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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mário de Carvalho, professor de escrita

Ontem, passei pela Livraria Bertrand, no Colombo, e não resisti. Cada vez que entrava na livraria, fazia-lhe carícias, já o namorava há algum tempo. Desta vez, trouxe-o comigo.

Trata-se de "Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão", do escritor Mário de Carvalho. Título curioso. Tem ainda um subtítulo "Guia Prático de Escrita de Ficção". Desafiante.

Estamos, portanto, perante um manual (uma espécie de) onde o autor dá conselhos aos candidatos à escrita, à escrita de ficção. Logo, nas primeiras páginas, o autor dá aos interessados o seguinte conselho: «Leia muito, leia por gosto, leia por curiosidade, leia por desfastio, leia por obrigação, leia por indignação, mas leia, leia,  leia de tudo, sem preconceitos nem reservas.». 

Lembra-me igual receita que o Eça dá em "As Cidades e as Serras". Zé Fernandes olhava abismado a Biblioteca que o amigo Jacinto tinha na sua casa em Paris, o célebre 202. Atónito perante trinta mil volumes, não conteve a admiração: 
- Oh Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
- Há que ler, há que ler...

Acredito que sim. Ler muito é o caminho que nos resta. É natural que cada um de nós (é o meu caso) tenha as suas preferências e faça as suas escolhas. Mas é sempre aconselhável o confronto com outros autores fora dos nossos hábitos de leitura, É ainda um exercício de curiosidade. É ainda a vontade de descobrir mundos, mesmo que às vezes nos possam parecer acinzentados ou, até, inóspitos.

Mas, no fundo, o que importa é Ler. Será que, um dia, à custa de muita transpiração, muitas lágrimas e de muitos ais...chegamos lá? 

sábado, 22 de novembro de 2014

A "traição" de Ramalho Ortigão


Confesso que andava intrigado. Lia a biografia de Eça de Queirós, um dos maiores escritores da Língua Portuguesa, e não percebia por que razão algumas obras, justamente algumas das mais conhecidas, só foram publicadas muitos anos depois da sua morte.

É verdade que o Eça, um perfeccionista, revia continuamente os seus trabalhos, o que deixava os editores à beira de um ataque de nervos. Eça era um homem doente, mas a sua morte, no dia 16 de Agosto de 1900, aos 55 anos de idade, foi totalmente inesperada. Por isso, entende-se que haja muitas obras póstumas na sua biografia. Todavia, publicadas 25 anos depois já me parecia estranho!

É o caso das seguintes obras: A Capital, O Conde de Abranhos, Alves & Companhia e Correspondência, todas publicadas em 1925, e, ainda, O Egipto em 1926 e Cartas Inéditas de Fradique Mendes em 1929.

Essa dúvida, finalmente, ficou desfeita ao ler "Retrato da Ramalhal Figura", da autoria de A. Campos Matos, ilustre queirosiano.

Atentemos neste extracto a pág.s 33 e 34:  

"Em 27 de Dezembro de 1944, o Primeiro de Janeiro publica uma entrevista com o editor Lello, contemporâneo da edição d’A Cidade e as Serras, intitulado «Diálogo com o Sr. António Lello», onde podemos ler: «Quando Eça faleceu, ainda fui falar com o Ramalho, para ele se encarregar de reunir e ordenar os dispersos do seu amigo. Com surpresa minha, verifiquei que só se interessava pela revisão d’A Cidade e as Serras. Não pareceu atribuir importância ao resto». Uma parte importante desse resto apareceria depois desapareceria depois da morte de Ramalho, em 1915, nas mãos do seu filho José Vasco Ortigão. 

A 11 de Julho de 1924, este comunica do Rio de Janeiro, onde vivia, a José Maria Eça de Queiroz, o segundo filho do escritor, o envio de um importante acervo de material inédito, por saber que José Maria se encontrava a braços com a publicação dos póstumos do pai. Que material era esse? Nada mais mais do que os manuscritos de cinco cartas inéditas de Fradique, o romance A Capital (com cerca de 100 páginas impressas corrigidas pelo punho do seu autor, e ainda O Conde de Abranhos.

Tudo isto viajara para o Rio de Janeiro e retornara a Portugal.

Porque não se publicou o acervo dos póstumos mais cedo, pergunta José Maria no prefácio d’A Capital? Uma das razões era «a convicção de que aquilo tudo já fora visto por Ramalho Ortigão, quando tomara conta da revisão da Cidade e as Serras e de que nada haveria ali de realmente notável ou novo»."

Em conclusão, Ramalho Ortigão esquecera, no seu espólio, a obra inédita do amigo que a viúva (D. Emília) lhe confiara, sujeitando, parte dela, mais tarde, a duas viagens através do oceano, até chegar por fim à Granja, onde José Maria (filho de Eça) a organizou e a publicou.

Uma surpresa. À morte de Eça, Ramalho Ortigão era tido por toda a gente como um dos seus grandes amigos, Escreveram ambos "As Farpas" e "O Mistério de Sintra". Uma semana antes da sua morte, estiveram os dois na Suíça, em Genebra, para onde Eça se deslocara na busca de uma cura para o seu mal. Depois da morte, a viúva de Eça, D. Emília, em carta de 10 de Setembro de 1900, pede a Ramalho o grande favor de rever as obras inacabadas, porque "parece-me  que é ao Sr. Ramalho que o devo fazer, o seu nome está ligado ao do meu querido José!".

Bem se enganou a desgostosa senhora e todos os que confiaram em Ramalho. A único trabalho feito por Ramalho Ortigão foi rever a parte final de "A Cidade e as Serras", com muitos atropelos, diz quem sabe.

Cinco cartas inéditas de Fradique Mendes, o romance A Capital  e ainda O Conde de Abranhos andaram a passear pelo Brasil na mala do senhor Ramalho Ortigão e, por uma grande sorte, foram encontrados no seu espólio.

Muito estranho num homem que até foi capaz de produzir excelentes páginas de exemplar escrita e conhecia, como ninguém, o estilo do seu companheiro de lides literárias. Uma traição incompreensível!  

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Palavras cruzadas com História-Lidia Jorge


"Os Memoráveis", da escritora portuguesa Lídia Jorge, é o nome do romance pedido na resolução do passatempo do dia 1 de Novembro.

"Os Memoráveis" é um livro sobre o 25 de Abril de 1974. É uma homenagem aos heróis da Revolução de Abril, os memoráveis, para que não caiam no esquecimento.

Eis a solução completa do problema:


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Recebi respostas de: Abel Azevedo, Aleme, Anjerod, António Amaro, Antoques, Arnaldo Sarmento, Bábita Marçal, Baby, Caba, Carlos Costeira, El-Nunes, Elizabeth Sá, Elvira Silva, Filomena Alves, Horácio, Jani, João Rodrigues, Joaquim Pombo, José Bernardo, Mafirevi, Magno, Manuel Amaro,  Manuel Carrancha, Manuel Ramos, Mister Miguel, Olidino, Osair Kiesling, Paulo Freixinho, Ricardo Campos, Russo, Salete Saraiva e Virgílio Atalaya.

Obrigado a todos. Até breve!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A esplanada de Manuel António Pina

O poeta Manuel António Pina, se fosse vivo, faria hoje 71 anos. Nasceu no Sabugal no dia 18 de Novembro de 1943 e morreu na cidade do Porto no dia 19 de Outubro de 2012. Foi um jornalista e escritor português, distinguido em 2011 com o Prémio Camões.

A sua obra incidiu principalmente na poesia e na literatura infanto-juvenil, embora tenha escrito também diversas peças de teatro e de obras de ficção e crónica.

É da sua autoria o poema "Esplanada", no qual o poeta alude, de forma admirável, à inexorável voragem do tempo e dos lugares. Um excelente poema que Manuel António Pina ofereceu à Língua Portuguesa.

Esplanada 

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O barrete frígio


Há dias, um amigo dizia que os Gregos nos davam grandes lições, a propósito de uma ilustração do deus Cronos. É verdade. No tempo em que não havia explicações científicas para diversos fenómenos da natureza, os gregos procuraram a explicação de coisas complexas, por forma a que as pessoas comuns da época conseguissem entender. Os mitos ajudam-nos a entender as relações humanas.

São bem conhecidos os mitos atribuídos a Midas: "Toque de Ouro" e "Orelhas de Burro". Todavia, deve dizer-se que Rei Midas existiu realmente. Governou a Frígia (uma região da moderna Anatólia, Turquia), no séc. VIII A.C., segundo concluíram, em 1954, pesquisadores do Museu de Arquelogia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia.

O mito mais conhecido é o "Toque de Ouro". O Rei Midas gostava muito de moedas de ouro. Certa vez, deu hospitalidade ao deus Baco que se havia perdido no seu reino e, por isso, levado a sua presença. Baco, em sinal de gratidão, ofereceu então a Midas o direito de escolher a recompensa que desejasse. "Pede que eu dou", disse Baco. "Quero que tudo em que eu toque se transforme em ouro", respondeu Midas. E assim foi. Midas, jubiloso com o poder recém-adquirido, ordenou aos criados para servirem um magnifico repasto. Porém verificou, horrorizado, que, se tocava o pão, este enrijecia em suas mãos; se levava comida à boca, seus dentes não conseguiam mastigá-la. Tomou um cálice de vinho, mas a bebida desceu-lhe pela boca como ouro derretido, sua filha se encostou a ele e se transformou em ouro. Percebeu rapidamente que ia morrer à fome e à sede. Então, pediu a Baco para lhe retirar esse dom. "Está bem, vai àquele rio (rio Pactolo) e lava-te bem nas águas correntes", disse-lhe Baco. E ele assim fez. Ele retomou a natureza primitiva e, a partir de então, o rio ficou cheio de palhetas de ouro, para enriquecer os homens.

O outro mito de Midas, muito conhecido, é "Orelhas de Burro". Após os eventos envolvendo o toque de ouro, Midas abandonou a riqueza e virou um seguidor de Pã, deus dos bosques. Um dia, há um duelo no reino: A flauta de Pã (uma espécie de música pimba) ou a Lira de Apolo (aquela que eleva o coração dos homens)? O Rei Midas ficou do lado da primeira. Apolo, enfurecido, deu a Midas orelhas de burro. Por isso, nasceram-lhe umas grandes orelhas. Ficou com orelhas de burro. Bem, para evitar os risos, teve de esconder as orelhas com um grande barrete, o famoso barrete frígio. Ninguém sabia. Os súbditos pensavam até que se o rei tem uma grande cabeça, logo é muito inteligente. Grande cabeça, reverenciavam eles. Ninguém sabia, menos o barbeiro. Era um segredo de Estado, que o barbeiro sabia e guardou durante muito tempo. Mas, como todos os segredos de Estado, rompem essa cortina de sigilo. Então, o barbeiro, cheio de ansiedade, fez uma cova no chão e gritou lá para dentro: "O Rei tem orelhas de burro!", Repetiu, vezes sem conta, até achar que estava aliviado do segredo. Mais tarde, nesse local, nasceram canas, E um dia um pastor, ao passar, arrancou uma e fez uma flauta. E da flauta saiu uma melodia com a seguinte letra: "O Rei Midas tem orelhas de burro!". A frase, empurrada pelo, espalhou a história pelo reino. Todo o reino ficou a saber.

O barrete frígio - o barrete com que o Rei Midas escondia as orelhas grandes - passou à História. Foi adoptado, com a cor vermelha, pelos republicanos franceses que lutaram pela tomada da Bastilha, em 1789, que veio a culminar com a instalação da primeira república. A partir daí, o barrete frígio, vermelho, tornou-se um forte símbolo do regime republicano. O barrete frígio ou o barrete vermelho.

Os portugueses com a mania de copiar o estrangeiro, sobretudo o que vem de França, também adoptaram o barrete frígio, aquando da implantação da República em 1910.

Também a nossa "República" tem na cabeça um barrrete frígio. Um barrete frígio? Porquê? É estranho. Fico perplexo. Para esconder as orelhas grandes? Para esconder as orelhas de burro? Que quiseram ocultar os nossos republicanos? 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Estar na berlinda


"Estar na berlinda" é uma expressão popular que significa entre outras coisas, "ser alvo de atenção geral", assim reza o Dicionário da Língua Portuguesa da P.E. Se quisermos saber mais, podemos consultar o Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes, de Emanuel de Moura Correia e Persília de Melim Teixeira. Aqui podemos ler que "Estar na berlinda" quer dizer: Chamar a atenção sobre si; ser objecto de comentários; estar condenado a fazer certa coisa; estar na ordem do dia; ser alvo de atenção geral.

Mas onde fomos nós buscar a berlinda para caraterizar esta situação de chamada de atenção sobre alguém? Pois, berlinda, ainda segundo o citado Porto Editora, é "uma carruagem antiga de dois assentos e quatro rodas". 

E o que tem a ver esta "carruagem antiga de dois assentos e quatro rodas" com a tal expressão corrente de "alguém ser alvo de atenção"?

Recuemos ao século XIX. Mala-Posta surgiu então em Portugal, como antes havia acontecido em outros países da Europa. No tempo em que os correios a pé ou a cavalo deram lugar ao transporte em carruagem e abrangiam também o transporte de passageiros.

Em Portugal houve várias carreiras. Uma delas era feita entre a Aldeia Galega (hoje Montijo) e Badajoz. Funcionou com o nome de "Reais Diligências de Posta" de 1929 a 1831, e, mais tarde, com o nome de "Mala-Posta", de 1854 a 1863.

De lisboa, os passageiros e as malas postais vinham de barco até Aldeia Galega (Montijo), porque era a maior distância entre as duas margens!, para aproveitar a estrada que era o rio Tejo. Depois, sim, continuavam de carruagem até Badajoz.

A berlinda era a carruagem da frente da Mala-Posta. Quem optava por ir na berlinda tinha de pagar o bilhete mais caro. Só para os ricos. Uma viagem para Badajoz chegou a custar 12.000 réis, um valor elevado para a época, acima dos restantes preços.

Mas, quem ia na berlinda não apanhava pó, não sofria tanto com os solavancos da carruagem e tinha melhor vista. Os que iam na berlinda eram olhados de outro modo. Iam na berlinda.

"Vivendo e aprendendo!" é outra expressão corrente que o povo usa.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Quem se julga o Sr. António Lobo Antunes?

O suplemento Ípsilon é o suplemento de artes do Público, publicado à Sexta-Feira. No passado dia 7, Sexta-Feira, o suplemento trazia uma longa entrevista com o escritor António Lobo Antunes.

Li esta entrevista e quando ele se refere ao Eça e ao Camilo, nem queria a creditar no que estava a ler. Vejamos. Em determinada altura, o entrevistador pergunta:

«É a experiência de vida a ditar o gosto?

António Lobo Antunes responde:

Claro. Se tivesse de falar assim de repente em escritores de que gosto, o Conrad, o Tolstoi… já reparou o que ele faz com frases tão simples? “Está frio, a cerejeira floriu, amanhã vamos à cidade”, com frases destas ele consegue exprimir tudo, filho da puta. Os manuscritos dele estão cheios de emendas. O que aquele homem trabalhava os textos… Só d’A Morte de Ivan Ilitch, do primeiro capítulo, há catorze versões conhecidas. Em Portugal nunca tivemos grandes escritores, ao nível destes. Quem é que o nosso século XIX tem para apresentar? O Eça e o Camilo. Uma vez vi uma crítica inglesa ao Eça que o destruía por completo porque o comparava com escritores de quem ele era contemporâneo. São estes nomes de que falámos. E de facto ao pé deles ele é um pigmeu. Temos óptimos poetas. Há poetas vivos muito bons. Mandaram-me um livro do José Luís Barreto Guimarães e gostei imenso daquilo. É bom. O José Tolentino Mendonça é bom. Mas em prosa não consigo. O problema pode estar em mim.»

Somos de facto um povo de ignorantes e de invejosos. Então, o Senhor António Lobo Antunes acha que em Portugal nunca tivemos grandes escritores, ao nível doutros que houve por essa Europa. Para ele, Eça ao pé deles é um pigmeu! Leio e não acredito. Esta coisa de apequenar o outro, o nosso confrade de ofício, para nós sobressairmos, é lamentável. 

Definitivamente, devo confessar que tenho uma relação difícil com este escritor. Quem se julga o Sr. António Lobo Antunes?

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Os cafés sonolentos dos poetas


Numa noite fria de Dezembro do ano de 1934, a poetisa brasileira Cecília Meireles, de visita a Lisboa, deslocou-se ao café A Brasileira, no Chiado, na companhia do marido, o português Correia Dias, para conhecer o poeta Fernando Pessoa. Assim haviam combinado. Porém, foi uma espera em vão, durante quase 2 horas. O poeta da Mensagem não apareceu. 

Já no Hotel, Cecília Meireles recebeu um pequeno volume, com este escrito::

A Cecília Meyreles, alto poeta, e a Correia Dias, artista, velho amigo e até cúmplice (vide "Águia”, etc... ), na invocação da Apolo e Atena, Fernando Pessoa, 10 –XII –34"

Tratava-se de um exemplar de Mensagem, que havia sido publicado muito recentemente.

Anos mais tarde, Cecília confessou “Como lamento não o ter conhecido!”. E escreveu numa crónica, com o título "Evocação lírica de Lisboa":

Mas tu preferes a penumbra dos cafés sonolentos, em cujas mesas todos os poetas da Lusitânia fincam algum dia o cotovelo e, fronte apoiada ao punho, criam aqueles sonhos que eles mesmos não governam (...)”.

Ai estes cafés sonolentos!... no tempo em que o poeta acreditava que a Portugal estava reservada uma missão superior e divina: a construção de um QUINTO IMPÉRIO. Um sonhador, um visionário!

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Adeus, mesas espelhentas do Martinho!

Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas, 
Eu domaria o mar que se enfurece 
E escalaria as nuvens rendilhadas. 

Se ela deixasse, extático e suspenso 
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las, 
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso 
Apagaria o lume das estrelas. 

Se aquela que amo mais que a luz do dia, 
Me aniquilasse os males taciturnos, 
O brilho dos meus olhos venceria 
O clarão dos relâmpagos noturnos. 

Se ela quisesse amar, no azul do espaço, 
Casando a suas penas com as minhas, 
Eu desfaria o sol como desfaço 
As bolas de sabão das criancinhas. 

Se a Laura dos meus loucos desvarios 
Fosse menos soberba e menos fria, 
Eu pararia o curso aos grandes rios 
E a terra sob os pés abalaria. 

Se aquela por quem já não tenho risos 
Me concedesse apenas dois abraços, 
Eu subiria aos róseos paraísos 
E a Lua afogaria nos meus braços. 

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos 
E os lamentos das cítaras estranhas, 
Eu ergueria os vales mais profundos 
E abateria as sólidas montanhas. 

E se aquela visão da fantasia 
Me estreitasse ao peito alvo como arminho, 
Eu nunca, nunca mais me sentaria 
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde

domingo, 9 de novembro de 2014

O Abraço de Cronos



Recebi do meu amigo Olidino, ilustre membro da Tertúlia Edípica, este texto que, com muito gosto, aqui partilho.


O Abraço de Cronos


“… As festas de Cronos eram estabelecidas em honra da igualdade que existia entre os homens no tempo em que Cronos, expulso do Céu, viera habitar a Terra…”

“… O tempo do seu reinado foi tão venturoso que de se denominou a Idade de Ouro. Nas festas de Cronos reinava uma verdadeira licenciosidade. Os escravos vestiam a toga e fingiam mandar nos senhores. Tudo lhes era permitido…”


Instintivamente deu consigo a olhar-se ao espelho. Com o olhar percorreu os contornos do rosto como se o fizesse pela primeira vez. Era aquele o rosto que os outros viam. Já tinha ouvido dizer que se podia ler no rosto. Teve medo dos seus pensamentos. O seu rosto, sabia-o, alterava-se em função das circunstâncias. Umas vezes jovial…outras soturno, outras ainda sereno e circunspecto, ainda algumas pálido, fogoso, alegre ou irritado. Mas o seu rosto tinha a elasticidade necessária para agir no “teatro” da vida, era digamos, já um mestre do artifício mental, o rosto adoptava o “ar” desejado para cada fim, ou não fosse um perfeccionista nesse tipo de “farsa”. Foram muitos anos, pensou. Pelo esforço de compreensão desta arte, fomos aperfeiçoando a capacidade de, se quisermos, mostrarmos aquilo que não somos. Quantas vezes não tinha sido uma máscara velada. Quantas não escondeu uma duplicidade. E nesta reinação, cada um mostra a máscara que entende, ou não fossemos súbditos de Cronos.

O olhar parou firme num ponto do espelho e admitiu que até vivemos numa festa permanente, ainda licenciosa e libertina para poucos, mas violenta e fatigante para muitos. A todos eles, participantes, Cronos, na sua magnanimidade, contemplou, tendo distribuído múltiplos deleites: o dinheiro, o trabalho, a religião, o fanatismo, os dogmas, as obsessões, as alienações, de acordo com as disposições de cada um. E este foi o presente envenenado de Cronos, preparado de acordo com o cenário de cada qual e à sua inteira medida, tal foi a sua preocupação. Nesse abraço fatal, qual bailado de máscaras, numa irresistível melodia sob a batuta de Cronos, diariamente rodopiam os pálidos, os enervados, os fogosos, os soturnos, os alegres, os bem dispostos e muitos mais, até ao dia do cansaço final.

Desviou enfim o olhar do espelho e ao mesmo tempo, sentiu que algo podia ainda ser feito, que o seu lugar na terra, ainda lhe pertencia e que no fundo, não era apenas mais um, que a infernal orquestra de Cronos não tocava a música de que gostava e que portanto, ainda podia continuar a olhar-se ao espelho com toda a confiança.

Olidino,  Braga, Setembro de 2014