«[…] Um dia, em conversa com alguns colegas de orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a possibilidade da composição de retratos musicais (...) lembrou-se de dizer que o seu retrato, no caso de existir de facto em música, não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo, mas num brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número nove, em sol bemol maior (...) Quìseram saber porquê e ele respondeu que não conseguia ver-se a si mesmo em nada mais que tivesse sido escrito numa pauta e que essa lhe parecia ser a melhor das razões. E que em cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido. Durante alguns dias, como amável divertimento, os mais graciosos chamaram-lhe cinquenta e oito segundos, mas a alcunha era por de mais comprida para perdurar, e também porque nenhum diálogo é possível manter com alguém que tinha decidido demorar cinquenta e oito segundos a responder ao que lhe perguntavam. O violoncelista acabaria por ganhar a amigável contenda. (…) o violoncelista sentou-se ao piano após uma breve pausa para que assistência se acomodasse, atacou a composição. Deitado ao lado do atril e já meio adormecido, o cão não pareceu dar importância à tempestade sonora que se havia desencadeado por cima da sua cabeça, quer fosse por a ter ouvido outras vezes, quer fosse porque ela não acrescentava nada ao que conhecia do dono. A morte, porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou para o adagio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do violoncelista […]
José Saramago, in "Intermitências da Morte"
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