"Em Nome da Terra", de Vergílio Ferreira, é um romance de 1989. A história é simples e conta-se em duas linhas: Viúvo e reformado, João, narrador e personagem principal, vive os últimos anos de vida num lar, um «Lar de Repouso», “nesta casa em que apodreço devagar e em que os filhos me meteram...Nesta casa estou só com o meu corpo…” (p.10). Vive aí a miséria da sua degradação física, a deterioração da inteligência, a indignidade da perda da sua condição, uma perna amputada. “Deixei-lhes tudo, trouxe só a memória disso e do mais, que é o espírito daquilo em que existi e que é tudo”, diz o autor (p. 46).
Todos os seus bens ficaram á guarda da sua filha Márcia. Para si, guardou apenas a memória, um Cristo mutilado, um desenho de Dürer, uma reprodução de um fresco de Pompeia e um disco de Mozart (concerto para oboé).
Estes símbolos irão percorrer a narrativa, estabelecendo uma relação analógica com o corpo (no Cristo mutilado), a morte (no Desenho de Dürer), a beleza (no Fresco de Pompeia), a harmonia (no Concerto para oboé).
Um livro sobre o corpo? Um livro sobre a velhice? Uma declaração de amor? Um exercício sobre a memória? Todas estas realidades estão presentes. Eleger uma para a sobrepor a todas as restantes não parece um exercício fácil.
É, sem dúvida, um livro sobre o corpo. Um corpo mutilado, deformado, em degradação. “Tenho só este sacana de corpo…” (p. 22). É o narrador que parece querer indicar ao leitor este caminho. «Hoc est corpus meum», citação do evangelista Mateus, deixa ele como epigrafe na abertura do livro.
O Cristo Mutilado, que João (a personagem) trouxe da aldeia, identifica-se com o seu sofrimento. É, muitas vezes, sugerido, pela memória de João. É uma companhia, com quem o narrador conversa, a quem interpela. “É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo…só na dor absoluta de um homem sem divindade nenhuma…”, (p. 71).
Interessante o diálogo a propósito de José. E o teu pai José? Pergunta-lhe, em jeito de desafio.”Os contadores da tua história esqueceram-no”. Já o papel da mãe Maria é valorizado “A morte de um filho tem amargura que chegue para cobrir o mundo..” (p.71). Cristo e João, irmãos no sofrimento, “meu irmão no sofrimento”, diz o narrador (p. 73). “vejo nos teus braços abertos um grande abraço. Podes abraçar que eu deixo. Mesmo com sangue ainda vivo. Podes.” (p.74). Podemos pensar aqui numa reconciliação? Não, a reconciliação, em Vergílio Ferreira, nunca aconteceu.
É também, sem dúvida, um livro sobre a velhice. João Vieira, é o nome do narrador-personagem (descobri-lhe o nome na página 138) está internado num lar, na casa em que «apodreço devagar e em que os filhos me meteram». Vive aí a miséria da sua degradação física, mais visível numa perna amputada. O seu dia-a-dia são «velhos e velhos, imundície, dejectos do homem, restos atirados para fora do alcance de serem gente. Tortos, taralhoucos, um cheiro insuportável excrementício, amontoavam-se uns nos outros a ouvir». O ambiente descrito é sombrio, pungente. O autor não se poupa a carregar nas cores com expressões como, referindo-se aos velhos, «têm a mania de estar vivos com as suas coisas à volta a dizerem-lhes que sim», todos «mais ferrados à vida do que as moscas às mulas», velhos de «boca rota», «remoendo-a, salivosa», teimosamente indiferentes, que «não rebentam de vez». O romance denuncia a cruel situação imposta aos idosos pela sociedade de consumo, tema abordado por outros autores [1]. Há neste livro, sem dúvida, uma sordidez indesmentível, mas feita de verdade. Um livro que faz doer.
É também um livro sobre o amor, uma carta de amor. É o narrador que o declara logo na primeira linha do livro. “Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever.” São estas as primeiras palavras do livro, em jeito de proposição, como Camões faz nas estrofes 1 a 3 do Canto I.
Este romance constitui-se assim, ao mesmo tempo, um bonito, ainda que doloroso, louvor ao amor e ao seu objecto - sua mulher Mónica, já falecida. Através de um diálogo, sem resposta, profundamente intimista, o João dirige-se a sua mulher, fisicamente ausente, de cujas lembranças se vai alimentando. O quadro Primavera, personificada no fresco de Pompeia pela deusa Flora, que João trouxe para o lar, é comparada à beleza de Mónica, à harmonia do seu corpo ainda jovem. Como símbolo melódico, o concerto para oboé de Mozart, como se proclamasse o nome de Mónica, amacia-lhe as memórias.
É ainda um livro que nos fala da morte, problema que percorre toda a obra deste autor. Já no romance Aparição, Vergílio Ferreira pôs em cima da mesa esta questão: “Portanto eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca até hoje eu soube inventar outro.”
O livro é por isso, em minha opinião, também uma reflexão profunda sobre o tema da morte, mostrando-nos a fragilidade da existência do homem e a angústia que deriva da certeza que isso acontecerá um dia. À medida que ele, o autor, se confronta com a sua própria condição finita, a solidão amplia-se, sobretudo por esse confronto acontecer longe de um ambiente familiar:
“Mas eu ia-te dizer eu que era a hora em que a morte – já não sei o que ia a dizer sobre a morte. Talvez que ela é mais plausível de noite pela imensa solidão. Já me vou acomodando, mas mesmo assim. A hora em que estamos a sós connosco, com esta coisa terrível que somos nós por dentro vivíssimos e não há público nenhum para nos ajudar (p.140).
A presença de D. Felicidade é, também, simbólica, “É uma mulher digamos alta, direita. Severa. Veste sempre de dever, que é escuro, como sabes, por ser triste.” (p. 235). Cabe à D. Felicidade, com a sua inflexibilidade militar, ratificar a inevitabilidade da morte.
Embora cause estranheza e incomode muita gente a recorrência do tema da morte por parte de Vergílio Ferreira, sempre se pode dizer que se trata de não perder de vista o inevitável: ter consciência da inevitabilidade da morte [2]. O autor, porém, fá-lo aqui por meio da irreverência do humor, que possibilita a criação de uma atmosfera de intimidade entre João, o narrador, e a gravura de Dürer que ele trouxe propositadamente para o lar.
O desenho de Dürer é a “figuração mais ridícula da morte” (p. 220), diz ele para a mulher ausente. Trouxe-o para o lar para “tratar a morte por tu”. Depois diz ainda “um esqueleto, minha querida, é a figuração mais ridícula da morte, foi talvez por isso que o pus aqui dentro. Para tratar a morte por tu, um esqueleto é tão engraçado” (p.220).
Falar da morte é depressivo? O narrador quer provar o contrário, “pedi à Márcia que me trouxesse o desenho para aprender a desautorizar a morte, a gente valoriza-a tanto”, mais à frente “A importância da morte está na vida” (p. 222).
Finalmente, podemos olhar para o romance a partir de um outro elemento fundamental abordado neste romance que é a memória. Estamos também perante um exercício sobre a memória.
Podemos dizes, de alguma forma, que a memória é o fio que tece a narrativa. O exercício da memória é importante, mostra-nos que lembrar não significa trazer do passado um facto tal como ele ocorreu, mas sim reconstruí-lo com a experiência do presente.
João reflecte sobre a importância do significado que essas imagens adquiriram com o passar dos anos: “só agora o olho (o passado) com uma intensidade muito grande (...) o curioso é que quando te amei não tinhas a perfeição que tinhas na invisibilidade de ti. Só agora és bela e inteira e prodigiosa como uma auréola” (p. 260-261).
Importa ao autor delimitar essas lembranças e voltar a um tempo de glória, ao tempo em que Mónica voava nas aulas de ginástica, ao tempo em que João podia fazer um golo com a sua perna, mais tarde amputada:
“Está-se lá bem, no lembrar. Estás inteira e ágil como um vôo. Estou inteiro ao pé de ti, há um mar de gente à minha volta e em silêncio, tenho a perna forte, armada para o disparo e o triunfo. A glória está connosco e a claridade magnífica dos deuses” ( p.291-292).
Este foi o segundo livro de Vergílio Ferreira que lemos no Grupo de Leitura Roque Gameiro. O primeiro, logo ao início, foi "Aparição". Escolhido com o propósito de proporcionar uma visita de estudo a Évora, o que fizemos. "Aparição" é considerado por muitos um livro relevante na obra deste autor, embora se tenha tornado um texto odiado, porque obrigatório, durante algum tempo, no ensino secundário [3]. Mas Vergílio Ferreira teve capacidade de voltar com livros como, por exemplo, "Para Sempre" ou "Até ao Fim".
Este "Em Nome da Terra" é sobretudo para mim, não resisto a declarar a minha opinião, uma declaração de amor, um amor para lá da morte, um amor sem mácula. É um hino ao sacramento indissolúvel do Amor: «Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição». E a mulher, a Mónica, desta vez, dirá “Está bem”. Está tudo dito.
[1] Simone de Beauvoir, em seu estudo sobre "A Velhice" (1970), conduz-nos a uma profunda reflexão sobre a condição do idoso, sob o ponto de vista do seu aspecto físico, exterior – maneira pela qual a velhice é apreendida, ao longo dos tempos, pelo olhar distanciado do outro – e sob o ponto de vista interior – forma como o idoso assume para si a própria velhice.
[2] A escrita de Vergílio Ferreira é uma escrita que atinge o que há de desolação nas nossas vidas. Há quem não goste e o acuse de ser um escritor soturno, pessimista. Há já uns anos num programa que convidava pessoas conhecidas a escolher o livro da sua vida, o convidado do dia escolheu "Até ao Fim" e explicou as razões. E contou, a propósito, uma entrevista ao escritor em que, entre outras, lhe colocou a seguinte pergunta. “Como é que um jovem como eu (então com 21 anos) pode gostar de um livro cuja temática é a morte, a morte de um filho, de uma forma, por vezes, tão cruel?”. Resposta de Vergílio Ferreira: Pela mesma razão que a melhor maneira de ver um fósforo aceso é contra um fundo escuro.
[3] Carlos Pinto Coelho, que muitos e bons livros deu a conhecer aos portugueses no programa “Acontece”, na RTP “, elegeu “Aparição” como livro da sua vida.
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