Quando cheguei ao fim de “Quantas Madrugadas Tem a Noite”, do escritor angolano Ondjaki, fui reler a Sinopse do livro, que me suscita o seguinte comentário por não estar de acordo com o que ali é dito. Diz-se lá:
"Quantas Madrugadas Tem a Noite" está destinado a ser um marco na literatura angolana e na literatura de língua portuguesa em geral. Com uma extraordinária mestria narrativa, Ondjaki conta aqui uma história em que não se sabe o que admirar mais, se a fulgurante imaginação do autor, se a sua capacidade para a criação de tipos e situações carregados de significado, se a sua capacidade para elevar a linguagem coloquial a um altíssimo nível literário. O humor, a farsa, o lirismo, a tragédia, o horror, todos estes sentimentos são aqui convocados e expostos, com a fluência de quem conta, simplesmente, uma história, na Luanda dos dias de hoje.”
A discordância está no que é dito logo no primeiro parágrafo. O livro está, na minha modesta opinião, longe de ser um marco da literatura, especialmente na literatura da língua portuguesa. Acho exagerado (entusiamo de livreiro?).
Na verdade, o livro não me deixou, confesso, marcas significativas, mas levei-o até ao fim. Propûs-me ler o livro? Há-que lê-lo!
1. Narrador
Para mim, a marca que fica deste “Quantas Madrugadas Tem a Noite” é que estamos perante um narrador muito especial. Ele aparece ao longo de toda a narrativa como sendo uma terceira pessoa (ainda que omniciente), mas, no final, para surpresa do leitor, revela ser ele, o Adolfo, a personagem principal, que o torna um narrador-protagonista, ou seja, um narrador autodiegético. “o morto, esse morto que lhe bebemos aqui…, tou ta pôr: esse morto sou eu!, AdolfoDido, eu mesmo!”, diz ele a pág. 233 (a 10 páginas do fim do livro!).
2. Enredo
A história do livro gira à volta dum morto (um morto que afinal volta à vida!), o AdolfoDido, que acaba preso (o seu cadáver) pela polícia e é disputado por duas viúvas, que se dizem legítimas (DonaDivina e KiBebucha), para conseguirem a pensão de viuvez, e pelo meio, há muitas peripécias para enterrar o morto, tudo entrelaçado com outras pequenas histórias adjacentes, incluindo a criação do Sindicato Nacional das Prostitutas, imagine-se, e, ainda, reflexões, mais ou menos sérias, sobre os portugueses, o racismo, Jesus Cristo, etc…
3.Espaço
O espaço da narrativa é a cidade de Luanda, porque é a capital, porque é o refúgio dos que vieram do interior, onde a guerra civil foi mais intensa. O autor escreve sobre Luanda, para os seus habitantes. É a sua cidade. Nasceu lá. É a cidade da sua eleição. Todavia, Luanda é uma cidade de grandes contrastes. Por um lado, os seus belos cenários naturais, a baía, as praias, os deslumbrantes poentes fortemente amarelados; por outro, as imagens duma realidade feita de musseques cheios de buracos, mosquitos, lama…o autor descreve a cidade cinematograficamente, citando nomes de ruas, bairros, estabelecimentos comerciais…deste modo, ele procura tornar o leitor mais intimo da cidade.
4.Tempo
O narrador conta-nos, afinal, a sua história durante uma tarde e uma noite. O tempo cronológico é, portanto, uma parte do dia. «Calma, vou-te explicar tudo, o tintim pelo tintim, temos a tarde toda e se for preciso, tu sabes, depois da tarde vem a noite, nada de pressas…», diz o autor a pp 14
O tempo histórico decorre sobretudo nos anos seguintes ao termo da Guerra Civil, a qual, embora tenha terminado, o autor faz duras críticas a vários problemas sociais que ainda persistem na cidade de Luanda.
Aqui, a diferença entre o tempo narrado e a narrativa é muito pequeno, visto que o romance menciona morte de Jonas Savimbi, ocorrida em Fevereiro de 2002, sendo que o livro foi publicado em Angola e em Portugal no ano de 2004.
5. Estilo
Coloquial, indubitavelmente. É, pelo que ainda pouco lhe conheço, a sua imagem de marca. Ondjaki revela-se nesta narrativa um contador de stórias. Um longo monólogo, com um ouvinte que só escuta (é cada um de nós). […] Mas, epá, vamos só desequilibriar umas birras; sentas aí, nas calmas, eu te pago em estória, isso mesmo, uma pura estória daquelas com peso de antigamente…[…], di z o autor a pp 14.
6. Personagens
A personagem principal é AdolfoDido. Pode-se considerar um azarento. Mesmo depois de morto, não consegue encontrar descanso. Por causa da dúvida sobre o que teria ocasionado sua morte, mesmo depois da autópsia, ele vê-se impedido de ser enterrado. O caixão anda em bolandas, enquanto as duas mulheres, que se dizem legítimas, disputam a pensão de viuvez.
Para mim, a marca que fica deste “Quantas Madrugadas Tem a Noite” é que estamos perante um narrador muito especial. Ele aparece ao longo de toda a narrativa como sendo uma terceira pessoa (ainda que omniciente), mas, no final, para surpresa do leitor, revela ser ele, o Adolfo, a personagem principal, que o torna um narrador-protagonista, ou seja, um narrador autodiegético. “o morto, esse morto que lhe bebemos aqui…, tou ta pôr: esse morto sou eu!, AdolfoDido, eu mesmo!”, diz ele a pág. 233 (a 10 páginas do fim do livro!).
2. Enredo
A história do livro gira à volta dum morto (um morto que afinal volta à vida!), o AdolfoDido, que acaba preso (o seu cadáver) pela polícia e é disputado por duas viúvas, que se dizem legítimas (DonaDivina e KiBebucha), para conseguirem a pensão de viuvez, e pelo meio, há muitas peripécias para enterrar o morto, tudo entrelaçado com outras pequenas histórias adjacentes, incluindo a criação do Sindicato Nacional das Prostitutas, imagine-se, e, ainda, reflexões, mais ou menos sérias, sobre os portugueses, o racismo, Jesus Cristo, etc…
3.Espaço
O espaço da narrativa é a cidade de Luanda, porque é a capital, porque é o refúgio dos que vieram do interior, onde a guerra civil foi mais intensa. O autor escreve sobre Luanda, para os seus habitantes. É a sua cidade. Nasceu lá. É a cidade da sua eleição. Todavia, Luanda é uma cidade de grandes contrastes. Por um lado, os seus belos cenários naturais, a baía, as praias, os deslumbrantes poentes fortemente amarelados; por outro, as imagens duma realidade feita de musseques cheios de buracos, mosquitos, lama…o autor descreve a cidade cinematograficamente, citando nomes de ruas, bairros, estabelecimentos comerciais…deste modo, ele procura tornar o leitor mais intimo da cidade.
4.Tempo
O narrador conta-nos, afinal, a sua história durante uma tarde e uma noite. O tempo cronológico é, portanto, uma parte do dia. «Calma, vou-te explicar tudo, o tintim pelo tintim, temos a tarde toda e se for preciso, tu sabes, depois da tarde vem a noite, nada de pressas…», diz o autor a pp 14
O tempo histórico decorre sobretudo nos anos seguintes ao termo da Guerra Civil, a qual, embora tenha terminado, o autor faz duras críticas a vários problemas sociais que ainda persistem na cidade de Luanda.
Aqui, a diferença entre o tempo narrado e a narrativa é muito pequeno, visto que o romance menciona morte de Jonas Savimbi, ocorrida em Fevereiro de 2002, sendo que o livro foi publicado em Angola e em Portugal no ano de 2004.
5. Estilo
Coloquial, indubitavelmente. É, pelo que ainda pouco lhe conheço, a sua imagem de marca. Ondjaki revela-se nesta narrativa um contador de stórias. Um longo monólogo, com um ouvinte que só escuta (é cada um de nós). […] Mas, epá, vamos só desequilibriar umas birras; sentas aí, nas calmas, eu te pago em estória, isso mesmo, uma pura estória daquelas com peso de antigamente…[…], di z o autor a pp 14.
6. Personagens
A personagem principal é AdolfoDido. Pode-se considerar um azarento. Mesmo depois de morto, não consegue encontrar descanso. Por causa da dúvida sobre o que teria ocasionado sua morte, mesmo depois da autópsia, ele vê-se impedido de ser enterrado. O caixão anda em bolandas, enquanto as duas mulheres, que se dizem legítimas, disputam a pensão de viuvez.
BurkinaFaçam é anão, largou os estudos, tem uma frota de táxis, é o mais rico de todos, conquistador de damas. Chega a fundar o Sindicato Nacional das Prostitutas, para agradar às suas amigas meretrizes e também para obter vantagens no ramo.
Outra personagem importante é Jaí (abreviatura de Venhojaí), este também com uma caratcterística física bem marcante. É albino e, por esta particularidade, chegou a ser ameaçado de morte (havia a crença que os albinos tinham um líquido no cérebro que curava a SIDA!). Professor, assaz culto, integro, afastou-se do MPLA. Participou em iniciativas das ONG,s.
Outra personagem é uma senhora chamada KotaDasAbelhas. Ela, o Cão e as suas abelhas. Seres alegóricos? Por um lado, as abelhas produzem o mel, símbolo de todas as doçuras; por outro, o Cão, que vivia no melhor quarto da casa, é o terror e o medo.
Há ainda o desfile de outras personagens, menos presentes na narrativa.
Há ainda o desfile de outras personagens, menos presentes na narrativa.
PCG (Pisa com gêto), mais um com uma falha numa perna, que o faz andar mancando. Representa, porventura, os problemas sofridos pelas crianças de rua.
As amigas prostitutas de Brurkina, Eva e Madalena. Outros nomes com significado, talvez (o pecado e o prazer sexual?)
E DonaDivina, a primeira dama de Adolfo. Recebe este nome, talvez, por não ter nada de santa. Será assim?
E Kibebucha, a outra senhora que se dizia também legítima de Adolfo. Um nome também marcado pelo tipo físico. Um peso talvez exagerado, assim atarraxada e mesmo assim desejada pelos homens.
E muitos outros nomes: a Juíza Meritissima (curiosa a inversão dos termos), o padre, o Gadinho (um pejorativo, demonstrando o seu baixo posto na hierarquia, quiça uma caricatura da polícia angolana), o Sete (motorista do anão, sete porque já por sete vezes tinha batido com o carro, sempre fim de ano, na mesma esquina da Ilha – pp 52).
Mais alguns comentários
A oralidade da escrita
Do léxico à sintaxe são perceptíveis os traços de oralidade popular de Angola. Aliás, a oralidade na transmissão de conhecimentos é, como sabemos, uma marca da cultura africana.
As homenagens
A multiplicidade de homenagens que o autor presta a nomes da cultura angolana e não só. Luandino Vieira (outro apaixonado por Luanda e cuja produção parece ter sido importante para a sua formação literária), Pepetela (o Kota Pepe), Ruy Duarte de Carvalho (pp 39), Manuel Rui, Manuel Tavares (que aqui ele designa por Kota Tavares), e, ainda, outras referências como Guimarães Rosa (Kota Guimarães), Jorge Palma (cantando Eternamente Tu – pp 133), Caetano Veloso (cantando Vaca Profana – pp 101), Nikos Hazántzakis (uma citação de Cristo Recrucificado – pp71), Adélia Prado (citação de Solte os cachorros – pp 229), Pierre Bourdieu (citação de Meditações Pascalianas – pp 167), Pablo Neruda, Manoel de Barros (se fosse a Angola ficaria Manel do barro! – pp 146) e outros nomes…
O autor e Mia Couto.
Desde o início da leitura somos levados a pensar, inevitavelmente, em Mia Couto. Há, sem sombra de dúvida, uma infuência, bem vísivel ao longo do texto, do escritor moçambicano. São de Mia Couto estas palavras: «Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório-dependente. Se tivesse que ser punido teria que responder não apenas pelo consumo mas pela produção e distribuição dessa droga.» A poção (ou a droga), a que Mia Couto se refere, será certamente a própria literatura.
A alegria de ouvir
Ora aqui está uma coisa que me agradou de sobremaneira, no livro. Também a alegria de ouvir é considerada, por Ondjaki, um verdadeiro dom. O facto de o interlocutor do romance Quantas madrugadas tem a noite ser apenas um ouvinte não desmerece este; o próprio narrador percebe a importância deste na narrativa: “Ouve inda, quero te agradecer puramente, ouviste bem a minha estória. Afinal, não só aquele que conta que conta: quem escuta calado também faz a estória». Confessa o narrador (aqui já também o protagonista da história) a pp 233. “Quem escuta calado também faz a estória”, gostei.
A chuva
Durante todo o tempo da narrativa chove sem cessar. Eu penso que a chuva alegoriza o auge dos problemas que, como uma tempestade, cairam sobre a cidade de Luanda. É verdade que a água é de simbologia ambígua. Mas aqui, do que se trata é de um dilúvio que alaga a cidade causando imensos problemas, mas ao mesmo tempo, ao cessar, ela lava a cidade, irrigando a terra donde germinarão sementes. A chuva também pode ser interpretada como uma metáfora da guerra civil. O cessar da chuva foi celebrado como uma festa, uma vitória. Não será por mero acaso que a chuva pára quando o Cão é morto. O Cão era o terror e o medo e simbolizava todos os males que se haviam abatido sobre a sociedade luandina.
Não é por acaso, penso, que o autor cita, em epigrafe do capítulo em que descreve a morte do Cão, com o seguinte provérbio kimbundu «Tem que morrer o defeituoso, para que o defeito acabe». pp 203.
Penso, em jeito de conclusão, que não obstante a focalização dos imensos problemas existentes em Luanda, Ondjaki pretende deixar um visão optimista. Todo o livro é movido por uma vontade de escrever, sendo que a alegria se dá pelo próprio prazer de contar a estória.
As amigas prostitutas de Brurkina, Eva e Madalena. Outros nomes com significado, talvez (o pecado e o prazer sexual?)
E DonaDivina, a primeira dama de Adolfo. Recebe este nome, talvez, por não ter nada de santa. Será assim?
E Kibebucha, a outra senhora que se dizia também legítima de Adolfo. Um nome também marcado pelo tipo físico. Um peso talvez exagerado, assim atarraxada e mesmo assim desejada pelos homens.
E muitos outros nomes: a Juíza Meritissima (curiosa a inversão dos termos), o padre, o Gadinho (um pejorativo, demonstrando o seu baixo posto na hierarquia, quiça uma caricatura da polícia angolana), o Sete (motorista do anão, sete porque já por sete vezes tinha batido com o carro, sempre fim de ano, na mesma esquina da Ilha – pp 52).
Mais alguns comentários
A oralidade da escrita
Do léxico à sintaxe são perceptíveis os traços de oralidade popular de Angola. Aliás, a oralidade na transmissão de conhecimentos é, como sabemos, uma marca da cultura africana.
As homenagens
A multiplicidade de homenagens que o autor presta a nomes da cultura angolana e não só. Luandino Vieira (outro apaixonado por Luanda e cuja produção parece ter sido importante para a sua formação literária), Pepetela (o Kota Pepe), Ruy Duarte de Carvalho (pp 39), Manuel Rui, Manuel Tavares (que aqui ele designa por Kota Tavares), e, ainda, outras referências como Guimarães Rosa (Kota Guimarães), Jorge Palma (cantando Eternamente Tu – pp 133), Caetano Veloso (cantando Vaca Profana – pp 101), Nikos Hazántzakis (uma citação de Cristo Recrucificado – pp71), Adélia Prado (citação de Solte os cachorros – pp 229), Pierre Bourdieu (citação de Meditações Pascalianas – pp 167), Pablo Neruda, Manoel de Barros (se fosse a Angola ficaria Manel do barro! – pp 146) e outros nomes…
O autor e Mia Couto.
Desde o início da leitura somos levados a pensar, inevitavelmente, em Mia Couto. Há, sem sombra de dúvida, uma infuência, bem vísivel ao longo do texto, do escritor moçambicano. São de Mia Couto estas palavras: «Este jovem, este Ondjaki, experimentou muito cedo essa embriaguez. Bebeu dessa poção e agora se tornou em estório-dependente. Se tivesse que ser punido teria que responder não apenas pelo consumo mas pela produção e distribuição dessa droga.» A poção (ou a droga), a que Mia Couto se refere, será certamente a própria literatura.
A alegria de ouvir
Ora aqui está uma coisa que me agradou de sobremaneira, no livro. Também a alegria de ouvir é considerada, por Ondjaki, um verdadeiro dom. O facto de o interlocutor do romance Quantas madrugadas tem a noite ser apenas um ouvinte não desmerece este; o próprio narrador percebe a importância deste na narrativa: “Ouve inda, quero te agradecer puramente, ouviste bem a minha estória. Afinal, não só aquele que conta que conta: quem escuta calado também faz a estória». Confessa o narrador (aqui já também o protagonista da história) a pp 233. “Quem escuta calado também faz a estória”, gostei.
A chuva
Durante todo o tempo da narrativa chove sem cessar. Eu penso que a chuva alegoriza o auge dos problemas que, como uma tempestade, cairam sobre a cidade de Luanda. É verdade que a água é de simbologia ambígua. Mas aqui, do que se trata é de um dilúvio que alaga a cidade causando imensos problemas, mas ao mesmo tempo, ao cessar, ela lava a cidade, irrigando a terra donde germinarão sementes. A chuva também pode ser interpretada como uma metáfora da guerra civil. O cessar da chuva foi celebrado como uma festa, uma vitória. Não será por mero acaso que a chuva pára quando o Cão é morto. O Cão era o terror e o medo e simbolizava todos os males que se haviam abatido sobre a sociedade luandina.
Não é por acaso, penso, que o autor cita, em epigrafe do capítulo em que descreve a morte do Cão, com o seguinte provérbio kimbundu «Tem que morrer o defeituoso, para que o defeito acabe». pp 203.
Penso, em jeito de conclusão, que não obstante a focalização dos imensos problemas existentes em Luanda, Ondjaki pretende deixar um visão optimista. Todo o livro é movido por uma vontade de escrever, sendo que a alegria se dá pelo próprio prazer de contar a estória.