«Há dias em que madrugamos e julgamos que vamos apanhar Deus. Em vão: Deus levanta-se sempre mais cedo!...», escreveu um dia Eduardo Lourenço, com aquele inconfundível matiz de humor que por vezes punha nos mais fundos confrontos com a gravidade da vida. Hoje, bem cedo, partiu, pôs-se a caminho da reintegração na plenitude ontológica, para ser acolhido anterianamente «Na mão de Deus, na Sua mão direita»…
Aí, no resplendor da Transcendência eterna, a graça do resgate pacificará agora a radicalidade interrogativa do pensamento de Eduardo Lourenço e o seu confronto inquieto com o sentido do trágico, ponderado em autores que particularmente o atraíram e vivido na perspetivação do seu próprio destino.
Aí encontrará feliz desenlace o processo existencial e fenomenológico em que terrenamente se cumpriu Eduardo Lourenço, tão tocado pelo abalo metafísico do encontro com Kierkegaard e com F. Pessoa, em ordem à edificação de uma sabedoria trágica da vida – que ultimamente mais lhe pareceria conciliável com a adesão a Cristo, Mediador amoroso que podia ver, entre Gomes Leal e René Girard, como o grande Reparador.
Aí, junto ao Senhor do Tempo e da Vida, alcançará sentido último o fecundo labor cultural e cívico em que durante décadas Eduardo Lourenço ajudou à construção do Mundo através de um raro movimento entre aos mais amplos horizontes da filosofia da História humana ou da renovadora mitografia do ser lusíada e a atenção lúcida à circunstância nacional e internacional, o discurso compreensivo e crítico sobre os problemas culturais e sociais emergentes no mundo contemporâneo, a palavra interventiva no contexto político.
Aí, junto à fonte da Beleza conhecerá toda a harmonia todo o fulgor a poética da digressão ensaística e a alta qualidade literária, algo wagneriana, da escrita de Eduardo Lourenço, tal como conhecerá toda a harmonia o tom cativante do magistério oral em que irradiava a sua qualificada condição de filósofo e a sua insuspensa questionação dos acontecimentos coetâneos.
Aí, no seio divino da Verdade e do Bem, alcançará justa compensação o denodo com que Eduardo Lourenço sempre se comprometeu com a «obrigação de suportar a liberdade humana» em todos os domínios e sempre sustentou, com desassombro e brilho, que a sua demanda de Conhecimento se queria coerente com o horizonte da «vivência mesma da Verdade» e que nela obedecia, «por temperamento e por formação espiritual», à «única motivação radical» que «finalmente é como decisão de ordem “religiosa" e mesmo "mística" [...] que melhor se compreenderá» («Segundo Prólogo sobre o Espírito de Heterodoxia»).
Custa menos, assim, despedirmo-nos de Eduardo Lourenço, em nome do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – que se orgulha de lhe haver atribuído, após voto unânime do respetivo Júri, o Prémio Árvore da Vida 2020. É-nos grato recordar, aliás, a admiração com que Eduardo Lourenço então evocou a figura do patrono desse Prémio, o emérito Padre Manuel Antunes, e assinalou algumas afinidades de espírito entre ambos.
José Carlos Seabra Pereira
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
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