Fernando Pessoa, em 1930, neste poema inesperadamente fresco e simples, que lembra Antero de Quental, confessava:
Quanto fui peregrino
Do meu próprio destino!
Quanta vez desprezei
O lar que sempre amei!
Quanta vez rejeitando
O que quisera ter,
Fiz dos versos um brando
Refúgio de não ser!
E quanta vez, sabendo
Que a mim estava esquecendo,
E que quanto vivi —
Tanto era o que perdi —
Como o orgulhoso pobre
Ao rejeitado lar
Volvi o olhar, vil nobre
Fidalgo só no chorar...
Mas quanta vez descrente
Do ser insubsistente
Com que no Carnaval
Da minha alma irreal
Vestira o que sentisse
Vi quem era quem não sou
E tudo o que não disse
Os olhos me turvou...
Então, a sós comigo,
Sem me ter por amigo,
Criança ao pé dos céus,
Pus a mão na de Deus.
E no mistério escuro
Senti a antiga mão
Guiar-me, e fui seguro
Como a quem deram pão.
Por isso, a cada passo
Que meu ser triste e lasso
Sente sair do bem
Que a alma, se é própria, tem,
Minha mão de criança
Sem medo nem esperança
Para aquele que sou
Dou na de Deus e vou.
Fernando Pessoa, 7-10-1930
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