Morreu ontem em Lisboa aos 88 anos, o poeta António Ramos Rosa, um dos mais importantes da literatura portuguesa contemporânea, autor de vasta obra, desde “O Grito Claro” (1958), a sua célebre obra de estreia, até ao recente “Em Torno do Imponderável” (2012).
Foi um exemplo de entrega total à escrita, sempre muito discreto. Nunca se afastou do seu caminho pessoal.
Nasceu em Faro, no dia 17 de Outubro de 1924. Trabalhou algum tempo como empregado de escritório – experiência que terá inspirado o seu célebre Poema de Um Funcionário Cansado, incluído no seu livro de estreia – ao mesmo tempo que dava explicações de português, inglês e francês e traduzia autores estrangeiros.
Recebeu o Prémio Pessoa em 1988 e ainda quase todos os mais relevantes prémios literários portugueses, além de vários prémios nacionais e internacionais, quer como poeta, quer como tradutor.
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa, in Grito Claro