"Os Memoráveis", de Lídia Jorge, é um livro sobre o 25 de Abril, É uma homenagem aos heróis da Revolução de Abril, "Os Memoráveis", para que não caiam no esquecimento.
Estamos perante uma narrativa que nos obriga a ver que, afinal, os heróis (ou aqueles que nos habituámos a ver como tal) são tão mortais como qualquer um de nós.
No fundo, a autora quer conhecer o que que ficou da "coisa luminosa e boa", daquele dia memorável. Ou, como Sophia disse, o que ficou "do dia inicial, inteiro e limpo onde emergimos da noite e do silêncio".
Todavia, o livro não é só uma ode de exaltação vivida naquele dia. Pretende, sobretudo, fazer a ponte entre o que viveram naquele dia e o que vivem agora aqueles memoráveis.
Assim, a pretexto de uma reportagem para a cadeia de televisão CBS, com o título "A História Acordada", a protagonista Ana Maria Machado repórter portuguesa em Washington, regressa a Portugal para entrevistar os mitos da Revolução de Abril.
Na escolha dos entrevistados, a autora é muito engenhosa na forma como montou a narrativa, recorrendo a uma suposta fotografia tirada na noite de 21 de Agosto de 1975.
A fotografia surge como o fio condutor da história sobre o 25 de Abril que a autora nos quer contar. E é assim que a protagonista da narrativa, ajudada por dois antigos colegas, vai entrevistar um a um os personagens que se mostram na famosa fotografia.
Segue-se o desfile dos memoráveis. Há figuras que me cativaram especialmente. A autora, nalguns casos, dá sinais que nos revelam, claramente, o herói entrevistado; noutros, deixa-nos na dúvida. Porquê?
"O Oficial de Bronze" (Vasco Lourenço?) é um agnóstico que acredita em milagres! Para ele, o êxito do 25 de Abril foi um somatório de uns tantos factos inesperados. Um milagre! Hoje, é o guardião da memória (Associação 25 de Abril).
"El Campeador" (Otelo Saraiva de Carvalho) que se compara a Dom Rodrigo Diaz de Viva, aquele cujo cadáver atado sobre a montada, com a espada amarrada à mão morta, quando enviado para o campo de batalha, continuava a amedrontar qualquer um. "Eu sou como ele", é a sua firme convicção. "O meu corpo será cadáver e ainda há-de ganhar batalhas", é muito belo o depoimento de El Campeador. Um sonhador.
"Major Umbela" (Costa Neves?) foi um dos oito assaltantes do Radio Clube, na noite de 25 de Abril. Era o capitão que, nas horas difíceis e de incerteza, transformava notícias de derrota em novas de vitória. Agora, vive ocupado com as nove acções judiciais que moveu contra o Estado e outros, em defesa da sua honra.
"Dr. Salamida" (???), o Che-Guevara da foto. Hoje, é advogado, Advogado de causas perdidas. O homem de Abril que vive em permanente vigilância da mãe. O homem, que colocou a senha no ar para arranque do 25 de Abril, não quer ficar na História. E, todavia, vive colado aos acontecimentos daquele noite e vive-os como se todo aquele rumor tivesse ocorrido há apenas dois dias.
"Charlie 8" (Salgueiro Maia) é aquele que já cá não está para contar a história. Está a viúva, mais interessada em recordar os momentos que viveu com o homem do que o militar que enfrentou os tanques com uma granada na mão. "A menina dança?" perguntava o marido depois de pôr um disco a rodar no gira-discos. "Eu era um pássaro entre os seus braços", respondia a viúva, evitando responder às perguntas dos entrevistadores acerca das injustiças de que o marido foi vítima.
Eis o percurso pelos heróis, cuja história mais me entusiasmou. Através desse percurso podemos surpreender o efeito da passagem do tempo, não só sobre eles, mas também sobre a sociedade portuguesa.
Paralela a esta história decorre uma outra, pessoal e íntima: a história do pai da protagonista, António Machado, que retrata no singular o destino que se abateu sobre os outros. Todos vivem na democracia pós 25 de Abril uma espécie de exílio.
Na parte final há uma descrição que me perturbou e faz pensar: a relação difícil entre a protagonista, Ana Maria Machado, e o pai, António Machado. A protagonista, no tempo que se demorou em Portugal para fazer as entrevistas para a reportagem que há-de passar na CBS, esteve a viver na casa do pai. Aí viveram em conjunto mas com prolongados silêncios. A filha conhece o drama do pai mas sente-se incapaz de quebrar o vidro que os separa. Como fazer para o pai assinar os 12 documentos que são necessários para voltar à sua actividade profissional (jornalista)? Já na véspera de deixar Portugal, ela põe os papéis à frente do pai e grita: "pare, pare...o pai está louco". Ele responde "traidora". Ela havia retirado da gaveta a célebre fotografia sem a sua autorização. No final da refrega, ambos ficaram encurralados como num teatro de batalha; o pai (praticamente) expulsa-a de casa.
É curiosa a semelhança com a discussão havida entre pai e filha, no "Vale da Paixão", da mesma autora. Também aqui há uma relação difícil entre pai e filha, que culmina com o diálogo em Buenos Aires, na Argentina. Ema deixa o barrocal algarvio e procura o pai nesta cidade longínqua. Walter (o Trotamundos), aterrado com título da narrativa que a filha lhe colocou nas mãos, "O Soldadinho Fornicador", em fúria gritou-lhe "Fora, Fora....Fora!".
Que pensar? A resposta, se é que há resposta, encontrei-a há dias ao ler uma entrevista da escritora Lídia Jorge ao semanário "Sol", em 11 de Outubro de 2014.
"O seu pai e o seu avô emigraram para África. Recorda a sua partida?" pergunta o jornalista. Lídia Jorge responde "Muito bem. Tinha quatro anos. É uma das imagens fortes da minha infância. Não privava muito com o meu pai, ele era viajante, andava pelo país de camião, fazendo distribuição de géneros. Mas a partida, o comboio na noite a chegar, que os levava para longe, para o desconhecido, ficou".
Depois mais à frente, Lídia Jorge fala novamente do seu pai "O meu pai emigrou para África, depois para a Argentina...".
Não pode haver maior adesão da ficção à realidade...e logo em dois casos. Aguardemos pelos próximos livros da escritora. Para já, este, "Os Memoráveis", é um livro fantástico. Imperdível!