segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Agustina no olhar de A. Lobo Antunes



Agustina vem cair de súbito, como uma pedra imensa e estranha, em pleno charco neorrealista.

A partir dos anos trinta as pessoas que escreviam em português, quase todas ligadas ao Partido Comunista ou mais ou menos simpatizantes dele, inauguraram uma fase, muito influenciada por escritores franceses e italianos sobretudo, de romance que se queria social, iniciada talvez por Alves Redol (por quem tenho muito respeito) e Soeiro Pereira Gomes, a que se foram juntando uma imensa quantidade de nomes como por exemplo Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Garibaldino de Andrade, Vergílio Ferreira, Mário Braga, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, José Saramago, Antunes da Silva, Augusto Abelaira, etc. porque a lista é infindável, que escreviam histórias de operários bons e patrões maus, como resumia por troça Fernando Assis Pacheco, que a mim, em geral, não me interessavam nada mas que interessavam uns aos outros e eu, adolescente de treze ou catorze anos lia numa aplicação decepcionada

(havia também José Cardoso Pires mas José Cardoso Pires, que viria a ser o meu melhor amigo, era outra loiça)

e, paralelamente a esses, o que existia era outra corrente, protofascista ou, no mínimo, não agressiva para a Ditadura, como por exemplo Joaquim Paço d’Arcos, Francisco Costa, Manuel Frederico Pressler e nomes assim que o tempo varreu também, que me interessavam ainda menos. Não era nada daquilo que eu queria, nem de uns nem de outros, mas não existia muito mais, o que deixava a criança que fui na aflição de encontrar uma voz diferente para a qual não tinha preparação nem experiência, na triste necessidade de construir, de raiz, outro mundo.

O tempo foi varrendo estes autores se bem que um ou outro livro continue ainda (o “Barranco de Cegos”, meia dúzia de contos de Manuel da Fonseca, também bom amigo meu, pouco mais) e julgo que deles quase nada ficará. Mas nos anos 40 e 50 eram extremamente populares, apoiados numa crítica simpatizante do Partido Comunista, ou no mínimo não hostil, que os incensava com exuberância. E eis que de súbito surge no meio disto o primeiro livro de uma mulher chamada Agustina Bessa-Luís, que nada tinha a ver com nenhum destes grupos. Alimentada por Camilo (de quem não sou entusiasta) que por sua vez bebeu em Filinto Elísio (conheço mal mas o grande Bocage apreciava-o muito) aparece com uma prosa completamente diferente, completamente nova, rica, quase barroca, inteiramente inovadora, aguda, inteligente, irónica, riquíssima, surgida do nada (tirando o seu bocadinho de Camilo), de um talento desmedido. Claro que isto não se perdoa, os dois melhores críticos da época, Óscar Lopes hesitou e António José Saraiva leu com entusiasmo, e Agustina foi aumentando a sua obra, segundo regras que não existiam antes dela. As suas personagens não eram bonecos vestidos de ideias que em lugar de pensarem os sentimentos eram pensadas por eles, usava nexos afectivos, não racionais, as suas obras não obedeciam a uma ordenação lógico-discursiva, obedeciam a uma tumultuosa ordenação do caos, a inteligência não era apanágio do autor, era uma característica da escrita, no sentido em que as palavras solucionavam a tessitura de acordo com uma implacável lógica interna, não nos conduzia a parte nenhuma, mergulhava-nos em nós mesmos dando-nos a conhecer o nosso caos interior, descodificando-o e mostrando-nos a sua complexa simplicidade

(parece um paradoxo mas não é)

e construiu uma obra única de catalogação do mundo, uma aprendizagem das luzes e das trevas da qual saímos como quem desperta de um sonho, devorados pela prosa, reduzidos às cinzas de um fogo que nos devolve inteiros a nós mesmos. Aprende-se com ela como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial. E sai-se dos romances como de um pesadelo implacável, irónico, terno, violento, doce, obscuro e evidente. Ou seja estivemos a ler uma escritora do tamanho de George Eliot ou Jane Austen. E podemos dar graças a Deus de o seu idioma ser o nosso.

E agora meia dúzia de palavras apenas acerca da Mulher. Gostávamos muito um do outro, eu adorava o seu humor, a ironia da sua lucidez, a sua divertida sabedoria, os seus julgamentos implacáveis.

Uma ocasião disse-me:

– Dou-me tão bem com o meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia. Mas tu és lindo, miúdo, e eu devia-me ter casado contigo ou com o Camilo.

Claro que estava a brincar: ela adorava ser metade do Casal Garcia, e a harmonia dessas duas metades comovia-me sempre, como me comoveu uma carta em que, comentando um livro meu, escreveu: “se eu usasse chapéu alto, e devia usar, tirava-o num rasgado gesto”.

E como sabia o que valia não atacava ninguém. Uma grande Senhora. Uma grande Escritora. Agustina, sabe, não sei de qual das duas gosto mais. Se pudesse escolher ficava com ambas. E os seus livros estão vivos: que mais pode desejar? Deixe-me tornar a beijar, como sempre fazia ao encontrá-la, a sua mão.

António Lobo Antunes, in 'Visão' (2017-06-01)

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