segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

No limite da minha infância

«Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa da minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e de minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve choro pela noite adiante – tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me ter vibrado pela vida fora esse choro que não lembro».

(Vergílio Ferreira Fotobiografia, Org. de Helder Godinho e Serafim Ferreira: 118)

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