance. Esta é a pergunta que persegue o Homem desde o dia inicial.

Em entrevista concedida ao JL, em Outubro de 2014, refere ele que dedicou este livro à sua mãe, recentemente falecida, contando a última conversa que teve com a mãe, "Como é que será depois de fecharmos os olhos?", perguntou-lhe a mãe. "Será que Deus está lá à minha espera?", questionou-se. "Tenha esperança, continue a acreditar", respondeu o escritor, embora a sua fé tenha há muito entrado em crise.

O autor guia o leitor numa viagem pelo outro lado, uma viagem ao Além, cruzando o Limbo, o Purgatório, o Paraíso e o Inferno. Com uma abordagem distinta dos conceitos tradicionais, o narrador humaniza a linguagem cristã, tentando conferir-lhe uma realidade mais próxima do mundo e da vida. 

O autor interroga-se e obriga o leitor a questionar-se. Faz perguntas mas não encontrou muitas respostas. Por isso, no fim há uma grande decepção. A alma do primeiro personagem procura o seu lugar mas não o encontra. «Não existindo Limbo, nem Purgatório, nem Paraíso, nem Inferno, e sendo Deus e o Diabo entidades apenas imaginárias, símbolos do Bem e do Mal - que fazia a lama no espaço da luz perpétua, enquanto o corpo baixava à terra?».

«Sempre é preciso acreditar em alguma coisa», pensou ela (a alma), ao ver que acontecia nas duas margens, a do mundo terreno e a do Além.

O narrador volta ao conselho que deu à sua mãe, na hora da morte, "Tenha esperança, continue a acreditar". Entre a Fé e a Dúvida, também penso que o melhor é agarrarmo-nos à Fé, pelo menos, tem mais força, para citar Manoel de Oliveira, que partiu há poucos dias.

domingo, 12 de abril de 2015

Fialho de Almeida, o herói alentejano

Hoje apetece-me falar de um escritor que não admiro especialmente. Tem muitos admiradores, escrevia muito bem, mas não me é simpático. Uma prosa cheia de sarcasmo, inveja, insídia...

Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades em 1857 e veio a falecer na localidade de Cuba, onde foi sepultado. 

Quis passar a ideia, no livro "À Esquina”, que nasceu pobre, mas não é verdade. Era filho do professor primário da terra e a mãe tinha propriedades. O pai queria que ele fosse boticário como o tio Valentim. Veio estudar para Lisboa, para o Colégio Conde Barão, um do mais prestigiados da capital. Durante 4 anos. Depois esteve empregado num farmácia. Foi ajudante de farmácia durante 7 anos, penosos e longos anos. Disse horrores desses tempos. E brincava com os clientes. É ele que conta: um dia, um homem foi à farmácia e pediu um remédio contra a traça que tinha em casa. «Leva naftalina», disse o Fialho. «E como se faz?», perguntou o cliente. «Homem, é fácil...você põe-se à porta de casa e, quando vem entrar uma traça, atira-lhe com uma bola de naftalina e mata-a!» É ele que conta. Um brincalhão, este Fialho...

Entretanto, o pai morreu e a mezada, agora enviada pela mãe, teve de diminuir. Tinha muito talento para escrever, sem dúvida. Com 22 anos, escreveu um livro de contos, com destaque para o conto “A Ruiva”. Uma história tétrica. Uma rapariga virgem que se apaixonava por homens mortos na casa mortuária! 

Em 1891 publicou “Os Gatos”. Fazia critica do que ia acontecendo. Hoje, a crítica tenta compreender e esclarecer. Fialho de Almeida dizia que, se tratava de casos sujos, não podia torná-los limpos. O Professor Costa Pimpão fez um estudo desenvolvido da obra deste escritor e, no final, opinou que o que faltou a Fialho de Almeida foi assuntos.

Fialho de Almeida casou, aos 36 anos, com uma senhora muito rica. Porém, esta morreu ao fim de 10 meses. Fialho não escreveu uma palavra de saudade, nem de nada acerca da falecida esposa. Morreu de tuberculose, quando Fialho estava a termas em Caldas de Felgueiras.

Entre as suas obras mais notáveis, encontram-se "País das Uvas", "Contos" e os já citados "Gatos". Colaborou em diversas publicações periódicas, nomeadamente em jornais humorísticos.

Foi um republicano agressivo. Atacou ferozmente os reis D. Luís e D. Carlos. Adepto do regicídio, inclusive. Escreveu a célebre "Carta a D. Luís sobre as vantagens de ser assassinado" Diz ele, «V.M. tem tudo a ganhar em ser assassinado. Mexa os pauzinhos p´ra isso. despache-se!»

Estranhamente, Fialho de Almeida, em fim de vida, converteu-se ao regime monárquico, no tempo de João Franco. Diz-se que este o terá convidado para Embaixador. O que não veio a acontecer... 

Profundamente desgostoso, refugiou-se no seu Alentejo. Tornou-se lavrador em Cuba, mas continuou a publicar artigos para jornais, e a escrever vários contos e crónicas.  Agora contra a República. 

De todo o modo, em toda a sua obra há um forte sentimento de solidariedade para com os trabalhadores, sobretudo os trabalhadores alentejanos, os ceifeiros em particular. 

Morreu quando regressava das suas propriedades. “Toca as mulas que eu quero morrer em casa”, disse ele para o cocheiro. A história diz que morreu antes de entrar em casa. 

domingo, 5 de abril de 2015

Cristo venceu a morte


«No Domingo de Páscoa tem-se a oportunidade para o ser humano deixar-se ser tocado pelo triunfo de vida sobre a morte. Cristo venceu a morte. Este é um bom dia para se semear uma flor» (Rubem Alves).

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Uma Entrevista Possível


Vinte e sete de Novembro de 1935, quarta-feira. Café Martinho da Arcada, em Lisboa. É quase noite. Fernando Pessoa, depois de um dia de trabalho, está sentado na mesa do costume. Aguarda os amigos Almada Negreiros e Gaspar Simões. Enquanto não chegam, avanço para a mesa e, saltando por cima dos cumprimentos que a ética manda, disparo a primeira pergunta:

O Sr. Pessoa escreveu tantas vezes sobre a morte, sobre o autor que fica depois da morte, como gostaria de ver recordada a sua obra?
Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos – dizem-no vendo o que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (senão eu não citava o que eles dizem…). Mas eu sei ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.


Ainda assim, escreveu muito sobre a morte…
A terra é feita de céu. A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e caminho.


Não chegou a responder-me: como vê a vida para lá da morte?
A morte é a curva da estrada, morrer é só não ser visto.


Considera-se um génio?
Génio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, e a história não marcará, quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicómios há malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 


Sei que tem uma grande admiração por Cesário Verde. Pensa o mesmo do poeta?
Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado de comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que sua, o cheiro da vaidade. O que ele sempre foi, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta. 


Pessoa mostra sinais de agitação. Pigarreia de vez em quando. No corpo pesam as dores de todas as angústias... 


Mora já, há alguns anos, no bairro de Campo de Ourique e trabalha em escritórios da Baixa de Lisboa. Sabendo que o Sr. Pessoa não tem viatura própria, que transporte público utiliza?
Vou num carro eléctrico e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim…Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. 


Pessoa foi baptizado na Igreja dos Mártires no dia 27 de Julho de 1888. Acredita em Deus?
Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo. E entraria pela porta dentro, dizendo-me, Aqui estou!...Mas se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e luar, então acredito nele, acredito nele a toda a hora. E a minha vida é toda uma oração e uma missa. E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 


Sendo frequentador habitual do Café Arcada do Martinho, no Terreiro do Paço, tem por hábito passear junto ao rio?
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.


Pessoa trabalhou em muitos escritórios na Baixa de Lisboa. Recorda algum patrão com simpatia?
O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro côa a saudade que hei-de ter então…Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório dos Douradores…Vejo de lá longe, como o vejo hoje de aqui mesmo – estrutura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias maradas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. 


Quando diz que o melhor do mundo são as crianças, pensa isso assim ou foi apenas para rimar com danças? 
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram ao lixo o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança a chorara, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto.


O que diz agora é verdade ou está a fingir?
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.


Quando revê a sua vida, reconhece-lhe os erros, as opiniões certas antes do tempo, consegue traçar a sua própria trajectória?
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 


Diga-me, Pessoa, sente saudades do seu tempo de infância?
Eu era feliz na casa antiga. Até eu fazer anos, era uma tradição de há séculos. Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma. De ser inteligente para entre a família. E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


E pode descrever essa casa antiga?
Vejo tudo outra vez com muita nitidez, que me cega. A mesa posta, com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos. O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado. As tias velhas, os primos diferentes, e tudo por minha causa! No tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 


O seu namoro com Ophelia Queiroz acabou por ser um desencontro. Nunca levou esse namoro muito a sério. Pelo menos, é o que se conclui da leitura das cartas que escreveu a Ophelia.
Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas. Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.


Para além da Ophelia Queiroz, que até influenciou a sua escrita, não teve lá muitos amores, pois não? Porquê?
Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, e a nós mesmos – que amamos.


Bem, agora vou roubar uma frase ao Adolfo Casais Monteiro: Pessoa, conte lá essa história da génese dos heterónimos.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.


Muito bem, e os outros?
Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase.


Estou a compreender tudo muito bem…
Aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.


E depois de Alberto Caeiro?
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.


E Bernardo Soares quando é que aparece?
O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.


Reparo que o Sr. Pessoa, ao longo desta entrevista, respondeu, muitas vezes, em nome dos seus heterónimos…
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando me for dado o Prémio Nobel. Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente.Sou somente o lugar onde se sente ou pensa. Tenho mais almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo… 


E sua relação com Miguel Torga? Parece que não foi muito feliz...
Recebi uma carta do Adolfo Rocha. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem áspera, nem é propriamente insolente, mas intima-me a explicar a minha carta anterior, diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a respeito do livro dele, explica, em diversos ângulos obtusos, que os intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou. Achei pois melhor não responder. Que diabo responderia? 


Podemos dizer que Mário Sá-Carneiro foi o seu maior amigo, mas morreu prematuramente. É assim?
Morre jovem o que os Deuses amam…Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida…Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida…Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor… Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.


Tem algum mote que o acompanhe?
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.



Chegaram, entretanto, os amigos de Pessoa, Almada Negreiros e Gaspar Simões. Dou por terminada a entrevista, agradeço e saio. Afasto-me, mas fico, por perto, a observar aquela que será a última tertúlia de Pessoa com os amigos. 

Pessoa sai, cambaleia e ri de uma maneira estranha. Caminha na direcção da Rua dos Douradores, se calhar à procura, pela última vez, do rasto de Bernardo Soares.