Mia Couto tem uma obra literária extensa e diversificada, incluindo poesia, contos, romance e crónicas.
Terra Sonâmbula, o seu primeiro romance, foi publicado em 1992. Foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbabué.
Terra Sonâmbula foi o livro que revisitei, agora, na companhia dos meus amigos do Grupo de Leitura, da Casa Roque Gameiro, na Amadora.
A narrativa decorre em Moçambique, ao tempo da Guerra Civil (1976-1992). País devastado pela guerra, “pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras”.
Um machimbombo (autocarro) incendiado em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho TUAHIR e ao menino MUIDINGA, em fuga da guerra civil, devastadora, que grassa por toda parte em Moçambique. O veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há também um outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga os “cadernos de Kindzu”, o longo diário do morto em questão. A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: uma, a viagem de Tuahir e Muidinga; outra, em analepse, o percurso de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros.
Quem é o “herói” da história, quem é o personagem principal da narrativa? Por mim, responderia KINDZU. É ele que deixa os cadernos nos quais está descrita a principal história. Ele é um jovem com sonhos e que, no final, passará o seu testemunho a outro jovem, ao miúdo MUIDINGA. Será mesmo este o nome deste miúdo? Veremos no fim.
KINDZU é um narrador na 1ª pessoa. Conta-nos a sua história desde o início. Filho de Taímo, pescador. Na família, o último a nascer é Junhito, que se há-de transformar num galo. KINDZU, sem família, despedaçada pela guerra, decide-se ir à procura dos naparamas, guerreiros tradicionais. No fundo, é o sonho dele.
Vai, umas vezes por terra, outras por mar, até que encontra, num barco abandonado, FARIDA, mulher bonita, “ beleza era de fugir o nome das coisas”. Também esta fugira da sua aldeia por causa da guerra. FARIDA conta a sua história e, no fim, pede a KINDZU para este ir à procura do filho, GASPAR.
KINDZU larga o seu sonho (temporariamente) e parte à procura de GASPAR. Corre Ceca e Meca, interroga este e aquele, deposita totalmente a sua esperança em QUINTINO, em VIRGÍNIA e, ainda, na tia EUZINHA. Mas nada...
Resultam infrutíferas todas as diligências. Está tudo escrito nos cadernos.
Desanimado, tem ainda a noticia que FARIDA morreu. Sente-se desobrigado de procurar GASPAR e retoma o seu sonho de ser um naparama. Decide que, no dia seguinte, embarcará no machimbombo.
Porém, antes de partir, quer deixar escrito nos cadernos o sonho da última noite. Aqui, é um golpe genial de Mia Couto, guardando, para o final, um desfecho fantástico. KINDZU vai morrer, mas ninguém é capaz de escrever a sua morte. Como tal, é o sonho que diz ao leitor como ele vai morrer. O Machimbomo espalma-se contra uma árvore e incendeia-se. KINDZU cai na berma da estrada, vacila, deixa cair a mala onde leva os cadernos. Consegue ainda andar com a força que o pai lhe dá. Ao longe vê um miúdo com os seus cadernos na mão e chama, com o peito sufocado: GASPAR!!!.
Voltamos ao inicio da narrativa. Afinal, ficamos a saber que o miúdo que tomou os papéis, o seu verdadeiro nome é GASPAR, não MUIDINGA!
O nome MUIDINGA tinha sido dado pelo velho TUHIR, que o salvara da morte, por piedade, e que o adoptou e lhe pôs o nome de MUIDINGA, por ser este o nome do seu filho mais velho, já morto.
Mia Couto, interrogado se “sofreu” ao escrever Terra Sonâmbula, respondeu assim:
«O que me custou escrever Terra Sonâmbula fez parte do próprio processo de catarse, de afastamento dos fantasmas que a violência da guerra instalara em mim. Precisava de percorrer esse caminho, fui essa personagem do livro que caminhava pela berma do mundo, onde se misturam as fronteiras do mar e da terra. Os livros devem permitir isso: que o autor seja autorizado pelas outras personagens a ser mais uma das personagens».
Lá está! Mia Couto identifica-se com KINDZU, aquele que caminhou pela berma do mundo, umas vezes em terra, outras por mar; aquele atravessou as terras devastadas da guerra em procura de GASPAR; o único (todos os outros assistentes se transformaram em bicharada) que recebeu do feiticeiro a mensagem final, «…Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu»; aquele que há-de ser o porta-estandarte da mensagem sentenciada pelo feiticeiro, escrevendo-a no último caderno; aquele que “entrega” o testemunho ao miúdo MUIDINGA, afinal a GASPAR, quem ele procurava!
O sonho é a porta por onde nos chegam as memórias. É assim que sucede nas nossas vidas. Livro absolutamente imperdível!