quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ode Marítima, de Álvaro de Campos


Finalmente, tive oportunidade de ler, em ambiente de leitura apoiada, a Ode Marítima de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa).O poeta chega ao cais, está solitário entre a multidão, quando vê “pequeno, negro e claro, um paquete vem entrando”. A partir deste visão, o poeta viaja no tempo e no espaço, recupera, ainda que fugazmente, a própria infância. É então que ele empreende uma exaltada viagem imaginária, mas para quem a vida (do poeta) é uma margem inalcançável, quiçá inexistente. 

Ponto importante a realçar é que o olhar, a imaginação, ou seja, a sensação é analogicamente um “volante” que vai direccionando a percepção dessa vida marítima. Álvaro de Campos emprega muitas vezes a palavra “volante”. É com ela, com a palavra volante, que o poeta marca o ritmo desta alucinante viagem. 

Primeiro, em crescendo: “Volante começa a girar, lentamente”; “Acelera-se ligeiramente o volante”; “Acelera-se cada vez mais o volante”; “A aceleração do volante sacode-me nitidamente”; Acentua-se o giro vivo do volante”; “Oscilação violenta do volante”. 
Depois, de forma decrescente: “Decresce sensivelmente a velocidade do volante”; “Abranda o seu giro dentro de mim o volante”. 
Por fim, “O volante dentro de mim pára”. 

Para o pessoano Robert Brechon, reputado pessoano, considera este longo poema "uma autêntica maravilha de organização, aliando aspectos caracteristicamente futuristas (excessos e provocações), com um tom melancólico, anunciador já da fase intimista". Segundo ele, os aspectos nucleares deste texto são os seguintes: 
- o tom febril, excessivo, sadomasoquista de algumas passagens - "Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares, / (...) Que me rasgueis, mateis, firais! / (...) Arranquem-me a pele, preguem-na às quilhas. / E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!";
- o delírio das coisas marítimas - "Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas, / Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera";
- a exaltação das coisas navais - "E vós, ó coisas navais meus velhos brinquedos de sonho! / Componde fora de mim a minha vida interior!";
- o fascínio das viagens - "Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina / E eu cismo indeterminadamente as viagens.
- o tom intimista e desencantado - "E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira, / Traça um semicírculo de não sei que emoção / No silêncio comovido da minh'alma..."
- a evocação da infância - "Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!"; 

Já o filosofo José Gil, outro pessoano, escreveu recentemente um posfácio para uma edição única da Ode Marítima, onde acentua, sobretudo, a questão da distância. Com efeito, segundo ele, «todo o poema pode ser encarado nesta perspectiva: como vencer a Distância, ou seja, todas as distâncias de todas as naturezas que surgem, uma após outra (entre o paquete e o cais, entre eu-agora e eu-outrora, entre um cais e O Cais, etc.); mas também, e porque é esse o verdadeiro fundamento de toda a distância — como fazer desaparecer a oposição entre os dois pólos da sensação, o interior e o exterior».

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