quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Em dia de aniversário de DMF


Texto de Francisco Simões (escultor) no "Jornal da Madeira", neste dia 24 de Fevereiro de 2022, dia em que, se fosse vivo, o poeta DMF faria 95 anos.


DAVID MOURÃO-FERREIRA, UM MONUMENTO DE PALAVRAS
Saudades de um escultor da Poesia, ele próprio, um Monumento de Palavras.
Faria hoje, dia 24 de Fevereiro, 91 anos. A 16 de Junho de 1996, deixou-nos, fará este ano, 22 anos. E tenho saudades da sua voz, dos seus poemas, da sua prosa e das suas aulas. São imensas as saudades, eu, que desde jovem sou um leitor da poesia de David Mourão-Ferreira. Desde jovem admiro a beleza, a elegância e a mestria da sua escrita. E quando, em 1984, ao preparar a realização de uma exposição, Francisco Faria Paulino sugere o nome de David Mourão-Ferreira para escrever o texto de apresentação do catálogo, a minha resposta foi que a importância e a dimensão do escritor eram incompatíveis com o valor do meu trabalho. No entanto, o pedido foi feito, e foi com grande surpresa e profunda emoção que li o texto no catálogo que, então, se produziu. Tratava-se de Lisboa pintada através de memórias de infância e depois reinventada pela prosa poética de David.

Apressei-me a agradecer-lhe a generosidade que tinha tido para comigo. Nesse encontro iniciámos, talvez por ditame de algum deus, a nossa “secreta viagem”. A humildade, a generosidade, o fascínio da comunicação de David foram, de facto, determinantes para o início dessa caminhada. Separavam-nos vinte anos de idade, e separam-nos milhares de anos de saberes, de cultura, de experiência.

É a partir de então que David passa a ser, além do grande Poeta e do grande Escritor, o grande Amigo, o grande Mestre. E aconteceu-me o mesmo que aconteceu certamente a todos os verdadeiros amigos de David: descobri outras maneiras de me relacionar com a escrita.

A ventura desta amizade torna-nos cúmplices: os dois femininos - Lisboa e a Mulher - centros da obra de David, são também as personagens das minhas duas facetas: na tela, Lisboa; na pedra, a Mulher. E é quando observa e acaricia essas mulheres de pedra (que o poeta diz de seda) que David me manifesta o seu encanto e vibração: talvez porque a pedra é também, na sua poesia, um signo de eleição, ou talvez porque espere que as suas “mulheres de seda” em “pedra se convertam”.

Foram vários e frequentes os nossos momentos de convívio e de trabalho, e sempre deles resultava um constante e frutuoso enriquecimento pessoal. Quando, em 1986, conclui o seu primeiro romance, o David, a quem eu já tanto devia, pede-me, como se de um grande favor se tratasse, que fizesse a capa para o seu livro. Foram de grande prazer e entusiasmo, as horas em que, num grande impulso e pela noite dentro, li em primeira mão as folhas do original de Um Amor Feliz. E, mal fora iniciada a leitura, algum deus me segredou que estava perante um dos mais importantes romances da literatura contemporânea (o David, como grande criador e grande artista, tinha dúvidas e reservas...).

Após o lançamento do romance, estabelecemos um pacto: para cada edição de Um Amor Feliz seria sempre feita uma capa diferente. E tive a convicção, desde a primeira hora, talvez porque o tal deus mo tenha segredado, que muitas iriam ser feitas.

Foi na sequência desta experiência, e um pouco de acordo com o conteúdo do romance, que surgiu O Corpo Iluminado - “uma criatura bifronte”, como o David o definiu. É com a realização deste livro, uma exaltação poética do corpo da mulher, e da forma como foi concebido (a criação poética inspira-se nos desenhos do escultor), que senti com maior intensidade e consciencializei mais profundamente que, na comunhão dos discursos, se estabelecia uma verdadeira cumplicidade nas nossas diferentes linguagens.

Foi uma experiência marcante para a minha obra e o meu percurso. A partir de então, a obra poética e a prosa de David Mourão-Ferreira passaram a fazer parte dos instrumentos do meu atelier e a maioria das minhas esculturas passaram a ter uma ligação vincada às imagens por ele sonhadas. É assim que nascem cerca de vinte capas de livros seus, foi por isso que aconteceram exposições realizadas em Oeiras, em 1995, - onde vinte poemas se casaram com vinte esculturas - e em Coimbra, em 1996, onde trinta e nove esculturas foram acompanhadas de outras tantas poesias e às quais se juntaram cinquenta e cinco desenhos inspirados em textos do poeta.

Uma experiência que, juntos, partilhámos, e esta menos conhecida, diz respeito a uma edição especial e quase clandestina do livro Música de Cama - Antologia de Poesia Erótica.

Vivíamos cada um empenhado na sua obra, mas estabelecendo pontos de encontro nos nossos percursos, e não posso deixar de lembrar um privilégio quase raro que por ele me foi concedido. Por razões que só a amizade justifica, fui das pouquíssimas pessoas a quem o David leu, em fase de criação, os seus livros. Lembro-me de o ter ouvido ler O Jogo de Espelhos, esse magnífico auto-retrato do poeta, e os romances Vino Rosso e Lua da Lapa, em várias etapas dos seus crescimentos. Várias vezes o estimulei para que os terminasse, e, prevendo que o tempo estivesse contra si, insisti na sua conclusão. Com a serenidade que sempre manifestou, disse-me que já não teria tempo para os acabar. Já na fase aguda da sua doença, com muita sensibilidade, inteligência e um grande heroísmo, o David dedicou-se a uma novela a que chamou As Unhas da Gata, que se encontra num estado de construção muito adiantado, e que só não está concluída porque o rigor do ofício de David Mourão-Ferreira o obrigou sempre a um trabalho moroso e lento como o de um escultor. E ele é, na verdade, um grande escultor que nos deixa um grande monumento de palavras. E este monumento é o testemunho de que os Poetas não morrem. É o testemunho de que a obra do David perdurará.

Mas é verdade que morreu a árvore de cujos ramos nasceram alguns dos pomos mais fecundos da nossa poesia. Os Poetas não morrem. Os Amigos também não. Noutra secreta viagem, noutros mares, noutros navios, mas com os mesmos remos, havemos de continuar a navegar.

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