A roda trituradora põe-se a girar
microfones perguntas entrevistas.
O poema escreve-se enquanto leio
com D.Pedro o elogio do Benefício
quem o pode fazer e quem não pode
e de como Aristóteles recomenda
o necessário entendimento de quem faz
e do estranho capítulo em que os servos
podem dar benefícios aos senhores
ou das obras morais que são exemplos.
Coisas que não preocupam quem rasteja
nos corredores da corte e da intriga
Que lhes importam Aristóteles ou Platão?
O poema escreve-se a lavar a afronta
Com D. Pedro na última partida.
Com D.Pedro escreve-se no conflito
entre o apelo público e a voz de dentro
no desejo de paz e solidão
em Veneza ou Coimbra onde o poema
pode escever-se traduzindo Cícero.
Manuel Alegre, in Sete Partidas (poema 10)
domingo, 29 de novembro de 2015
domingo, 22 de novembro de 2015
Homem de palavra...
D. Pedro, Regente de Portugal
E claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo mais é com Deus!
Fernando Pessoa, in Mensagem
sábado, 21 de novembro de 2015
Palavras Cruzadas com história - Sá de Miranda
"Que farei quando tudo arde?" é o título de um poema do poeta português Sá de Miranda (nascido ainda no séc. XV), conforme pedido com a resolução do Passatempo do mês de Novembro.
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.
Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força, faz, desfaz,
sem respeito nenhum, e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte a razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia.
Então não tem lugar certo onde aguarde
amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
Sá de Miranda
Um dado curioso é que, como certamente os meus amigos deram conta, "Que farei quando tudo arde?" é também o título de um romance de António Lobo Antunes, escritor contemporâneo. O romance foi escrito em 2001, em justa homenagem ao poeta do rio Neiva.
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Recebi respostas de: Aleme; Anjerod; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita; Baby; Caba; Corsário; Elvira Silva; Filomena Alves; Homotaganus; Horácio; Jani; João Carlos Rodrigues; João Marques Nabais; João Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bernardo; José Mendes Grilo; Lindamor; Mafirevi; Magno, Manuel Amaro; Manuel Carrancha; Mister Miguel; Olidino; Osair Kiesling; Paulo Freixinho; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva; Virgílio Atalaya.
Obrigado a todos. Até breve!
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
A Missão
No âmbito de leituras promovida pelo Grupo de Leitura da Casa Roque Gameiro, li de leve "A Missão" de Ferreira de Castro, escrito em 1954.
Tem como pano de fundo a França, ao tempo da Segunda Guerra Mundial, numa aldeia francesa, sobre iminente ocupação alemã. Um grupo de 14 eclesiásticos discute a possibilidade de pintar a cruz, símbolo de Cristo, no telhado do edifício onde está albergado. Ao lado existe um outro edifício, que é igual ao da Missão. É uma fábrica, potencial alvo de ataques aéreos, onde trabalham cerca de 400 habitantes da aldeia. O interesse dos alemães em destruir a fábrica pode pôr em causa a vida dos eclesiásticos. Por outro lado, a identificação e salvação de uns pode comprometer a vida de outros. Baseando-se neste dilema, Ferreira de Castro ensaia um diálogo teológico (uns frades são a favor outros contra) muito interessante.
Ressuma do livro uma ideia fortemente humanista. Ferreira de Castro foi o grande nome da Literatura portuguesa na primeira metade do Sec. XX. Considerado por muito o maior escritor dessa época. Foi, pelo menos, o escritor português mais traduzido no Mundo. Nasceu em Ossela, Oliveira de Azeméis, em 1898 e morreu no Porto em 1974 (vítima de uma embolia). Tinha, então, 76 anos.
Filho de gente pobre. Viviam numa casa arrendada. O proprietário era um Comendador, um emigrante brasileiro que regressou rico e os pais do escritor eram os caseiros. Ferreira de Castro foi bom aluno na escola. Não dava erros no ditado e fazia certinhas aquelas contas enormes de multiplicar e dividir. Uma vez foi escolhido para ir à sede de concelho em representação da Escola e declamou um poema, com muito êxito. Uma festa por não ter acontecido nada no dia anunciado para acabar o Mundo,à passagem do cometa Halley. Foi no ano de 1910 (19 -19 de Maio).
Lia muito bem em pequeno. Inteligente. Nas aulas do Prof. Portela, em vez de prestar atenção à explicação, escrevia versos à Margarida, menina rica da terra. Esta, na posse dos versos, malvada, foi entregá-los ao professor, o qual, embora satisfeito com a veia poética do aluno, o castigou com uma reguada.
Acabada a escola primária, Ferreira de Castro é mandado para o Brasil, onde se encontrava um familiar. Partiu aos 12 anos, no navio inglês “Nave Negra”. Um pequeno navio. Sofreu muito no Brasil. Arranjou um emprego no seringal “Paraíso”. Primeiro mesmo no mato, mas ao fim de 3 meses é levado para os escritórios. Salvou-se com o saber que possuía. Dessa experiência, ele escreveu “A Selva”. Ao fim de 3 anos volta a Belém do Pará, com 40 mil réis. Com 18 anos, em 1916, escreveu “Criminoso por Ambição”. Escreve para jornais lá no Brasil. Nesses 5 anos escreveu alguns livros que, mais tarde, renegou. Os que podia, ele próprio destruía.
Regressou a Portugal em 1919, com 400 mil réis. Viajou num bom vapor e foi até a sua terra, a Ossela. Já não encontrou a Margarida. Morrera, tuberculosa. Esteve hospedado no Hotel “Avenida” em Oliveira de Azeméis, como um senhor rico, o que não era verdade. Vai para Lisboa para fazer pela vida. Escreve para viver. Não teve outra profissão. Até que em 1928 publica “Os Emigrantes” e em 1930 “A Selva”. Este último teve uma grande repercussão não só em Portugal, mas também no resto do Mundo.
Mais tarde, escreveu “A Lã e a Neve” e outros. Escreveu ainda, a pedido do seu Editor, “A Volta ao Mundo”, com base na sua própria experiência.
A sua prosa, impetuosa, que comunga com o leitor, evita os efeitos estilísticos. Uma escrita sóbria, escorreita, correcta, sem grandes esplendores, sem grandes luxos...Uma prosa que brota do coração. Uma literatura de acção. «Ferreira de Castro foi um dos Homens que quiseram transformar o Mundo», dele disse um dia Vitorino Nemésio.
É assim em "A Missão". Um livro equilibrado. Aliás, na prosa de Ferreira de Castro tudo existe nas proporções exactas, sem escassez nem excessos.
E no final da discussão quem ganhou? Foi pintada ou não a cruz no telhado do edifício? Os frades discutiram, cada um apresentou as suas razões, mas levaram demasiado tempo a decidir. Até que a França capitulou e assinou um armistício de paz com a Alemanha. Sim, a palavra "Missão" foi pintada no telhado. As tropas alemãs ocuparam o edifício e a ordem veio do comandante para o superior dos frades: «Mande pintar sobre o telhado a palavra "Missão", pois, sem dúvida, os ingleses hão-de querer bombardear a França...».
Tal com aconteceu com a Queda de Constantinopla, no ano de 1453...
Tal com aconteceu com a Queda de Constantinopla, no ano de 1453...
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
O prazer de reler
Acabei de (re)ler Até ao Fim, de Vergílio Ferreira. Pelas minhas contas, pela quarta vez! E não foi por nenhuma razão especial. Apeteceu-me.
E, todavia, reler não é apenas voltar ao livro. É, para mim, entrar mais profundamente dentro dele. É ser capaz de o observar sem o feitiço do enredo.
Há livros assim. Sucede com Até ao Fim ou Para Sempre ou Alegria Breve ou Memorial do Convento, que resistem a todas as leituras. E, também, com O Ano da Morte de Ricardo Reis, que já li por três vezes. E, se Deus quiser (quer Saramago concorde ao não com o pedido de ajuda divina), voltarei a ler. Há livros assim.
Mas, reler é o quê? Recordar? Redescobrir? Avivar a memória? Confirmar o que julgámos antes? Ou será, simplesmente, uma perda de tempo?
Afinal, que quero eu dizer? É simples: vale mais reler um livro que julgamos conhecer do princípio ao fim (mesmo correndo o risco de não encontrar mais nada do que o que nos apaixonou no passado) do que arriscar uma novidade prometida que acaba no caixote das ideias.
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
A Entrevista Possível
Vinte e sete de Novembro de 1935, quarta-feira. Café Martinho da Arcada, em Lisboa. É quase noite. Fernando Pessoa, depois de um dia de trabalho, está sentado na mesa do costume. Aguarda os amigos Almada Negreiros e Gaspar Simões. Enquanto não chegam, avanço para a mesa e, saltando por cima dos cumprimentos que a ética manda, disparo a primeira pergunta:
O Sr. Pessoa
escreveu tantas vezes sobre a morte, como gostaria de ver recordada a sua obra?
Os meus amigos
dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos – dizem-no vendo o
que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (senão eu não citava o que eles
dizem…). Mas eu sei ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei
eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo
cheire a podridão.
Ainda assim,
escreveu muito sobre a morte…
A terra é feita de
céu. A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e
caminho.
Não chegou a
responder-me: como vê a vida para lá da morte?
A morte é a curva da
estrada, morrer é só não ser visto.
Considera-se um
génio?
Génio? Neste momento
cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, e a história não marcará,
quem sabe?, nem um, nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não,
não creio em mim. Em todos os manicómios há malucos com tantas certezas! Eu,
que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Sei que tem uma
grande admiração por Cesário Verde. Pensa o mesmo do poeta?
Quando Cesário Verde
fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado de comércio, mas o poeta
Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que sua, o
cheiro da vaidade. O que ele sempre foi, coitado, foi o Sr. Verde empregado no
comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer
que nasceu a apreciação do poeta.
Pessoa mostra sinais
de agitação. Pigarreia de vez em quando. No corpo pesam-lhe as dores de todas as
angústias...
Mora já, há alguns
anos, no bairro de Campo de Ourique e trabalha em escritórios da Baixa de
Lisboa. Sabendo que o Sr. Pessoa não tem viatura própria, que transporte
público utiliza?
Vou num carro
eléctrico e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os
pormenores das pessoas que vão adiante de mim…Entonteço. Os bancos do
eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões
distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários,
vidas, realidades, tudo.
Pessoa foi baptizado na Igreja dos Mártires no dia 27 de Julho de 1888. Acredita em Deus?
Não acredito em Deus
porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que
viria falar comigo. E entraria pela porta dentro, dizendo-me, Aqui estou!...Mas
se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e luar, então acredito nele,
acredito nele a toda a hora. E a minha vida é toda uma oração e uma missa. E
uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Sendo frequentador
habitual do Café Arcada do Martinho, no Terreiro do Paço, tem por hábito
passear junto ao rio?
O Tejo é mais belo
que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Pessoa trabalhou em
muitos escritórios na Baixa de Lisboa. Recorda algum patrão com simpatia?
O patrão Vasques.
Lembro-me já dele no futuro côa a saudade que hei-de ter então…Seja onde
estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório dos
Douradores…Vejo de lá longe, como o vejo hoje de aqui mesmo – estrutura média,
atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável
chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias
maradas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as
faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a
horas.
Quando diz que o
melhor do mundo são as crianças, pensa isso assim ou foi apenas para rimar com
danças?
Deus criou-me para
criança, e deixou-me sempre criança. Mas porque deixou que a vida me batesse e
me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão
fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão
acarinhado, porque deitaram ao lixo o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas
ruas uma criança a chorara, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a
tristeza da criança o horror desprevenido do meu coração exausto.
O que diz agora é
verdade ou está a fingir?
O poeta é um
fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que
deveras sente.
Quando revê a sua
vida, reconhece-lhe os erros, as opiniões certas antes do tempo, consegue
traçar a sua própria trajectória?
Não sou nada. Nunca
serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo.
Diga-me, Pessoa,
sente saudades do seu tempo de infância?
Eu era feliz na casa
antiga. Até eu fazer anos, era uma tradição de há séculos. Eu tinha a grande
saúde de não perceber coisa nenhuma. De ser inteligente para entre a família. E
de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter
esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida,
perdera o sentido da vida.
E pode descrever
essa casa antiga?
Vejo tudo outra vez
com muita nitidez, que me cega. A mesa posta, com mais lugares, com melhores
desenhos na loiça, com mais copos. O aparador com muitas coisas – doces,
frutas, o resto na sombra debaixo do alçado. As tias velhas, os primos
diferentes, e tudo por minha causa! No tempo em que festejavam o dia dos meus
anos!
O seu namoro com
Ophelia Queiroz acabou por ser um desencontro. Nunca levou esse namoro muito a
sério. Pelo menos, é o que se conclui da leitura das cartas que escreveu a
Ophelia.
Todas as cartas de amor
são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também
escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas. As cartas de
amor, se há amor, têm de ser ridículas. Mas, afinal, só as criaturas que nunca
escreveram cartas de amor é que são ridículas.
Para além da Ophelia
Queiroz, que até influenciou a sua escrita, não teve lá muitos amores, pois
não? Porquê?
Nunca amamos
ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito
nosso – em suma, e a nós mesmos – que amamos.
Bem, agora vou
roubar uma frase ao Adolfo Casais Monteiro: Pessoa, conte lá essa história da
génese dos heterónimos.
Aí por 1912, salvo
erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole
pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos,
mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer
aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.
Muito bem, e os outros?
Num dia em que
finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda
alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que
posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja
natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca
poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que
se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de
Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase.
Estou a compreender
tudo muito bem…
Aparecera em mim o
meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos
que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e
escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de
Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando
Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
E depois de Alberto
Caeiro?
Aparecido Alberto
Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns
discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente
um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem
emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o
homem com o nome que tem.
E Bernardo Soares
quando é que aparece?
O meu
semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com
Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que
tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela
prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a
personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação
dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.
Reparo que o Sr.
Pessoa, ao longo desta entrevista, respondeu, muitas vezes, em nome dos seus
heterónimos…
Referi-me, como viu,
ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro
de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando me
for dado o Prémio Nobel. Vivem em nós inúmeros; Se penso ou sinto, ignoro quem
é que pensa ou sente.Sou somente o lugar onde se sente ou pensa. Tenho mais
almas que uma. Há mais eus do que eu mesmo…
E sua relação com
Miguel Torga? Parece que não foi muito feliz...
Recebi uma carta do
Adolfo Rocha. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem
áspera, nem é propriamente insolente, mas intima-me a explicar a minha carta
anterior, diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a
respeito do livro dele, explica, em diversos ângulos obtusos, que os
intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou. Achei pois melhor
não responder. Que diabo responderia?
Podemos dizer que
Mário Sá-Carneiro foi o seu maior amigo, mas morreu prematuramente. É assim?
Morre jovem o que os
Deuses amam…Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se
por morte o acabamento do que constitui a vida…Génio na arte, não teve
Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida…Este morreu jovem, porque os
Deuses lhe tiveram muito amor… Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem
cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os
Deuses o quiseram assim.
Tem algum mote que o
acompanhe?
Tudo vale a pena
quando a alma não é pequena.
Chegaram,
entretanto, os amigos de Pessoa, Almada Negreiros e Gaspar Simões. Dou por
terminada a entrevista, agradeço e saio. Afasto-me, mas fico, por perto, a
observar aquela que será a última tertúlia de Pessoa com os amigos.
Pessoa sai,
cambaleia e ri de uma maneira estranha. Caminha na direcção da Rua dos
Douradores, se calhar à procura, pela última vez, do rasto de Bernardo Soares...