quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Infeliz Gungunhana - O Bebedor de Horizontes


"O Bebedor de Horizontes", de Mia Couto, é o terceiro livro da Trilogia “As Areias do Imperador”. A sua acção decorre em África (Sul de Moçambique) e em Portugal (Lisboa e Ilha Terceira nos Açores). 

No rescaldo da Conferência de Berlim, Portugal quer afirmar-se como potência dominadora de facto e quer, particularmente, normalizar a situação no Sul de Moçambique onde se “criara”, contra a sua vontade, o Estado de Gaza, onde imperava Gungunhana.

Recorde-se que a Conferência de Berlim decorreu entre o dia 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de1885, com o objectivo de organizar, por meio de regras, a ocupação do continente africano pelas potências coloniais. 

O desafio era claro: ou Portugal prova que domina efectivamente os territórios africanos ou perde-os para outras potências coloniais. 

A questão central da trilogia, nas próprias palavras do autor, é desmitificar a figura de Gungunhana, porque, segundo ele, houve exageros de apreciação, de parte a parte, quanto a essa figura: para os portugueses, importava valorizar o régulo vátua pois isso contribuía para enaltecer a vitória de Mouzinho de Albuquerque; para os nacionalistas moçambicanos, havia o interesse óbvio de criar um herói da resistência anticolonial.

Segundo diz Mia Couto, o Imperador teve um comportamento muito ambíguo em relação a Portugal, tinha pouca consistência moral e, não obstante, foi feito um herói moçambicano após a Independência. Quando o pai Muzila morreu, Gungunhana, não sendo herdeiro legítimo (posição que recaia sobre o meio-irmão Mafumane), eliminou, após lutas internas, o príncipe herdeiro e obrigou a fugir para o exílio os outros rivais.

Ainda na opinião do autor (a que conta para análise do livro), Moçambique fez de Gungunhana uma coisa que ele nunca foi e Portugal criou um Gungunhana maior do que era. No fim de vida era um infeliz e desgraçado sem poder. 

No primeiro volume “As Mulheres de Cinza” só as cartas de Germano de Melo vinham intervalar a narração na 1ª pessoa, feita pela IMANI; no segundo, "A Espada e a Azagaia", Mia Couto acrescenta a voz do tenente Ayres de Ornelas, por forma a criar um diálogo entre dois militares portugueses e assim mostrar que, do lado do colonizador, ocorriam visões diferentes e em claro conflito.

Neste terceiro livro, a narração é praticamente feita pela voz de Imani, exceptuando 3 cartas breves de Germano de Melo e 2 cartas de Zixaxa, este para relatar o tempo passado pelos prisioneiros na Ilha da Terceira, por onde Imani não passou.

Todavia, deve dizer-se que IMANI, a jovem moçambicana, que se apaixonou pelo sargento Germano de Melo, surge definitivamente como a personagem narradora nuclear, como a verdadeira protagonista do romance. Imani emerge, neste 3º livro, como a grande personagem. Aliás, as últimas páginas não deixam margem para qualquer dúvida. Todos os escritos, todas as cartas, que estavam dento da mala (à semelhança da arca do Pessoa), se espalham no chão à frente do jornalista que a entrevista quando Imani tem 95 anos, no dia da Independência de Moçambique. O jornalista recolhe o espólio que o há-de levar a escrever esta grande história, porém nas condições impostas por ela: «Leva estes cadernos e publica-os…assina-os como sendo tu o autor, não me importo. Desde que digas que és meu neto, o neto de Imani Nsambe».

O tempo e o espaço 
A narrativa respeita à grande viagem que leva os prisioneiros africanos desde Chaimite, onde se deu a prisão de Gungunhana, no dia 28/12/1895, até Lisboa, onde chegaram no dia 13 de Março de 1896 e, mais tarde, até à Ilha da Terceira, aonde os principais prisioneiros chegaram no dia 27 de Junho do mesmo ano.

Telegraficamente, o itinerário foi este: um percurso a pé, iniciado às 10 da manhã do dia 28 de Dezembro de 1896, até ao ponto de embarque conhecido por Zimacaze; Descida do Rio Limpopo, na corveta Capelo, comandada por Álvaro Andreia; Primeira paragem em Languene, onde entra para o grupo de prisioneiros Zixaxa mais 3 das suas mulheres; Segue-se o porto Xai-Xai, no oceano Índico, onde chegaram no dia 31/12/1895; A viagem prossegue agora no navio Neves Ferreira; A chegada a Lourenço Marques acontece em 4/1/1896; Aqui os prisioneiros são apresentados ao Governador Geral Correia Lança e à população no dia 6/1/1896; A partida de Lourenço Marques acontece no dia 13/1/1896 com rumo a Lisboa no navio “África”, sob o comando do capitão António Sérgio de Sousa, e do seu adjunto, o sargento Araújo; Uma paragem na Cidade do Cabo, mas os negros estão interditos de sair do navio, é a regra aqui; Outra paragem em Luanda, onde compraram roupa; Na passagem do Equador há festa, cumpre-se o ritual (o equador é rico em sol, mas pobre em vento, então, antigamente, enquanto o vento não vinha, havia que entreter a tripulação; Uma última paragem na Ilha de Santiago em Cabo Verde para deixar 31 deportados; A chegada a Lisboa acontece no dia 13/3/1896; Às 3 da tarde desse dia, entram no Arsenal; Godido, alto, jovem e que fala português, é assediado por mulheres dos funcionários; Ao fim da tarde, são levados para o forte de Monsanto; Em 23/6/1896 são levados para a Ilha Terceira, nos Açores, no navio Zambeze; Dá-se a separação das mulheres que são levadas para São Tomé; Chegam à Ilha Terceira em 27/6 e são instalados no Castelo de São João Batista, na península Monte Brasil, na cidade de Angra do Heroísmo. 

A narrativa prossegue, primeiro com duas cartas de Zixaxa para Imani a relatar os acontecimentos na Ilha Terceira e com o relato de Imani, primeiro, com o tempo passado em São Tomé com as outras esposas; segundo, já em Moçambique, na sua terra natal quando é entrevistada por um jornalista no dia da Independência de Moçambique, no dia 25 de Junho de 1975.

Como se vê, e em conclusão, o espaço da narrativa é amplo (vai de Moçambique a Lisboa e à Ilha Terceira) enquanto que o tempo, muito  longo, vai do dia 28 de Dezembro de 1896 até 25 de Junho de 1975.

Por meio, há toda a história recheada de imensos episódios. E muita poesia, muita poesia, “deve haver um sol dentro deste rio, só assim se explica a luz de Lisboa” - pp 261- são palavras de Imani para o capitão Sérgio de Sousa, à chegada a Lisboa, que responde, “deveria chamar-se Luzboa”.

Estamos perante uma (re)criação ficcional inspirada e correctamente ancorada em factos e personagens reais. Mia Couto é muito virtuoso ao conseguir tecer uma narrativa a partir de informação recolhida em Moçambique e em Portugal e, ainda, numa visita à Ilha Terceira que ele reputou de muito interesse. 

É deliciosa a forma como ele faz cruzar personagens ficcionados da narrativa com figuras e lugares reais, situando-os no tempo e no espaço exacto. Dois exemplos.

Primeiro, refiro-me ao "encontro" de Imani com o José Almada Negreiros. Aconteceu na ilha de São Tomé e Princípe no ano de 1896. Imani, na companhia da rainha e profetiza Dabondi, cruza-se com o o administrador de concelho, Almada Negreiros e sua esposa Elvira, a qual traz um menino pela mão. Esse menino é, pasme-se, o nosso José de Almada Negreiros! Tinha então 3 anos de idade! – pp 335.

Segundo, no regresso a Moçambique, Imani passa 2ª vez por Lisboa, tem a felicidade (oh sublime ironia) de ver o filho, já adulto, na casa de D. Laura, mãe de Germano. De volta ao navio, passa na Estrada da Laranjeiras, e a certa altura, o marinheiro que a acompanhava, suspendeu a marcha e disse “ Foi aqui, foi aqui que ele se matou” e, antes que Imani o questionasse, clarificou: “Mouzinho de Albuquerque, foi aqui que ele morreu”. E é verdade. Foi no dia 8 de Janeiro de 1902 – pp 361.

As Personagens

Imani Nsambe emerge com figura principal, é ela a narradora principal da história. Na sua língua materna ‘Imani’ quer dizer ‘quem é?’. Como se eu fosse uma sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta”, diz ela logo ao ínício. È assim que ela percorre toda a narrativa. Amante? sim, sem dúvida. Mãe?, não a deixaram. Tradutora ou delatora? Lembrando as palavras do seu pai: "em tempo de guerra todo o tradutor é um delator" (pp. 88). E depois há o problema de todos os espiões, “alguém, depois, os deve espiar a eles. Pagos para trair um, acabam por trair todos” (pp 110). Do lado dos brancos ou dos negros? Sempre entre duas ganâncias: a dos irmãos negros que a querem morta, dos brancos que a querem violar (pp 83). Uma mulher com uma imensa e triste fatalidade, como ela reconhece com muita ironia, quando viaja para Portugal: “um navio chamado África afasta-me do continente africano, com um filho mulato na barriga e deixando o meu homem branco em terra de negros” (pp 186).

Germano de Melo, a história do sargento que deixou de ter corpo desde que chegou a África, que diz que sempre odiou a sua farda; que fez de uma velha espingarda uma cana de pesca. Amou mas foi sobretudo amado. E, no fim, fraquejou. A carta que escreveu a Imani não se compreende. Que dizer das razões que apresenta para não ir para junto dela? Falta de transporte? Não querer ficar amarrado a rotinas domésticas? (até parece o Pessoa “queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?”) Medo de ser preso? Não, nenhuma destas razões. Afinal, foi o receio de ser “odiado por ser marido de uma preta”. Ambos soçobrariam, diz ele, perante o invivível exército do preconceito – pp 300. Mas, apetece perguntar: afinal, o primeiro preconceituoso não foi ele?

Gungunhana é a figura honorífica da narrativa. Sem ele, não havia romance. E todavia ele parece estar sempre ausente, sem o porte e a dignidade que se esperava de um rei.Temos de concordar com o autor quando ele diz que escreveu esta trilogia para desmistificar a figura de Gungunhana, porque na verdade houve exageros de parte a parte. Nele vemos o sentido trágico do romance (um homem profundamente infeliz e solitário). "É no degredo - e não no trono - que se reconhece o verdadeiro imperador", são palavras do pai de Imani - pp84. Nada mais verdadeiro.

Zixaxa foi, ao invés, o único rebelde que se "salvou". Manteve sempre um porte digno e majestático. Embora preserverando muito das suas raizes, aculturou-se completamente (foi bom ter aprendido português, na viagem aprendeu a falar, na Ilha Terceira, mais tarde, a escrever), foi feliz, "um português feliz, um português de pele escura" - pp 325. Um homem perfeitamente realizado com o seu destino, perfeitamente integrado. É feliz, ao contrário de Gungunhana.


Mouzinho de Albuquerque, que dizer? Figura controversa, mesmo no seio dos portugueses: para uns, um herói; para outros, um cruel sanguinário. Como acontece muitas vezes, tinha a admiração de um estrangeiro, neste caso, da italiana Bianca. Para ela, Mouzinho, esse cavaleiro andante! Um afecto desmedido por ele, acusa-a o sargento Germano. Que melhor frase para o definir?  Parar Mouzinho? Mais fácil parar o vento!

Para além destes, há ainda um desfile de personagens que podem suscitar a atenção do leitor: Dabondi (uma das esposas de Gungunhana, profetiza, a madrinha e companheira de Imani); Álvaro Andreia (o comandante da corveta Capelo, o autor de "A Marinha de Guerra na campanha de Lourenço Marques e contra Gungunhana, 1894-1895, publicado nos Anais do Clube Militar Naval, com uma versão nmuito diferente da que ficou conhecida por Operação Chaimite); Godido, o filho de Gungunhana, um dos prisioneiros que se integrou bem nos últimos anos da sua vida na Ilha Terceira; António Sérgio de Sousa, o comandante do navio "Africa" autor de uma escrita apurada - pp 255.

O livro vale a pena tanto pelo prazer literário quanto por esta abordagem de factos históricos que ocorreram há pouco mais de 100 anos. Mia Couto declarou, em entrevista, que era importante conhecer os vários lados da História, quer a dos vencedores, quer a dos vencidos. Concordo inteiramente.

Apenas uma pequena discordância, a qual, todavia, não belisca minimamente o mérito literário desta grande obra  Não concordo que se diga que a pior herança são os vencedores, como parece ser a principal tese do livro. Cada um lutou por aquilo em que acreditava. Merecem o nosso igual respeito.

Este livro vai certamente ter um lugar de destaque na literatura de língua portuguesa. É um enome livro. Li-o de um folego!

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