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segunda-feira, 26 de abril de 2021

Devaneios cruzadísticos │ Ruy Cinatti

"Conversa de Rotina" é o nome de uma obra do poeta português Ruy Cinatti (1915 - 1986), pedido com a resolução do passatempo de palavras - cruzadas, referente ao mês de Abril de 2021.


Recebi respostas de: Aleme; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita Marçal; Baby; Caba; Candy; Corsário; Crispim; Dupla Algarvia (Anjerod e Mister Miguel); El-Danny; El-Nunes; Elvira Silva; Fernando Semana; Filomena Alves; Fumega; Gilda Marques; Homotaganus; Horácio; Jani; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Julieta; Juse; Mafirevi; Magno; Manuel Amaro; Manuel Carrancha; Maria de Lourdes; Manuel Ramos; My Lord; Neveiva; Olidino; O. K.; Par de Pares; Raquel Atalaya; Reduto Pindorama (Agagê, Joquimas e Samuca); Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva; Seven; Socrispim; Somar; Virgílio Atalaya e Zabeli.

Grato a todos.
Até ao próximo!

quinta-feira, 22 de abril de 2021

À Memória de António Nobre e de Cesário Verde

Eu comi uma inglesa.
Foi em Sintra. Era feriado.
Com esparregado e essa tinta
mint-sauce. Em português,
molho de hortelã-pimenta
com vinagre. Uma beleza!
Alguma batata frita.
Mas eu quis fetos arbóreos,
musgo das fontes, avenca
e pétalas de camélia,
branca-rósea,
para enfeitar a travessa
e trincar, de quando em quando,
uma pétala na fímbria
das orelhas da inglesa,
dizendo: «O tempo está
tão lindo! Não achas, Daisy?»

«I like Shelley» - dizia ela,
cheirando a colégio d'Oxford.
«Swift Summer into the Autumn flowed...
tem tradição. Vem de Chaucer.»

«Eu também gosto» - eu disse,
paraninfo de Euricides -
«porém prefiro John Keats.
I stood tip-toe
Upon a little hill
tem mais naturalidade.
É como se estivesse aqui.
Quanto ao Byron, tu bem sabes
como ele soube viver Sintra:
A glorious Eden inhabited
by savage Lusitanians.
À sova não me refiro.
Tudo isso é história antiga».
«It's true! É verdade!»
(disseste-o, desmemoriada,
mas reticente...
e dobraste-me a parada)
«Mas não esqueça o que ele sofreu
quando dizer lhe vieram:
Shelley morreu.
- Atravessou o Helesponto
a nado!...
I weep for Adonais...»

«Não, não é.» - contestei eu.
«Isso é do Shelley, dedicado
a Keats.
I weep for Adonais
because he is dead.

Eu choro Adonais
porque morreu.

Não está mal... a tradução,
mas tem razão!
Eu sou português e não
falo com a boca cheia.
Esta mania lusíada
de cuspir no chão é feia.
Nós não vivemos na selva.»

E ela, tola-lograda:
- «Dont be silly. Há o fado!
I like fado. Não gostas!
Tu tens a melena cheia
de brilhantina. You look
almost like a fadista!»

Passei a mão pela testa
e desgrenhei a madeixa,
dizendo: - «Queres morangos,
figos, amoras ou beijos?...»

.............

«Obrigado, obrigado, Daisy.
Não sei se estás a troçar
ou a brincar...
pulling my leg para ti.
Mas, enfim, vamos passear
até ali.»

(No fundo, o que eu desejava
era mordê-la na boca,
meter-lhe a mão entre os seios,
voar a cavalo nela.)

Foi uma tarde acabada
na relva, sob pinheiros,
chamaecyparis, ulmeiros,
sequóias, abetos, faias
e a cor azul das hortênsias.

Foi sobre a relva orvalhada
pelo frescor de um riacho,
quando o sol obliquava
e em volta era tudo selva,
que eu comi uma pantera
escura, feroz, inglesa,
com o cheiro de violetas
debaixo do meu nariz.

(Fulva, para quem quiser
modas pré-rafaelitas,
a pantera! Tanto faz!
Ou morena. Convenção
como convém a uma inglesa
convencional, de ocasião.)

E quando nos despedimos
- era noite, havia estrelas -
disseste com essa fleuma
que tão mal me fica a mim:
- «I'll see you later. Do come.
Vem amanhã tomar chá.
Eu gostar muito de ti.»

Loira, era loira a inglesa
que eu comi...
Verde, devia dizer.
Branca-rósea, uma camélia,
que eu comi, ou que colhi.
Já nem sei...
A savage Lusitanian,
dei-lhe só o que ela quis.
Ou queria...
Com peitinhos de perdiz
e alguma poesia:

The air was cooling
And so very still.


Ruy Cinatti (Londres, 8 de Março de 1915 — Lisboa, 12 de Outubro de 1986)

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Daniel Sampaio (um testemunho)

 Para ti,  Ana Catarina,  esta "história" do amigo Prof. Dr. Daniel Sampaio


Daniel Sampaio O psiquiatra sobreviveu para contar a experiência mais forte com que até hoje foi confrontado: a da luta pela própria vida. Infetado pelo vírus SARS-CoV-2 aos 74 anos, esteve internado durante 50 dias, precisou de ser entubado e ventilado, mas decidiu viver.

“Houve momentos em que achava que me devia deixar morrer”

Está bastante mais magro, perdeu dez quilos, sobretudo de massa muscular. A voz é de um homem mais velho do que os atuais 74 anos e parece que cada palavra sai num sopro cansado. Mas está lúcido, inteiro.

Viu a morte de perto, passou por experiências emocionais únicas, descobriu em si mesmo um homem que não conhecia. Mais frágil, chegou a pensar desistir, mas também dono de uma resistência que nunca se sonhou capaz. Agarrou-se à família e agradece a quem por ele rezou a um Deus que ele, não crendo, respeita. A covid-19 modificou-o e apesar do embate conseguiu manter a integridade de ser quem era. Diz que esta é “uma doença do desamparo”, pede que se respeite a virulência do vírus e recomenda todos os cuidados que se conhecem há muito tempo. Partilha de forma tão espontânea e sincera a intensidade do que passou que o que estava previsto para ser uma entrevista transformou-se na recolha de um testemunho. A jornalista apagou-se para ouvir quem tem muito para contar.

“Tenho aqui neste caderno todas as datas anotadas para não me enganar. É interessante que cognitivamente estou muito bem, o que passei foi físico e psicológico, a memória e a inteligência estão preservadas. Em janeiro estava a fazer a minha vida normal, com atividade intensa no consultório e fazer a supervisão da formação em Terapia Familiar. Mas tenho de assumir que fui displicente. Estava muito preocupado com o que o isolamento faria à saúde mental das pessoas e pensei que a doença não era tão grave, que não me aconteceria nada. Descuidei-me, e é preciso dizê-lo porque é necessário respeitar as regras.

“Reconheço que fui displicente. Pensei mesmo que a doença não era tão grave. Descuidei-me”

A minha mulher foi a primeira a ser infetada. Inicialmente parecia que a doença dela seria benigna, foi ao hospital e mandaram-na embora, só com medicação, mas, dois dias depois, foi internada com falta de ar. Fiquei sozinho em casa durante cinco dias. Com o apoio dos filhos que traziam a comida. Fiquei a ler, mas já devia estar com o oxigénio muito baixo porque não me lembro de nada, apaguei essa fase da minha vida. Só me recordo de, a 5 de fevereiro, entrar no Hospital de Santa Maria de ambulância.

As pessoas com quem falei ao telefone enquanto estive sozinho em casa acharam o meu discurso estranho, contaram-me depois que eu dizia que a minha mulher estava doente e que íamos morrer os dois. Não me lembro, até que uma amiga mandou-me ver o oxímetro. Não fui prudente e naqueles dias em casa não olhei para o aparelho porque não sentia nada de especial. Quando olhei, estava em 90 e à noite com 88 [é perigoso estar abaixo de 95]. Avisei os meus filhos, que chamaram o INEM. A 28 de janeiro fui para as urgências de Santa Maria e só fiquei um dia na enfermaria, onde já estava a minha mulher, embora não me recorde. Só me lembro de estar a contar uma história de infância a uma enfermeira, em que eu estava com um colega num carrinho de choque e que, num embate, as moedas dele voaram todas pelo ar. Não sei porque contei esta história, ria-me muito e ainda ouvi dizerem que tinha de ir para os cuidados intensivos, onde acabei por ficar 15 dias ventilado, em coma induzido.

“Ouvi dizerem que tinha de ir para os cuidados intensivos, onde fiquei 15 dias ventilado”

Quando tiraram os tubos e comecei a respirar, não mexia nem braços nem pernas. Estava um corpo completamente inerte. Só mexia as mãos. Davam-me a comida na boca e faziam-me os tratamentos. Conseguia falar, mas entendiam-me mal. Aliás, a voz estava, e ainda está, diferente. Não tinha telefone porque nos cuidados intensivos ninguém tem; os médicos têm um walkie-talkie para comunicarem com os serviços, e mais nada. Estava no piso cinco, na antiga unidade de gastro, que foi convertida numa UCI para doentes covid. A experiência foi muito dura porque há um barulho terrível e permanente provocado pelas máquinas a que os doentes estão ligados, com apitos e alarmes constantes, e é impossível sossegar. Nesta altura eu estava confuso.

Em psiquiatria chamamos confusão mental à presença de ideias que não são reais. Por exemplo, contei a uma médica e a uma enfermeira — que me ouviam absolutamente perplexas — que tinha feito uma viagem ao Brasil e tinha gostado muito. Nós, psiquiatras, não contrariamos doentes que estão a delirar, mas elas diziam que não era possível, que eu não tinha saído de lá. E eu teimava que tinha ido com todos os doentes dos cuidados intensivos ao Brasil, como prémio por nos termos portado bem. Uma palavra que também aparecia constantemente era ‘morabeza’. É interessantíssimo porque depois fui pesquisar e descobri que é o nome de um hotel em Cabo Verde, que posso ter visto numa viagem, e significa amabilidade e gentileza. O meu cérebro foi à procura dessa palavra. Também confundi as fisioterapeutas com as filhas de uma colega que já morreu. Nunca interpretei o que pensava porque estava completamente convencido do que dizia. São efeitos de ter estado 15 dias desconectado da realidade e de que aos meus processos mentais vieram elementos do inconsciente.

Há mais duas histórias que quero contar. Convenci-me de que nos cuidados intensivos havia um médico que tinha quatro gatos. Eu gosto muito de gatos, mas esse médico nunca existiu, embora eu falasse com ele, chamava-se Hugo, e contava-me coisas dos gatos. Também me lembro de estar numa grande escuridão e de uma enfermeira se aproximar, chamar-me pelo nome e eu acordar e ver o teto todo cheio de estrelas. Deviam ser os períodos em que tentavam acordar-me do coma. Eu vi acontecer com os outros doentes: ‘Sr. António, está nos cuidados intensivos! Sr. Luís consegue ouvir-me?’ Pode ter acontecido realmente. Tudo isso foi na primeira semana na UCI, depois comecei a recuperar e a fazer uma crítica do que dizia. Foram experiências realmente muito intensas.

Na segunda semana, comecei a ficar muito lúcido, a ler, a fazer fisioterapia e a melhorar, e passei para a enfermaria. Negativei da covid-19 ainda nos cuidados intensivos. Mas antes apanhei uma bactéria hospitalar. Foi grave porque comecei a ter febre alta, confusão mental e senti-me mesmo muito mal. Administraram-me antibióticos muito fortes, penso que os mais fortes que havia, e conseguiram controlar rápida e completamente a infeção. Para a covid-19 só fiz corticoides. Não fiz nenhuma medicação experimental.

Estive na enfermaria de 26 de fevereiro a 19 de março. No total foram 50 dias de internamento, foi brutal. Faço 75 anos em setembro. Na enfermaria, a experiência foi muito boa. Só tenho uma palavra para classificar o atendimento: excecional. Ternura, cuidado, assistência operacional e humana insuperáveis. A equipa era de gente muito jovem. As auxiliares, que com certeza ganham muito pouco, tinham uma dedicação enorme e tratavam os doentes por ‘querido’ e por ‘amor’. Nunca ouvi um queixume ou protesto, mesmo perante doentes muito difíceis, muito exigentes. Durante a noite, estavam lá sempre que era necessário.

“Lembro-me de uma grande escuridão, uma enfermeira chamar-me e ver o teto cheio de estrelas”

Acho que fui um doente colaborante e com muita sorte porque tive um companheiro de enfermaria, um senhor de 78 anos que tinha trabalhado toda a vida num banco. Combinámos que a nossa relação ficava na recordação daqueles períodos que vivemos juntos e que guardaríamos na memória. Ele propôs e eu concordei. Ele sabia quem eu era e disse ter uma grande admiração pelo meu irmão [o ex-Presidente Jorge Sampaio]. Conversámos sobre os sistemas bancário e de saúde, sobre a maçonaria e sobre literatura. Saiu uns dias antes de mim e foi uma companhia muito agradável.

Éramos quatro naquela enfermaria e foi muito difícil quando um de nós morreu. Todos percebemos a meio da noite que ele iria morrer. A morte está sempre presente na covid grave. A doença é muito ameaçadora. Uma ameaça difusa. Eu não tinha dores nem me sentia mal, mas não podia largar o oxigénio. Tínhamos de lutar para que o pulmão funcionasse melhor e sabíamos que em muitos casos não se consegue. Eu era o único que tinha estado em cuidados intensivos e era o mais frágil por isso. Mas estar em enfermaria não era garantia. É público que, no mesmo período, morreu Maria José Valério, com o cachecol do Sporting. Dos quatros internados naquela enfermaria, três éramos sportinguistas, e, quando ela entrou, vieram-nos dizer. Ela tinha 87 anos. Depois, também nos vieram dizer que ela tinha morrido.

“Eu tive uma boa carreira, mas, sem demagogia, o mais importante que construí foi a família”

A presença da morte é muito inquietante. Um dos colegas de enfermaria acordou certa noite assustado porque tinha sonhado que o tubo do oxigénio tinha-se enrolado à volta do pescoço e que não conseguia respirar. Estávamos sempre de máscara e era um inferno para comer. Com a mão esquerda tínhamos de tirar a máscara e comer com a direita, mas bastava o tempo de levar o talher à boca para sentir a falta do ar. O senhor com quem eu falava muito um dia esqueceu-se de colocar a máscara e tentou levantar-se do cadeirão para ir à cama, caiu e ficou sem poder respirar. Tivemos de pedir ajuda porque ele não conseguia levantar-se sozinho. Havia uma sensação de companheirismo muito grande, sobretudo entre os três sportinguistas. Ouvíamos o relato numa altura em que o Sporting estava a vencer, o que nos animou muito. E fomo-nos amparando uns aos outros, embora fôssemos muito diferentes. O quarto doente não falava e foi o que faleceu.

Demorei cerca de três semanas até ter algum controlo sobre o meu corpo. Só comecei a andar uma semana antes de sair do hospital. Cheguei a temer nunca recuperar. O medo mais angustiante era o de perder a memória e a lucidez, duas características minhas. A certa altura telefonei a um neto e disse: ‘Já tenho a certeza de que não vou ficar estúpido!’ Ele ficou muito admirado, não percebeu, mas foi quando tive a segurança de que estava lúcido. Também foi importante sentir que a fisioterapia fazia efeito. Ainda nos cuidados intensivos, era horrível porque tinha de ficar um ou dois segundos em pé e imediatamente tinha de me deitar. Depois, o tempo em que ficava de pé foi aumentando. Os primeiros passos que dei foram apenas três, achei muito poucochinho, mas o fisioterapeuta achou ótimo. A pouco e pouco, com a ajuda dele, fui andando e nos últimos dias, andei sozinho.

Certa noite disseram-me que iam tirar o oxigénio porque tinha estado bem durante o dia e que iria dormir sem oxigénio e pedi, ‘por favor, não me façam isso, que não vou dormir pensando que me vai faltar o ar’. Então só tiraram no dia seguinte. O medo é muito grande. A fisioterapia era limitada pelo comprimento do tubo do oxigénio. Quando o tubo foi retirado, pude ir para o corredor andar e foi uma sensação maravilhosa. O fisioterapeuta tinha a mão por trás de mim para me amparar e eu dizia: ‘Agarre-me!’ Ele respondia que não, mas que estava ao meu lado e não me deixaria cair. Era muito bom passar pelas outras enfermarias e receber os parabéns. Também foi muito bom quando acabou o tempo da arrastadeira. Nestas situações perdemos o pudor e há uma intimidade partilhada, que só é um problema no primeiro dia. Alguns dos médicos tinham sido meus alunos e sempre pensei que se precisasse não gostaria de ir para Santa Maria porque me sentiria constrangido. Mas habituamo-nos. Também foi muito reconfortante poder tomar o primeiro banho de corpo inteiro. O auxiliar que me acompanhou era um brasileiro, muito simpático. No chuveiro, havia um banco e eu perguntei se devia tomar banho de pé ou sentado e ele disse que era como preferisse. E ficou o tempo todo à minha espera, por trás do cortinado.

“Certa noite disseram-me que iam tirar o oxigénio e eu pedi, ‘por favor, não me façam isso’”

Apesar de tudo o que passei, não foi a dependência da idade o que mais me marcou. Um dos companheiros de enfermaria tinha 50 anos e estava mais dependente do que eu, sobretudo do ponto de vista psicológico. Deixava-se ir abaixo. Não comia; eu comi sempre tudo. O que me deu força foi a minha família. Tenho três filhos e sete netos. Somos muito coesos e foi extraordinário poder comunicar com eles, o que só aconteceu quando fui para a enfermaria. Uma das cenas mais emocionantes foi quando o senhor bancário fez anos e permitiram que o filho o fosse ver. Foi espantoso porque o filho era muito alto e o pai era baixinho e ele encostou a cabeça no ombro do filho e desatou a chorar. Foi lindo, mas foi a única visita enquanto estive na enfermaria. Arranjaram um bolo e foram muito atentos. Mas durante todo o internamento, eu só contactei com a minha família por telemóvel. Falava duas vezes por dia com a minha mulher. Tínhamos comemorado 50 anos de casados em dezembro. Também foi extraordinária a certeza com que fiquei de que tenho muitos amigos. Não faz ideia da quantidade de pessoas que entrou em contacto comigo, pessoas absolutamente inesperadas, que eu não via há anos. Foram mensagens de encorajamento extremamente importantes.

Na enfermaria li 700 páginas. Comecei com um policial e também um romance maravilhoso do Javier Marías, que li pela noite fora. Tive sorte porque uma colega de psiquiatria pediu licença para me visitar e mascarava-se toda e lá ia. Levou-me quatro livros. Nunca tive problemas de concentração. Nós, os três sportinguistas, fizemos uma frente contra a televisão e foi bom porque houve silêncio, que nos permitiu ler. Eu tinha um rádio de pilhas e ouvia as notícias e um pouco de música. Mas sobretudo li muito e depressa. À noite só dormia com medicação e mesmo agora, o meu sono ainda está alterado. Também fiquei com uma arritmia no coração, que dizem que será reversível.

Quando acordei nos cuidados intensivos, não perdi o meu sentido de identidade. Nos momentos mais difíceis, como quando tive de fazer uma TAC pulmonar, pensei nos membros da família, um por um e por ordem de idade. E depois usei esta técnica várias vezes. Tinha um enorme desejo de os tornar a ver e fui recebendo deles uma energia extraordinária. Era uma força psicológica. Nos cuidados intensivos, como não falei com ninguém, era só o meu pensamento, depois, na enfermaria, todos telefonavam. Também pensei no meu pai e muito na minha avó. E tive algumas recordações em momentos em que estive mal, como quando sonhei acordado, em que pedia para não me fazerem mais tratamentos e me deixarem morrer.

Mas nunca desisti, sempre me disse que se me deixasse abandonar, morreria. Sabia que não podia parar de lutar e pensava que o que não nos destrói vai-nos deixar mais fortes. Dizia isso a mim próprio. Estive quase destruído. A infeção bacteriana quase me derrubou, pensei que ia morrer. Mas eu não queria morrer, pensava que ainda tinha alguns anos de vida, que queria fazer muita coisa e que tinha família e bons amigos. Sabia que se não fosse destruído, ia ficar uma pessoa melhor. Esta é uma mensagem importante que quero transmitir. Porque o sofrimento é muito grande, as pessoas não têm a noção do que é esta doença. É uma doença em que é fundamental lutar porque a própria doença provoca um desamparo. Porque para uma infeção ou para um cancro já há medicamentos, cirurgias. Aqui não há tratamentos específicos. São remendos. E a sensação de que o ar não entra e o cansaço absolutamente terrível são esgotantes.

O Serviço Nacional de Saúde funciona muitíssimo bem. Foi o SNS que me salvou. Agora irrito-me muito quando dizem mal do SNS porque a coesão da equipa, o modo como funcionam, a capacidade profissional, senti tudo no dia a dia. Estou a ser acompanhado em cardiologia por uma ex-aluna. Foram muito delicados e tudo funciona à hora. Estão organizados. Quando saí do hospital, a 19 de março, ficou pouca gente no serviço. Vamos lá ver se conseguimos que não haja outra vaga.

Cheguei a casa no Dia do Pai. Foi muito simbólico. O meu filho mais velho foi-me buscar. A minha mulher estava à janela e eu atravessei a rua sozinho para ela ver que eu estava bem. Ela ficou muito contente. Sempre disse que queria fazer 80 anos e pensei que não chegava lá. Várias vezes pensei que ia morrer, mas tive grande determinação em viver. Também sempre disse que não era ateu, mas agnóstico, e lembrei-me de uma frase de Voltaire, que, quando indagado sobre a sua relação com Deus, dizia: ‘Cumprimentamo-nos, mas não nos falamos.’ Eu tenho muito respeito pela ideia de Deus, não sou crente, mas confesso que muitas vezes pensei em Deus e se ele me podia ajudar. Tive imensa gente a dizer que estava a rezar muito por mim, eu agradecia e foi muito reconfortante. Nunca minimizei a fé dos outros e a ideia de que Deus eventualmente me poderia estar a ajudar foi uma ideia boa. Uma antiga doente disse-me que estava a fazer reiki, e eu não acredito, mas disse-lhe: ‘Faça!’ Foram experiências muito interessantes. Vou escrever um pequeno livro sobre o que passei.

“Não sou crente, mas confesso que muitas vezes pensei em Deus e se ele me podia ajudar”

Contactei com uma parte minha completamente desconhecida. Contactei com o desespero, eu que sou habitualmente uma pessoa calma. Foram momentos em que me encontrava desamparado e achava que me devia deixar morrer. Mas encontrei também em mim uma resistência que achava que não tinha. Como estava muito fragilizado, pensei que não teria forças, mas descobri uma força que estava escondida e que me permitiu continuar a lutar. Foi na enfermaria, porque nos cuidados intensivos estava desesperado, o barulho era insuportável. Fiz muitos balanços da minha vida e foram sempre positivos. Constatei que o mais importante que fiz foi ter constituído uma família. É importante que se diga isso numa altura em que as pessoas privilegiam as carreiras. Eu tive uma boa carreira, mas, sem qualquer demagogia, o mais importante que construí foi a família.

Os meus netos ajudaram-me imenso. Porquê? Porque são muito alegres, têm muita saúde e uma voz muito bonita ao telefone. Sobretudo o mais velho, que tem o curso de teatro [que Daniel Sampaio sempre quis seguir]. Quando me ligava com aquela voz linda, sentia uma tranquilidade imensa. Mas foram todos eles, pelas mensagens, os emojis que mandavam, o que contavam das suas vidas. Abraçá-los no regresso a casa foi muito emocionante. Vieram todos no Dia do Pai. Um deles não conseguiu dizer nada, mas eu sentia a respiração dele ofegante. Eles passaram também por momentos difíceis, em que os médicos não conseguiam dar nenhuma esperança. ‘Não está pior, mas não está melhor’, e era tudo o que diziam. Mas um dia tiraram os tubos e eu fiquei bem. Ainda falamos pouco sobre isso entre nós.”


Texto Christiana Martins, in Jornal Expresso de 17/4/2021


segunda-feira, 12 de abril de 2021

Morte em Timor, por Ruy Cinatti

Morte em Timor

Sobre Timor um fogo fino paira,
alastra, crepita quando da terra se aproxima
e crescente, envolvente, cerca os montes
e coroa se afirma.

Meus olhos sentem a beleza rubra
ululante de cães pela noite fora,
a paciência da floresta destruída
catana na raiz e depois cinza.

Minha incompreensão em vão procura
ressuscitar as crenças vãs de outrora,
os bosques sagrados onde o frio habita
no temor que as mãos prende e petrifica.

Minha imaginação em vão procura
deter com astros e outras mãos a sina
insidiosa qual a morte de homem
ancorado na árvore que sobre a terra se persigna.

E vejo um monte de palha
ardendo do cimo ao mar que ondula e se derrama nas praias
e contra o denso fumo que circunda,
avanço, resoluto, archote em vida,
proclamando a verdade do cântico,
a dança terreal que me fascina.


Ruy Cinatti, in “Obra Poética”

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Devaneios cruzadísticos │ Ruy Cinatti

Ruy Cinatti nasceu em Londres em 1915, no dia 8 de Março. Neto do então Cônsul Geral português, Demétrio Cinatti. Morreu em Lisboa, no dia 12 de Outubro de 1986. Foi um poeta, antropólogo e agrónomo português.

Em criança veio para Lisboa e formou-se em Agronomia. Foi meteorologista, secretário do governador de Timor, chefe dos Serviços Agronómicos no mesmo território e investigador da Junta de Investigação do Ultramar. Ficou definitivamente ligado a Timor, terra que amava e visitou por diversas vezes.

Doutorou-se em 1961 na Universidade de Oxford, Inglaterra, em Antropologia Social e Etnografia.

A sua passagem pela Universidade de Oxford serviu-lhe de pretexto para desenvolver o estudo do povo timorense. Filmou no território imagens hoje recolhidas na Cinemateca.

Foi co-fundador, em 1940, de “Os Cadernos de Poesia”, e em 1942 da revista “Aventura.” Recebeu o Prémio Antero de Quental em 1958, pela obra "O Livro do Nómada Meu Amigo", o Prémio Nacional de Poesia, em 1968, pela obra "Sete Septetos" e o Prémio Camilo Pessanha, em 1971, com "Uma Sequência Timorense".

No manifesto «A Poesia É Só Uma» demarcou-se, quer do neo-simbolismo da Presença, quer do neo-realismo e do surrealismo, apresentando um «programa de autenticidade poética», nas palavras de Jorge de Sena.

Em 1974, entusiasmou-o a Revolução de Abril, mas em breve anteviu o perigo duma invasão de Timor pela Indonésia e lançou publicamente o seu aviso contra as tentações de aventureirismo político por parte dos movimentos timorenses. 

A invasão de Timor em Dezembro de 1975, embora prevista, deixou-o profundamente abalado. Pareceu ter perdido a razão. E foram de novo a poesia e as convicções religiosas que o conduziram na escuridão. 

Muito amigo da poeta Sophia de Mello Breyner, Cinatti era visita frequente da casa, na Travessa das Mónicas, à Graça, em Lisboa, onde a poeta viveu com Francisco Sousa Tavares e os cinco filhos durante décadas.

Sophia escreveu para ele a seguinte dedicatória na 3ª Edição do seu livro de poemas "Coral":

Para o Ruy Cinatti porque neste livro
De folha em folha passam gestos seus
Assim como de folha em folha em arvoredo
A brisa perde ao sussurrar seus dedos

Este mês, convido os meus amigos a resolver este problema e, no final, encontrar o nome (3 palavras nas horizontais) de uma obra do poeta português Ruy Cinatti (1915 - 1986).


HORIZONTAIS: 1 – Chaves falsas; Maça. 2 – Calças; Abundância. 3 – Prosa; Acontecia. 4 – Toma; Traição. 5 – Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de hióide; Exclamação que designa aprovação. 6 – Agasta [Cabo Verde]; Atitude. 7 – Franco; Preposição que designa meio. 8 – Senda; Vales. 9 – Passe; Diz-se da folha que se desenvolve junto da raiz. 10 – Eternidade; Firma. 11 – Penúria [popular]; Grande.

VERTICAIS: 1 – Cachaço; Inocentes [figurado]. 2 – Ervilha [regionalismo]; Responsável; Partícula. 3 – Que revela tranquilidade e serenidade [coloquial]; Urdir [figurado]; Palavra que, no dialecto provençal, significava sim. 4 – Cainha; Nata. 5 – Laçada; Mulher solteira [coloquial]. 6 – Aquele que domina [figurado]; Reza. 7 – Firmai; Difícil. 8 – Despacho; Amigo. 9 – Preposição que designa modo; Catafalco; Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de fibra. 10 – Baixa; Como; Ligas. 11 – Esfomeado [Brasil]; Estremo.

Clique Aqui para abrir e imprimir o PDF.


Aceito respostas até dia 25 de Abril, por mensagem particular no Facebook ou para o meu endereço electrónico, boavida.joaquim@gmail.com. Em data posterior, apresentarei a solução, assim como os nomes dos participantes. 

Vemo-nos por aqui?