Quando perguntaram à escritora Hilary Mantel (recentemente falecida) se ela acreditava na vida depois da morte, a resposta foi sim – embora com a seguinte ressalva: «não consigo imaginar como funcionará. Mas o universo não se limita àquilo que eu sou capaz de imaginar».
Quando li esta frase, outra nasceu no seu lugar: «Deus não se limita àquilo que eu sou capaz de imaginar.»
Nunca serei capaz de imaginar o que é Deus.
Como estudioso da Antiguidade Clássica, sei que Deus não pode ser aquilo que os Gregos e os Romanos viram nos seus deuses, pela razão simples de que os deuses dos Gregos e Romanos são cópias do próprio ser humano: são entidades cheias de inveja, de luxúria, de orgulho e de crueldade. Zeus, na imaginação dos Gregos, era um ser no qual sou incapaz de reconhecer superioridade. Basta pensar na Ilíada, onde Zeus é um marido violento com a mulher e um pai que agrediu tão violentamente o próprio filho que o deixou eternamente deficiente. Deficiência essa que (já agora) é motivo de riso e chacota «inexaurível» da parte dos outros deuses.
Deuses assim imaginados são meramente uma projecção humana das características que definem o próprio ser humano.
Mas houve Gregos que perceberam isso: Xenófanes escreveu genialmente que, se os bois tivessem deuses, esses deuses – por serem imaginados por bois – só podiam ser como bois.
O Antigo Testamento contorna este problema, afirmando logo à cabeça que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança – desencorajando assim a ideia mais racional de que foi o homem que imaginou Deus à imagem e semelhança do homem (já que o homem é a realidade única que o próprio homem consegue imaginar).
No entanto, este Deus do Antigo Testamento, que cria o homem à sua imagem e semelhança, não convenceu todos os cristãos dos primeiros séculos do cristianismo.
Nos séculos II, III e IV, houve cristãos que se deram conta da discrepância entre o Deus irascível e cruel do Antigo Testamento e o Deus do amor incondicional que Jesus veio anunciar ao mundo. Esses cristãos perguntaram a si mesmos se era possível entender o mundo de sofrimento que vemos à nossa volta como tendo sido criado pelo Pai de Jesus – esse Pai do amor incondicional cuja imagem verdadeira era o próprio Jesus.
Para muitos desses cristãos, aquilo a que nós chamamos o Antigo Testamento não era mais do que um repositório algo pitoresco de mitos e superstições do povo judaico: não era de se lhe dar crédito; e o Deus lá descrito não era – segundo eles pensavam – Deus.
Como facilmente se perceberá, os escritos «apócrifos» (ou seja, «secretos, escondidos») desses cristãos questionadores não agradaram às facções mais ortodoxas da hierarquia eclesiástica e, a partir do século IV, foram sendo suprimidos.
Os cristãos seguidores do cristianismo «certo» orientaram-se então por uma ortodoxia que lhes representava a ideia de Deus como um homem idoso de barbas brancas, ciumento e implacável – a imagem exacta, no fundo, de um déspota à escala humana.
Para darmos agora um salto de quase dois mil anos: muitos séculos depois, houve um Papa (cujo pontificado durou só um mês), que conseguiu imaginar algo de muito diferente, quando disse esta frase extraordinária: «Deus é Pai; mas mais do que isso é Mãe».
Este Papa foi João Paulo I (o italiano Albino Luciani, que morreu em 1978).
No apócrifo Evangelho de Tomé lemos que «O reino do Pai é semelhante a uma mulher. Ela tomou um pouco de fermento, escondeu-o na farinha e fez pães grandes» (Tomé 96).
Repare-se como a frase é diferente do que lemos nos evangelhos canónicos de Mateus e Lucas, onde se diz que «O reino dos céus é semelhante a FERMENTO que uma mulher toma» (Mateus 13:33, Lucas 13:20-21). O Evangelho de Tomé obriga-nos a pensar no alcance de uma frase que diz «o reino do PAI é semelhante a uma MULHER».
Neste evangelho apócrifo, Salomé declara (por iniciativa própria) a Jesus o estatuto que nunca é dado a uma mulher nos evangelhos canónicos: o estatuto de discípula («Sou tua discípula!» Tomé 61). Também o apócrifo Evangelho de Pedro dá esse estatuto a Maria Madalena (Pedro 50).
No apócrifo Evangelho de Maria Madalena, não encontramos (pelo menos nos fragmentos conservados) a ideia de que Deus é um ente masculino: nesse evangelho (refiro-me só à parte que nos chegou), o que poderíamos mais imediatamente associar à ideia de Deus é designado por meio de uma expressão de género gramatical neutro: «o Bem» (em grego, «tò agathón», τὸ ἀγαθόν).
É incrível pensarmos que o Evangelho de Maria Madalena (descoberto no Egipto no final do século XIX) só foi publicado pela primeira vez em 1955 (haveria receio em divulgar o único evangelho cuja autoria – pelo menos a alegada – é atribuída a uma mulher?); o de Tomé (descoberto em 1945), só em 1959. Quantas pessoas em Portugal conhecem estes textos?
Como é sabido, tenho dedicado a última dezena de anos ao estudo e à tradução da Bíblia – mas também a textos cristãos apócrifos que, apesar de não terem encontrado lugar na Bíblia, podem encontrar lugar nas mentes e corações de todos aqueles que pensam (voltando à frase de Hilary Mantel) que Deus não se limita àquilo que somos capazes de imaginar.
Assim sendo, temos de tentar imaginá-l’O de muitas maneiras – se calhar até de forma contra-intuitiva. Os evangelhos canónicos falam no risco de se pôr vinho novo em odre velho. Mas o apócrifo Evangelho de Tomé (47) vê um risco que os canónicos não referem: o de pôr vinho VELHO em odre NOVO.
Já pusemos Zeus de parte há muitos séculos. Mas Deus: ainda O procuramos, incessantemente.
(Na imagem: pormenor da Anunciação de Fra Angelico [Prado, Madrid].)
Frederico Lourenço, in fb de 26/09/2022