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sábado, 28 de maio de 2016

O amor do teu nome


[…] Vou ouvir em paz o amor do teu nome. É um concerto para oboé e orquestra KV3 14 (285 d), é um concerto para Mónica, que giro. Primeiro o oboé entra muito tímido, encolhido e em bicos de pés, na grande massa orquestral. Depois a orquestra põe-se a olhar para ele - donde veio este miúdo? e ele faz umas tantas piruetas. Hei-de falar-te do Penedo, do Firmino, daquela fulana de seios em prateleira, agora deixa-me ouvir. O oboé deve estar a fazer o flic-flac e a roda e a orquestra espantada a ver. Querida. Quanto tu eras mais poderosa quando parecias mais frágil. A força do efémero. Da graça leve. Do que se esgueira do combate mas lhe corta os abastecimentos. A força de uma criança está na imensidão do seu possível sem nada ainda a possibilitá-lo — e então a orquestra deixa o oboé brilhar e ele entusiasma-se. Depois a orquestra entra no jogo. Como te amo. Entra no jogo numa espécie de desafio. E abafa-o, sufoca-o, outras vezes retira-se encantada a ouvi-lo. E liberto em si com um espaço largo para a sua liberdade, que garoto traquinas. A orquestra afasta-se mais e o oboé sozinho longamente, como ele brinca, dança, vejo-te, vejo-te. No espaço da Sé, no ginásio e eu grito-te Mónica, Mónica. Passa um vento, vou com ele na tua órbita. Mónica. Como te quero. […] 

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Devaneios Cruzadísticos-João Ricardo Pedro

"Um Postal de Detroit" é o nome do novo romance do escritor João Ricardo Pedro, pedido com a resolução do passatempo do mês de Maio.

Esta é a solução completa do problema:


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Respostas de: Aleme; Anjerod; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita; Baby; Caba; Corsário; El-Nunes; Elvira Silva; Filomena Alves; Fumega; Homotaganus; Horácio; Jani; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Mafirevi; Magno; Manuel Amaro; Manuel Carrancha; Manuel Ramos; Mister Miguel; Olidino; Osair Kiesling; Paulo Freixinho; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva e Virgílio Atalaya.

Vemo-nos por aqui! Até Breve(Alegria)! 

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Junto de um seco, fero e estéril monte


CANÇÃO IX

Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido,
onde nem ave voa, ou fera dorme,
nem rio claro corre, ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
cujo nome, do vulgo introduzido,
é Félix, por antífrase, infelice;
o qual a Natureza
situou junto à parte
onde um braço de mar alto reparte
Abássia da arábica aspereza,
onde fundada já foi Berenice,
ficando à parte donde
o Sol que nele ferve se lhe esconde;
nele aparece o Cabo com que a costa
Africana, que vem do Austro correndo,
limite faz, Arómata chamado
(Arómata outro tempo; que, volvendo
os céus, a ruda língua mal composta
dos próprios outro nome lhe tem dado).
Aqui, no mar que quer apressurado
entrar pela garganta deste braço,
me trouxe um tempo e teve
minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
parte do mundo, quis que a vida breve
também de si deixasse um breve espaço,
por que ficasse a vida
pelo mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
tristes, forçados, maus e solitários,
trabalhosos, de dor e de ira cheios,
não tendo tão-somente por contrários
a vida, o sal ardente e águas frias,
os ares grossos, férvidos e feios;
mas os meus pensamentos, que são meios
para enganar a própria Natureza,
também vi contra mi,
trazendo-me à memória
algũa já passada e breve glória,
que eu já no mundo vi, quando vivi,
por me dobrar dos males a aspereza,
por me mostrar que havia
no mundo muitas horas de alegria.
Aqui estive eu co estes pensamentos
gastando o tempo e a vida; os quais tão alto
me subiam nas asas que caía
— e vede se seria leve o salto! —
de sonhados e vãos contentamentos
em desesperação de ver um dia.
Aqui o imaginar se convertia
num súbito chorar e nuns suspiros,
que rompiam os ares.
Aqui, a alma cativa,
chagada toda, estava em carne viva,
de dores rodeada e de pesares,
desamparada e descoberta aos tiros
da soberba Fortuna:
soberba, inexorável e importuna.
Não tinha parte donde se deitasse,
nem esperança algũa onde a cabeça
um pouco reclinasse, por descanso.
Todo lhe é dor e causa que padeça,
mas que pereça não, por que passasse
o que quis o Destino nunca manso.
Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Estes ventos da voz importunados,
parece que se enfreiam!
Somente o Céu severo,
as Estrelas e o Fado sempre fero
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.
Se de tantos trabalhos só tirasse
saber inda por certo que algũa hora
lembrava a uns claros olhos que já vi;
e se esta triste voz, rompendo fora,
as orelhas angélicas tocasse
daquela em cujo riso já vivi;
a qual, tornada um pouco sobre si,
revolvendo na mente pressurosa
os tempos já passados
de meus doces errores,
de meus suaves males e furores,
por ela padecidos e buscados,
tornada — inda que tarde — piadosa,
um pouco lhe pesasse
e consigo por dura se julgasse;
isto só que soubesse, me seria
descanso para a vida que me fica;
co isto afagaria o sofrimento.
Ah! Senhora, Senhora, que tão rica
estais que, cá tão longe, de alegria
me sustentais cum doce fingimento!
Em vos afigurando o pensamento,
foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
me acho seguro e forte
contra o rosto feroz da fera Morte,
e logo se me ajuntam esperanças
com que a fronte, tornada mais serena,
torna os tormentos graves
em saudades brandas e suaves.
Aqui co eles fico, perguntando
aos ventos amorosos, que respiram
da parte donde estais, por vós, Senhora;
às aves que ali voam, se vos viram,
que fazíeis, que estáveis praticando,
onde, como, com quem, que dia e que hora.
Ali a vida cansada, que melhora,
toma novos espritos, com que vença
a Fortuna e Trabalho,
só por tornar a ver-vos,
só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o Tempo que a tudo dará talho;
mas o Desejo ardente, que detença
nunca sofreu, sem tento
me abre as chagas de novo ao sofrimento.
Assi vivo; e se alguém te perguntasse,
Canção, como não mouro,
podes-lhe responder que porque mouro.

Luís de Camões


Este é um dos mais emocionantes poemas de Camões, é a Canção IX, escrita em 1555, no Cabo de Guardafui, junto às águas do Golfo Pérsico. O poema apresenta Camões como o emigrante que não teve lugar na sua pátria e, no exílio angustioso, recorda, com emoção, as saudades e as figuras que amava e teve de abandonar. 

Começa por descrever, com muita exactidão, o lugar onde se encontra. Ele está no Cabo GuardaFui, chamado pelos gregos antigos como promontório Arómata. É o ponto mais oriental do continente africano. É o vértice do chamado Corno de África. Luís de Camões não cita o nome (é um bocadinho feio), mas refere-se a ele em “Os Lusíadas” (Canto X, 97) 

«O Cabo vê já Arómata chamado,
E agora Guardafú, dos moradores,
Onde começa a boca do afamado
Mar Roxo, que do fundo toma as cores;
Este como limite está lançado
Que divide Asia de Africa; e as milhores
Povoações que a parte Africa tem
Maçuá são, Arquico e Suaquém.» 

Luís de Camões descreve isso dizendo que está no sítio “onde um braço de mar alto reparte Abássia da arábica aspereza”, o ponto onde o mar divide África da Arábia. E onde foi fundada Berenice. Era uma lenda ao tempo do poeta. Julgava-se que tinha sido ali fundada a cidade de Berenice. No tempo do poeta acreditava-se nisso, que naquele ponto terrível do Mundo tinha existido a cidade de Berenice.

No poema ele continua a descrever o lugar dizendo que a costa africana que vem do Austro (Sul). Antigamente este cabo chamava-se Arómata (O Cabo dos Aromas), mas agora chama-se outra coisa (o nome é feio e o poeta nem o diz). Era Arómata, mas depois, volvendo os céus (ou seja, passando o tempo), a rude língua mal composta dos próprios (ou seja, o falar dos nativos) transformou aquilo noutro nome. “Aqui, nesta remota…ficasse a vida pelo mundo em pedaços repartida”. Antigamente, os tiranos castigavam os criminosos cortando-os aos pedaços que depois espalhavam por diversos lugares, uns aqui, outros acolá. Assim, também o destino lhe pôs a vida em pedaços pelo mundo. 

O Cabo Guardafui fica à entrada do Golfo de Aden e é aqui que está a garganta para se entrar no Mar Vermelho. É por este mar que vêm as esquadras turcas, que vêm disputar aos portugueses o comércio das especiarias. Por isso, os vizo-reis da India, neste caso D. Pedro de Mascarenhas, mandou para ali uma armada de marinheiros na qual foi Luís de Camões. Foi por isso que o poeta ali passou alguns dias, “aqui me achei gastando uns dias…” Ali esteve o poeta com os seus pensamentos, ora o levam tão alto, lhe fazem recordar essa alegria em que ele já tinha vivido, ora o levam a cair no desespero. Diz ele, “vede se seria leve o salto!” ou seja, que cai de repente da felicidade com que sonhava para a miséria em que está! Então o poeta rompe em choro com ele a dizer, “Aqui estou eu com estes pensamentos…”. O sofrimento do poeta até o mar acalma! Perante a dor, até os ventos sossegam! 

Os últimos versos parecem de uma grande importância para o entendimento dos próprios “Os Lusíadas”. Ele aqui, na Canção IX, chama bicho da terra a si próprio, mas em “Os Lusíadas” ele chama bichos da terra aos portugueses que acompanham Vasco da Gama. O Canto I termina com estas palavras: «(…) Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?». 

Repare-se que é exactamente a mesma expressão “o bicho da terra tão pequeno”. Dá quase para pensar que realmente o herói dos Lusíadas é Luís de Camões e não Vasco da Gama e que o poema é uma enorme autobiografia que o poeta traça para si próprio. 

O céu sereno, o céu severo, que se mostra potente e indignado contra os humilhados, são os poderosos que expulsaram Luís de Camões da sua Pátria e o obrigam a ir tão longe? Mas lá longe ele tem ao menos uma consolação: pensar que a mulher que ele lembra, talvez também essa mulher esteja a pensar nele, talvez... Se ao menos ele tivesse a certeza de que era assim. Diz ele “Se de tantos trabalhos…em saudades brandas e suaves”. E o poeta fica acompanhado só pelos pensamentos. 

A última estrofe é a seguinte “Aqui fico, perguntando aos ventos…” Versos dolorosos pela sua brutalidade. Os últimos versos dizem o seguinte: Bom, de um lado, há o tempo, do outro, há o desejo, o desejo carnal, que nunca conhece detença, que não pode ser travado. E é o desejo que lhe vem abrir de novo as chagas do sofrimento. Os versos são estes: “Diz-me o tempo que a tudo dará talho….”. Julga-se que o sentido final é claro: se alguém perguntar à Canção, “como é que com tanto sofrimento o poeta não morre?” A Canção que responda. Também o sofrimento pode ser fonte de vida? 

E foi realmente de sofrimento que o genial poeta viveu, desde este ano (1555) até que pode voltar à Pátria (14 anos depois) em 1569. Voltou a Portugal, entrou no Tejo e a mulher que ele amava ainda era viva. Não se sabe como ela o recebeu, se o recebeu, o que se sabe é que esse pobre homem, bicho de terra, vil e tão pequeno, saiu de Portugal porque era pobre, porque em Portugal não houve lugar para ele. Quando voltou, trazia no fundo da sua miserável bagagem o luso tesouro, o maior tesouro da língua portuguesa.

Texto produzido a partir de um programa da RTP1 "Camões (Saudades da Pátria)"

terça-feira, 10 de maio de 2016

e vais partir sem nada me dizer


Tempo em que se morre

Agora é verão, eu sei.
Tempo de facas, tempo em
que perdem os anéis as
cobras à míngua de água.
Tempo em que se morre de
tanto olhar os barcos.

É no verão, repito.
Estás sentada no terraço
e para ti correm todos os meus rios.
Entraste pelos espelhos:
mal respiras.
Vê-se bem que já não sabes respirar,
que terás de aprender com as abelhas.

Sobre os gerânios
te debruças lentamente.
Com rumor de água
sonâmbula ou de arbusto decepado
dás-me a beber
um tempo assim ardente.

Pousas as mãos sobre o meu rosto,
e vais partir
sem nada me dizer,
pois só quiseste despertar em mim
a vocação do fogo ou do orvalho.

E devagar, sem te voltares, pelos
espelhos entras na noite.

Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio