segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O que é Deus?


Quando perguntaram à escritora Hilary Mantel (recentemente falecida) se ela acreditava na vida depois da morte, a resposta foi sim – embora com a seguinte ressalva: «não consigo imaginar como funcionará. Mas o universo não se limita àquilo que eu sou capaz de imaginar».

Quando li esta frase, outra nasceu no seu lugar: «Deus não se limita àquilo que eu sou capaz de imaginar.»

Nunca serei capaz de imaginar o que é Deus.

Como estudioso da Antiguidade Clássica, sei que Deus não pode ser aquilo que os Gregos e os Romanos viram nos seus deuses, pela razão simples de que os deuses dos Gregos e Romanos são cópias do próprio ser humano: são entidades cheias de inveja, de luxúria, de orgulho e de crueldade. Zeus, na imaginação dos Gregos, era um ser no qual sou incapaz de reconhecer superioridade. Basta pensar na Ilíada, onde Zeus é um marido violento com a mulher e um pai que agrediu tão violentamente o próprio filho que o deixou eternamente deficiente. Deficiência essa que (já agora) é motivo de riso e chacota «inexaurível» da parte dos outros deuses.

Deuses assim imaginados são meramente uma projecção humana das características que definem o próprio ser humano.

Mas houve Gregos que perceberam isso: Xenófanes escreveu genialmente que, se os bois tivessem deuses, esses deuses – por serem imaginados por bois – só podiam ser como bois.
O Antigo Testamento contorna este problema, afirmando logo à cabeça que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança – desencorajando assim a ideia mais racional de que foi o homem que imaginou Deus à imagem e semelhança do homem (já que o homem é a realidade única que o próprio homem consegue imaginar).

No entanto, este Deus do Antigo Testamento, que cria o homem à sua imagem e semelhança, não convenceu todos os cristãos dos primeiros séculos do cristianismo.
Nos séculos II, III e IV, houve cristãos que se deram conta da discrepância entre o Deus irascível e cruel do Antigo Testamento e o Deus do amor incondicional que Jesus veio anunciar ao mundo. Esses cristãos perguntaram a si mesmos se era possível entender o mundo de sofrimento que vemos à nossa volta como tendo sido criado pelo Pai de Jesus – esse Pai do amor incondicional cuja imagem verdadeira era o próprio Jesus.

Para muitos desses cristãos, aquilo a que nós chamamos o Antigo Testamento não era mais do que um repositório algo pitoresco de mitos e superstições do povo judaico: não era de se lhe dar crédito; e o Deus lá descrito não era – segundo eles pensavam – Deus.

Como facilmente se perceberá, os escritos «apócrifos» (ou seja, «secretos, escondidos») desses cristãos questionadores não agradaram às facções mais ortodoxas da hierarquia eclesiástica e, a partir do século IV, foram sendo suprimidos.

Os cristãos seguidores do cristianismo «certo» orientaram-se então por uma ortodoxia que lhes representava a ideia de Deus como um homem idoso de barbas brancas, ciumento e implacável – a imagem exacta, no fundo, de um déspota à escala humana.

Para darmos agora um salto de quase dois mil anos: muitos séculos depois, houve um Papa (cujo pontificado durou só um mês), que conseguiu imaginar algo de muito diferente, quando disse esta frase extraordinária: «Deus é Pai; mas mais do que isso é Mãe».

Este Papa foi João Paulo I (o italiano Albino Luciani, que morreu em 1978).

No apócrifo Evangelho de Tomé lemos que «O reino do Pai é semelhante a uma mulher. Ela tomou um pouco de fermento, escondeu-o na farinha e fez pães grandes» (Tomé 96).

Repare-se como a frase é diferente do que lemos nos evangelhos canónicos de Mateus e Lucas, onde se diz que «O reino dos céus é semelhante a FERMENTO que uma mulher toma» (Mateus 13:33, Lucas 13:20-21). O Evangelho de Tomé obriga-nos a pensar no alcance de uma frase que diz «o reino do PAI é semelhante a uma MULHER».

Neste evangelho apócrifo, Salomé declara (por iniciativa própria) a Jesus o estatuto que nunca é dado a uma mulher nos evangelhos canónicos: o estatuto de discípula («Sou tua discípula!» Tomé 61). Também o apócrifo Evangelho de Pedro dá esse estatuto a Maria Madalena (Pedro 50).

No apócrifo Evangelho de Maria Madalena, não encontramos (pelo menos nos fragmentos conservados) a ideia de que Deus é um ente masculino: nesse evangelho (refiro-me só à parte que nos chegou), o que poderíamos mais imediatamente associar à ideia de Deus é designado por meio de uma expressão de género gramatical neutro: «o Bem» (em grego, «tò agathón», τὸ ἀγαθόν).

É incrível pensarmos que o Evangelho de Maria Madalena (descoberto no Egipto no final do século XIX) só foi publicado pela primeira vez em 1955 (haveria receio em divulgar o único evangelho cuja autoria – pelo menos a alegada – é atribuída a uma mulher?); o de Tomé (descoberto em 1945), só em 1959. Quantas pessoas em Portugal conhecem estes textos?

Como é sabido, tenho dedicado a última dezena de anos ao estudo e à tradução da Bíblia – mas também a textos cristãos apócrifos que, apesar de não terem encontrado lugar na Bíblia, podem encontrar lugar nas mentes e corações de todos aqueles que pensam (voltando à frase de Hilary Mantel) que Deus não se limita àquilo que somos capazes de imaginar.

Assim sendo, temos de tentar imaginá-l’O de muitas maneiras – se calhar até de forma contra-intuitiva. Os evangelhos canónicos falam no risco de se pôr vinho novo em odre velho. Mas o apócrifo Evangelho de Tomé (47) vê um risco que os canónicos não referem: o de pôr vinho VELHO em odre NOVO.

Já pusemos Zeus de parte há muitos séculos. Mas Deus: ainda O procuramos, incessantemente.
(Na imagem: pormenor da Anunciação de Fra Angelico [Prado, Madrid].)

Frederico Lourenço, in fb de 26/09/2022

Devaneios cruzadísticos │ João de Deus

"Flores do Campo" é o titulo da obra do poeta português João de Deus, pedido com a resolução do passatempo de palavras cruzadas, referente ao mês de Setembro de 2022.


Participaram: Aleme; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita Marçal; Baby; Caba; Candy; Corsário; Crispim; El-Danny; Fumega; Gilda Marques; Homotaganus; Horácio; Jani; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Juse; Mafirevi; Magno; Manuel Amaro; Manuel Carrancha; Manuel Ramos; Maria de Lourdes; My Lord; Neveiva; Olidino; O. K.; Paulo Freixinho; PAR DE PARES; Reduto Pindorama (Agagê, Joquimas e Samuca); Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva; Seven; Socrispim; Solitário; Somar; Virgílio Atalaya e Zabeli.

A todos, obrigado.

Até ao próximo. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Devaneios cruzadísticos │ João de Deus

João de Deus de Nogueira Ramos nasceu em São Bartolomeu de Messines, no dia 8 de Março de 1830. Morreu em Lisboa em 11 de Janeiro de 1896, hoje sepultado no Panteão Nacional. Foi um eminente poeta lírico, considerado à época o primeiro do seu tempo, e o proponente de um método de ensino da leitura, assente numa Cartilha Maternal por ele escrita (o homem do a, e, i, o, u.), que teve grande aceitação popular. Gozou de extraordinária popularidade, foi quase um culto, sendo ainda em vida objecto das mais variadas homenagens. E, todavia, está hoje muito esquecido e é justamente por isso que o AlegriaBreve lhe dedica o passatempo deste mês.

João de Deus foi considerado o poeta do amor. Nunca foi rico. Não foi político, não obstante uma passagem fugaz pelo Parlamento. E, todavia, foi uma grande figurada Cultura Portuguesa do Séc. XIX. Estudou Direito em Coimbra, para onde foi com 19 anos. Não gostava de estudar. Preferia a guitarra e os versos.

Bacharel em 1859, ao fim de 10 anos, com uma nota fraca, curso que se tirava em 4 anos! E com a ajuda, decerto, de alguns professores que tinham sido antigos companheiros. Ficou em Coimbra, a andar por ali. Mais tarde, veio para Beja e escreveu no jornal “Bejense”. Não era monárquico, não era republicano. Não obstante, muito contrariado, foi deputado. "Não votem em mim, não votem em mim", implorava ele…mas votaram. Foi deputado, mas não abriu a boca. Passava o tempo em tertúlias com os amigos no Café Martinho da Arcada. 

O que o impressionou foi o anafalbetismo da população portuguesa: 80% na Revolução Liberal, 75% na Implantação da República. Inventou o célebre Método de aprender a ler.

Assim nasceu a Cartilha Maternal. A 1ª edição foi em 1876, com muito sucesso. E outras se seguiram. Todos os anos, novas edições. Um êxito fulgurante que mudou a sua vida. 

No final de vida, uma grandiosa manifestação do povo, alegadamente por iniciativa dos estudantes de Coimbra. Um estudante de Coimbra, alegadamente o célebre Hilário, fez um discurso (“em nome de todo o povo, beijo a mão…”), ao qual o poeta respondeu de improviso:

Estas honras e este culto
Bem se podiam prestar
A homens de grande vulto.
Mas a mim, poeta inculto,
Espontâneo, popular...
É deveras singular
!

É assim que, neste mês, convido os meus amigos a solucionar este passatempo de palavras-cruzadas e encontrar, a final, o título (3 palavras nas horizontais) de uma obra do poeta português João de Deus (1830-1896).


HORIZONTAIS: 1 – Melindre [figurado]; Natas. 2 – Termo [figurado]; Cria. 3 – Agite; Mais [antiquado]. 4 – Manobra; Estima; Timão do arado. 5De + o [contracção]; Astúcia [figurado]. 6 – Estafe; Interjeição que exprime enfado [Angola]. 7 – Ecónomo; Interjeição designativa de agrado e aprovação [Guiné-Bissau]. 8 – Ulcera; Orla; Anexa. 9 – Interjeição que exprime alívio; Incorporas. 10 – Plano; Agradável. 11 – Teimara; Pessoa notável na sua especialidade [figurado, plural].

VERTICAIS: 1 – Esfomeado [Angola]; Automóvel [Angola, coloquial]. 2 – Imagem; Troçam de. 3 – Engano [figurado]; Sova; Muar. 4 – Dignidade militar entre os Turcos; Área de responsabilidade [sigla]; Pão [Moçambique]. 5 – Molhada; Sufixo nominal, de origem latina, que exprime a ideia de agente. 6 – Ema; Interjeição usada para exprimir admiração [Brasil]. 7 – Adivinha; Efeminada. 8 – Composição poética lírica de assunto elevado, própria para ser cantada; Fama [figurado]; Desaparece [Angola]. 9 – Símbolo de ruténio; Causa; Casas. 10 – Batata-doce [Angola]; Vão [figurado]. 11 – Emprego [Angola]; Unidas.

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Aceito respostas até dia 25 de Setembro, inclusive, por mensagem particular no Facebook ou para o meu endereço electrónico, boavida.joaquim@gmail.com. Em data posterior, apresentarei a solução, assim como os nomes dos participantes. 

Vemo-nos por aqui?