domingo, 11 de novembro de 2012

A solidariedade serviçal dos portugueses

Estou a ler, ou melhor, a revisitar A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz, em que o narrador, que é o Eça, nos dá a conhecer “esse homem admirável”, Fradique Mendes, com quem partilhou momentos de intimidade e por quem nutria a mais viva admiração.

A primeira parte, a que chama “Notas e Memórias”, faz a apresentação biográfica de um suposto Fradique Mendes; (a mais pura heteronomia);  a segunda, dá-nos a conhecer as cartas de Fradique Mendes, através da qual este se correspondia com vários amigos e eminentes intelectuais da época (Antero de Quental, Oliveira Martins, etc..) e com personagens fictícias.

Entre as muitas cartas, apetece-me falar duma delas, hoje na véspera de recebermos, de joelhos, a Chanceler Ângela Merkel. Nessa carta, Fradique faz um retrato confrangedor e deprimente da sua chegada a Lisboa por via-férrea. Ao chegar ao hotel, o cocheiro que o transportou até ao hotel, não o tendo reconhecido, pediu a quantia de três mil réis. Depois, quando o reconheceu, logo baixou a cerviz e acabou a dizer “Lá para o Sr. D. Fradique é o que quiser”. Eça aproveita para criticar o profundo provincianismo, a relapsa fraqueza, a humildade aviltante, a bonacheirice e uma certa solidariedade serviçal dos portugueses.

Mas, melhor mesmo é ler esta prosa deliciosa do Eça:

 
(…) Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar ao batedor. Vim para ele com acerba ironia:
— Então, são três mil réis?
À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria.
E que há-de ele responder, o malandro sem par?
— Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o sr. D. Fradique... Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser.
Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediàvelmente estraga entre nós toda a disciplina e toda a ordem, Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!
Fradique


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