"Auto-Retrato", 1956, Óleo sobre tela, 92,5 x 72,5 cm, Museu Carlos Machado, Ponta Delgada [MCM 6930]
Natália Correia viveu quase toda a sua vida em Lisboa, cidade angular de toda a sua existência. Na capital escolheu a sua residência numa zona de confluência de várias camadas sociais. À distância ficava-lhe o Rato (espaço aristocrático), ao cimo o Marquês de Pombal (área burguesa) e, defronte, a Avenida da Liberdade (zona cosmopolita).
Corriam os anos 50, quando a escritora, então em início da sua fulgurante carreira, descobriu, casualmente, um 5.º andar na Rua Rodrigues Sampaio. «Um dia vim aqui visitar uns amigos e a atmosfera da casa atraiu-me logo. Eles mudaram-se e este apartamento esteve muito tempo devoluto, como que à espera que eu casasse e o alugasse».
Situava-se num edifício sólido e elegante, discreto e requintado com, no rés-do-chão, uma das melhores pastelarias-restaurantes da cidade. Natália Correia passou a habitar o último piso após o seu casamento, em 1953, com Alfredo Lage Machado. «Ele foi o grande amor da sua vida», confidencia-nos Helena Cantos (protagonista feminina do filme "Santo Antero"), e amiga íntima durante décadas.
Com invulgar bom gosto, a poetisa decorou-o. Na entrada, dispôs sobre numa credência um busto seu da autoria de Martins Correia. No salão principal instalou a biblioteca composta por milhares de volumes, um auto-retrato [imagem supra], um óleo de Cesariny, uma escultura de Júlio de Sousa e uma máscara de Eça de Queiroz. Em posição de destaque, uma gigantesca mesa-secretária, estilo império, com tampo de mármore escuro e pés dourados, cadeiras Luís XVI, porcelanas chinesas (herdadas da mãe), peças de artesanato e um tabuleiro de xadrez; numa sala anexa, vários quadros contemporâneos, um canapé, um par de 'bergeres' e um bar de estilo renascença.
Durante duas décadas, a casa tornou-se um dos mais pujantes salões literários de Lisboa, onde se reuniam, pelas noites fora, escritores, pintores e políticos.
«Natália Correia e o seu marido cederam a sua elegante residência», descreve um jornal da época, «para a representação da peça de Jean-Paul Sartre, "Huis Clos", inédita entre nós. Foi interpretada por Natália Correia, Maria Ferreira, Castro Freire e Manuel Lima».
O espectáculo, encenado por Carlos Wallenstein (açoriano), teve entre a assistência Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, João Gaspar Simões, Fernando Amado e Almada Negreiros.
Numa noite, em 1960, Henry Miller bate à porta de Natália que fica espantada. Ele entra, senta-se e discute com os presentes, entre os quais David Mourão-Ferreira e Delfim Santos, o tema do amor. Ao sair, o romancista norte-americano exclamará: «Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano 2000. Foi preciso vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa».
Entre outros vultos universais que a frequentaram, destacam-se Ionesco, Claude Roi e Michaux.