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sábado, 26 de maio de 2018

Eremita, A Criada


Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida.

Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.

Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.

Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar.

Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza.
Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta.

Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.

Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.

Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.

A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.

Clarice Lispector │Felicidade Clandestina (25 contos), 1971

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Devaneios cruzadísticos │Ferreira de Castro

"A Lã e a Neve" é o título de um romance do escritor português Ferreira de Castro, pedido com a resolução do passatempo referente ao mês de Maio de 2018.


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Recebi respostas de: Aleme; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita; Baby; Caba; Corsário; Dupla Algarvia (Anjerod e Mister Miguel); El-Nunes; Elvira Silva; Fernando Semana; Filomena Alves; Fumega; Gilda Marques; Homotaganus; Horácio; Jani; João Bentes; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Lulopes; Mafirevi; Magno; Magriço; Manuel Amaro, Manuel Carrancha; Manuel Ramos; Maria de Lurdes; My Lord; Neneiva; Olidino; Osair Kiesling; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva, Seven, Socrispim, Somar e Virgílio Atalaya.

Até ao próximo!

sábado, 19 de maio de 2018

Nossa Senhora de Paris


Nossa Senhora de Paris

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...

Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura,
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios--
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais...

- Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e velas...
Orgulho... Estrelas...
Vitrais! Vitrais!

Flores de Liz...

Manchas de cor a ogivarem-se...
As grandes naves a sagrarem-se...
- Nossa Senhora de Paris!...

Mário de Sá-Carneiro (19.5.1890 - 26.4.1916)
Paris, 15 de Junho de 1913

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Lendo eu "Aventuras de João Sem Medo", de José Gomes Ferreira, tropeço neste traço da narrativa, em que o protagonista, em viagem pelo Mundo Absurdo Mágico, pergunta à formiga: 
« - E as cigarras? Como despedem vocês agora as cigarras quando essas mandrionas vêm esmolar comida? Mandam-nas dançar como dantes

Pois, lembrei-me do poema do grande, mas muito esquecido, poeta João de Deus, poema que conheço desde o tempo dos bancos da escola:

A Cigarra e a Formiga

Como a cigarra o seu gosto
É levar a temporada
De Junho, Julho e Agosto
Numa cantiga pegada,
De Inverno também se come,
E então rapa frio e fome!
Um Inverno a infeliz
Chega-se à formiga e diz:
- Venho pedir-lhe o favor
De me emprestar mantimento,
Matar-me a necessidade;
Que em chegando a novidade,
Até faço um juramento,
Pago-lhe seja o que for.
Mas pergunta-lhe a formiga:
"Pois que fez durante o Estio?"
- Eu, cantar ao desafio.
"Ah cantar? Pois, minha amiga,
Quem leva o Estio a cantar,
Leva o Inverno a dançar!"

João de Deus (1830 - 1896)

terça-feira, 1 de maio de 2018

Devaneios cruzadísticos │Ferreira de Castro

Faz 120 anos, este mês, que nasceu o escritor português Ferreira de Castro, hoje muito esquecido e, todavia, um dos melhores escritores portugueses do Séc. XX, considerado, por muitos, um precursor do romance social, do Neo-Realismo português.

Ferreira de Castro era por muitos considerado o grande nome da Literatura portuguesa na primeira metade do Sec. XX.  Era então, pelo menos, o escritor português mais traduzido no Mundo. 

Nasceu em Ossela, Oliveira de Azeméis, no dia 24 de Maio de 1898, e morreu na cidade do Porto no dia 29 de Junho de 1974 (vítima de uma embolia). Repousa na Serra de Sintra, sob um banco talhado na rocha, numa vereda que conduz ao Castelo dos Mouros.

Acabada a escola primária, Ferreira de Castro, nascido no seio de uma família pobre, é mandado para o Brasil, onde se encontrava um familiar. Partiu aos 12 anos, no navio inglês “Nave Negra”, um pequeno navio. Sofreu muito no Brasil. Arranjou um emprego no seringal “Paraíso”, na longínqua Amazónia. Primeiro, mesmo no mato, mas ao fim de 3 meses é levado para os escritórios. Aqui, conheceu o Sr. Guerreiro, o guarda-livros, que, como o escritor conta em "A Selva", o iniciou nos labirintos  do charadismo.

Ao fim de 3 anos voltou a Belém do Pará, com 40 mil réis no bolso. Com 18 anos, em 1916, escreveu “Criminoso por Ambição”. Escreveu para jornais lá no Brasil. Nesses 5 anos escreveu alguns livros que, mais tarde, renegou. Os que podia, ele próprio destruía. Regressou a Portugal em 1919, com 400 mil réis. 

Escolheu a cidade de Lisboa para viver, para fazer pela vida. Escrevia para viver. Não teve outra profissão. Até que em 1928 publicou “Os Emigrantes” e em 1930 “A Selva”. Este último teve uma grande repercussão não só em Portugal, mas também no resto do Mundo. Muitos outros se lhe seguiram.

Escreveu ainda, a pedido do seu editor, “A Volta ao Mundo”, com base na sua própria experiência. Considerado um dos pioneiros do realismo social, o seu nome foi proposto por Jorge Amado para o Nobel.

É por isso que, desta vez, convido os meus amigos a resolver este problema de Palavras Cruzadas e, no final, encontrar o nome (5 palavras nas horizontais) do título de uma das principais obras do escritor Ferreira de Castro.


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HORIZONTAIS: 1 – Países; Próximo. 2 – Famas; Congelada. 3 – Estalido de vidro; Argola de ouro usada no nariz. 4 – Gritos de alegria; Pequena; Obstáculo. 5 – Segue; Fazenda. 6 – Acompanha. 7 – Dente queixal [regionalismo]; Tempo. 8 – Timão do arado; Costume; Riso. 9 – Parte carnuda que fica por baixo e atrás da garupa das cavalgaduras; Cãs [figurado]. 10 – Indício; Desvias. 11 – Beldade [figurado]; Avarento. 

VERTICAIS: 1 – Jugo [figurado]; Provir (de). 2 – Corda com que se aperta a carga do carro de bois [regionalismo]; Denso. 3 – Recusa; Composição poética lírica de assunto elevado, própria para ser cantada [plural]. 4 – Entusiasmo [figurado]; Fedor; Interjeição que exprime surpresa. 5 – Aquelas; Sujeito; Grito. 6 – Critica. 7 – Galha de uma espécie de carvalho; Progredi; meu [arcaico]. 8 – Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de vento; Liga; Simples. 9 – Ferro pontiagudo que remata as lanças e outras armas de cabo; De propósito. 10 – Modelar; Impregnar. 11 – Insalubre; Espécie de macaco asiático, muito utilizado em investigações científicas.

Clique Aqui para abrir e imprimir o PDF.


Aceito respostas até dia 20 de Maio, por mensagem particular no Facebook ou para o meu endereço electrónico, boavida.joaquim@gmail.com. Em data posterior, apresentarei a solução, assim como os nomes dos participantes.