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sexta-feira, 28 de março de 2014

O charadista Pessoa


Jerónimo Pizarro, um reconhecido pessoano, disse recentemente numa entrevista, a propósito da “descoberta” de cinco sonetos inéditos do Pessoa, que há ainda muitos documentos por tratar, concluindo que temos que estar preparados para mais surpresas!

O Pessoa está sempre a surpreender…

Afinal, o heterónimo A.A.Crosse, o mais conhecido, não foi o único através do qual o Pessoa deu asas à sua faceta charadista. 

Afinal, que se conheçam até à presente data, há mais mais dois: Henderson Carr e Tagus.


[…] J.C. Henderson Carr (J.G.H.C.) - Vem dos tempos da Commercial School e aparece duas vezes num manual de taquigrafia, Pitman’s shortland instructor, confirma Richard Zenith. O seu nome, e o de outro heterónimo Tagus, constam de um conjunto de textos que seriam reunidos sob o título “Rags” (Trapos). No Natal Mercury, participa de um concurso de charadas […].

[…] Tagus — Com esse pseudónimo dos tempos de Durban, do latim (Tejo), Pessoa chega a ser “premiado por um Molière”, em 12 de Dezembro de 1903, no Natal Mercury, por propor charadas e enigmas. Esse prémio correspondeu a “Les oeuvres de Molière” — que ficaram na biblioteca particular de Pessoa. Zenith ainda lembra um curioso incidente, quando o jornal trata o vencedor do prémio por mr (senhor), quando, em razão da idade, deveria tê-lo tratado mais propriamente por master (menino). Tagus sucede a J.G. Henderson Carr e antecipa A.A. Crosse. […]
José Paulo Cavalcanti Filho, in "Fernando Pessoa - uma quase autobiografia"

Segundo Zenith, J.G.H.C. ainda mandava, ao jornal, charadas que eram invariavelmente solucionadas por outro heterónimo - Tagus. Neste ponto, apetece-me dizer que o poeta tem hoje muitos imitadores por aí...

quinta-feira, 27 de março de 2014

O Imperador da Língua Portuguesa


O padre António Vieira, missionário jesuíta, nasceu em Lisboa em 1607 e morreu na Baía, Brasil, em 1696. Ele é, sem duvida, a figura cimeira do seculo XVII português, não só pelo seu papel fundamental na defesa dos direitos dos índios brasileiros contra os desmandos dos colonos, mas também pela acção, junto das principais cortes europeias, no reconhecimento da restauração da independência portuguesa após os sessenta anos do domínio filipino.

Mas a importância do padre António Vieira assenta, sobretudo, na forma como, através dos seus textos, enriqueceu e consolidou a língua portuguesa, facto que levou Fernando Pessoa a chamar-lhe “imperador da língua portuguesa”.

ANTÓNIO VIEIRA

O céu ‘strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

Fernando Pessoa, in Mensagem

António Vieira é, igualmente, na senda de Bandarra, um dos visionários que acredita que a Portugal estará reservada uma missão superior e divina: a construção de um Quinto Império, universal e eterno - “A madrugada irreal do Quinto Império”, como diz o Pessoa no poema.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Palavras Cruzadas com História - João Ricardo Pedro

[…] naquela pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha […].

Este pequeníssimo excerto está ao início do romance “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro.

Através de episódios aparentemente autónomos, e tendo como ponto de partida a Revolução de Abril de 1974, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos da ditadura, pela repressão política, pela guerra colonial.

É o romance de estreia de João Ricardo Pedro. E, no entanto, é uma obra fascinante com uma estrutura exemplar, uma história incompleta (como as nossas vidas), que valeu ao autor o prémio LeYa em 2011.

Após a sua (re)leitura, a minha proposta, desta vez, é resolver este problema de Palavras-Cruzadas e, no final, descobrir, na diagonal, o nome de um personagem (uma palavra) deste romance, “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro.



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HORIZONTAIS: 1 – Lamentar; Invulgar. 2 – Interjeição que exprime surpresa; Circular. 3 – Antiga embarcação de bojo grande; Elegante. 4 – Cada um das partes em que se divide um jogo de voleibol ou uma partida de ténis; Partida; Graça [figurado]. 5 – Emissão de voz; Aguardente obtida da destilação do melaço depois de fermentado; Rádio [símbolo químico]. 6 – Fulminai. 7 – Opus [abreviatura]; Logaritmo [símbolo matemático]; Elemento de formação que exprime a ideia de urina. 8 – Pequena argola; Qualquer navio; Liga. 9 – Bandos; Demore. 10 – Suportas; Governanta. 11 – Gracejes; Acórdão. 

VERTICAIS: 1 – Paraísos; Versejar. 2 – Rente; Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de vários. 3 – Direitos; "Aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha". 4 – Diz algo [coloquial]; Um milhar; Ruins. 5 – Seguia; Proprietárias. 6 – Tens a sorte de. 7 – Infiel (para os turcos); Atmosfera. 8 – Fazer troça; Malvado; Deseje. 9 – Anéis; Que sentem fúria. 10 – Nivelar; Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de ouvido. 11 – Armadilhas [figurado]; Poeta e cantor ambulante entre os Gregos antigos.

Clique Aqui para imprimir.

Aceito respostas até ao dia 31 de Março, através do chat do FB ou no meu endereço electrónico: boavida.joaquim@gmail.com. Em dia posterior, apresentarei a solução, assim como os nomes dos decifradores. Divirtam-se!

sábado, 22 de março de 2014

Orca - uma aldeia com nome de mamífero...


A leitura do livro “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro, deixa-me sempre, no final, uma sensação um tanto estranha. Daí, a necessidade de o revisitar, com o intuito (porventura condenado ao insucesso) de tentar descobrir um fio condutor entre as várias personagens e de encontrar um fim plausível para as histórias deixadas dependuradas.

A história principal é simples, é a história das três gerações de uma família, a família Mendes. 

Duarte é o personagem principal da narrativa, que muitos garantiam que ia ser o maior beethoviano do seu tempo. Mas, um dia, não quis tocar mais, ninguém entendendo o porquê.

António Mendes é o pai que acordava todas as noites aos berros, a pensar que estava a ser atacado por pretos no meio do mato e que engole quarenta comprimidos por dia só para se conseguir lembrar do nome do filho. Um dia, suicida-se com a pistola do pai. 

Dona Paula é a mãe, que o filho não percebia como é que ela, uma beata, era capaz de torcer pela União Soviética, num jogo de futebol, em que esta defrontava a Holanda. Um dia, disse ao marido e ao filho: «Tenho um cancro», encostando a mão ao seio esquerdo. E ainda: «Vou ser operada na segunda-feira, amanhã dou entrada no hospital». E ainda: «A despensa está cheia, fiz bacalhau com natas, que está no congelador, e uma panela de sopa».

Augusto Mendes, o avô paterno, médico, que um dia vem do Norte para se instalar numa pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul. Um dia, em que se preparava para ver passar - na aldeia donde até as cobras fogem - a Volta a Portugal em bicicleta, caiu inanimado no chão. Passado algum tempo, não obstante os cuidados da mulher, Dona Laura, morreu.

Dona Laura, a avó materna, era a única rapariga da aldeia com a terceira classe. Começou por limpar a casa e o consultório do doutor Augusto Mendes. Até que, um dia, o doutor Augusto Mendes disse, Laura, acho que devíamos casar. Dona Laura, parece, ainda vive na aldeia. Um dia que lá passar, vou perguntar por ela.

Dos avós maternos não sabemos os nomes. Estes eram de Lisboa. O avô era do “contra”, participou na campanha do Humberto Delgado. Um dia, depois do jantar, foi levado para a António Maria Cardoso. No dia seguinte, bateram à posta de casa, alguém veio anunciar que tinha morrido. A avó morreu atropelada por um eléctrico na Rua do Alecrim, enquanto a filha a esperava, sentada a uma mesa dum café ali perto.

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Esta é a espinha dorsal da narrativa. Há, depois, as outras histórias que se cruzam com a história principal, onde orbitam várias personagens, cujas ligações não são fáceis de entender. 

Celestino chega à aldeia, a tal que tem nome de mamífero, quarenta anos antes do 25 de Abril de 1974. Neste dia, no 25 de Abril de 1974, é assassinado, exactamente à mesma hora que Marcelo Caetano se rende no Largo do Carmo.

Policarpo é o amigo do Dr. Augusto Mendes. É quem lhe vende a casa na aldeia que tem nome de mamífero. Parte para a Europa numa altura em que o professor de Coimbra estava a começar a carreira. Prometeu (e cumpriu) ir remetendo cartas a dar notícias. O avô de Duarte foi sempre lendo ao neto todas as cartas recebidas do seu amigo Policarpo, à excepção da carta de 1975, se calhar, ou talvez por isso, por se encontrar incompleta. Mais tarde, foi viver para Buenos Aires, onde veio a morrer.

Alcino era barbeiro no salão Playboy, onde o Duarte tinha hábito cortar o cabelo. Antes de começar a cortar o cabelo aos clientes, as mãos do Alcino tremiam como varas verdes. Mas Duarte acreditava que o barbeiro Alcino era, provavelmente, o único barbeiro do mundo a proporcionar aos seus clientes a sensação de terem sobrevivido a um desastre. Como certas pinturas que nos comovem, não pelas suas qualidades estéticas, mas por sabermos, de antemão, que foram pintadas por crianças sem braços…

A professora de canto (de que não sabemos o nome) tinha umas mamas e um rabo que faziam lembrar certos madrigais de Monteverdi. Um dia, Duarte, ao tocar o Prelúdio BWW 867, em Si bemol menor, desmaiou caindo sobre o piano. Acudiu-lhe a professora de piano…o que foi uma sorte para Duarte.

O médico (de que não sabemos o nome), que gostava de Bach, usava, no dedo mindinho da mão esquerda, um anel de ouro que tinha gravadas, em estilo gótico, as letras H e C. O Duarte saiu do consultório, com uma caterva de exames para fazer. O médico passou todo o fim de semana sem sair de casa. Não recebeu qualquer visita, nem atendeu o telefone.

O professor de piano (de que não sabemos o nome), tinha um pai (nome?) que era um apaixonado pelas pinturas de Bruegel. O filho conta a história do pai: Um dia, o pai professor, ao entrar na sala do Museu de História de Arte, em Viena, onde se encontrava o quadro de Bruegel, deparou-se com uma mulher que acabara de colocar uma tela ainda em branco. Uns dias depois, assombrou-se: o rosto da mulher pintada era igual ao rosto da pintora, por sua vez igual ao do quadro do Bruegel. Era um autorretrato. A pintora tinha-se encontrado a si própria, já que, como no quadro, tinha uma perna mutilada. Um dia, a mulher da tela desapareceu sem deixar rasto. Na iminência de uma nova Guerra Mundial, pai e filho regressaram a Portugal. O pai morreu e foi enterrado no cemitério de Vila Viçosa. 

Numa manhã, o sobrevivo professor de piano, depois de se barbear (tempo que aproveitou para nos contar a história do pai) saiu de casa e, na rua, apanhou um táxi: “Queluz, por favor”. Consigo levava um embrulho. O destino foi a casa de Duarte. Em casa só estava a mãe. Explicou-lhe que dentro do embrulho estava um quadro. E contou-lhe a história do quadro. Já muitos anos após a morte do pai, encontrou o quadro num quarto de um hotel em Buenos Aires.”Quero dá-lo ao seu filho” e explicou: “Pelos momentos em que o ouvi tocar Mozart, Beethoven, Bach…” e ainda “que pena ele ter desistido” E acrescentou: “mas acho que o quadro me deu a resposta para a desistência do seu filho. O Duarte desistiu precisamente no momento em que estava prestes a tornar-se igual à música que tocava…".  Então, a mãe de Duarte chorou de felicidade. Nessa noite, quando Duarte voltou para casa, já noite, o pai, ao senti-lo entrar, disse: «Morreu. A tua mãe morreu

Dias mais tarde, ao pendurar o quadro na parede, Duarte reparou: Wien, 3/8/1924 e, ainda, num canto, as iniciais HC. Nesse preciso momento, Duarte lembrou-se de duas coisas: primeira, o anel que o médico que usava no dedo mindinho e que tinha gravado as iniciais HC; segunda, a carta de Policarpo de 1975, que o avô nunca lhe lera e lhe faltavam as últimas folhas. Já, o pai, lembrou-se do gato Joseph era a data exacta em que nascera o gato Joseph. O gato que haveria de morrer em 1/9/1939, a sua data de nascimento.

Artur Monteiro, soldado em África, depois inspector, para quem o pai de Duarte foi a pessoa mais extraordinária que conheceu em toda a vida. Ao ver o quadro, o inspector Monteiro deu-se conta que aquele rosto assustado lhe recordava alguém. Alguém de cujo nome já não se lembrava…Quando chegou a casa, o soldado Monteiro perguntou-se como é que poderíamos esquecer tudo acerca de uma pessoa e, no entanto, lembrarmo-nos do seu rosto até ao ínfimo detalhe.

Por fim, temos a última carta de Policarpo, escrita em Buenos Aires, em 1975, que Duarte nunca lera. Aguardamos ansiosamente que esta carta venha unir, por uma vez, as pontas do novelo que o narrador foi deixando aqui e acolá. De todos os enigmas semeados ao longo da narrativa, o que mais me intriga é o que aconteceu a Celestino naquele dia 25 de Abril de 1974. Finalmente, um sinal de esperança, diz Policarpo “…quiseres satisfazer a mesquinha curiosidade do leitor, revelando os motivos da fuga do Celestino e, consequentemente, o autor da sua morte, então o que tenho hoje para te contar ser-te-á decerto muito útil». Antes, havia dito uma coisa surpreendente, referindo-se à morte de Celestino, «Acontecimento trágico, por um lado, mas maravilhoso, por outro». Maravilhoso? Para aguçar a aguçar ainda mais a curiosidade do leitor, Policarpo escreve, como se de um romance policial se tratasse, o seguinte, «Querido Augusto, por esta altura, deverás estar a interrogar-te sobre o que tem tudo isto a ver com o pobre Celestino. Mas, como podes constatar, ainda te restam muitas folhas na mão. Aproveita esta pausa para esticares as pernas e mandares umas cachimbadas, que o que se segue não é pêra doce

Mais umas tantas linhas e não é que, quando tudo ia ser finalmente revelado, o resto das folhas da carta desapareceram. O Duarte, coitado, fica sem saber. Fica ele e ficamos nós.

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E agora, leitor? Desenrasca-te. Tenta tu ligar as pontas que deixei no ar…parece dizer-nos o autor. 

Confesso que, de palpável, pouco ou nada se consegui com este exercício. Permanecem as principais dúvidas. Porque morreu Celestino? Porque é que Duarte achava que o Índio viria a ser um grande artista? Porque é que o barbeiro Alcino tremia das mãos? Porque é que o médico conhecia Bach como as suas mãos? Quem era a mulher do museu? Por que é que Duarte deixou de tocar piano? Quem é HC, no anel do médico? Mas, sobretudo, o que aconteceu a Celestino.

Uma coisa é certa. Celestino morre justamente no dia 25 de Abril de 1974, no mesmo dia em que a Revolução de Abril põe fim a longos anos de ditadura. 

Mas valerá mesmo a pena tentar ligar os fios do novelo? Há histórias assim. Nem todas histórias têm necessariamente que ter um fim. A nossa vida também é, assim, incompleta.

No final, só um enigma eu consegui decifrar. A pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, virada a sul…ORCA.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dei rosas, recebi pepitas de oiro!…




Dei rosas, recebi pepitas de oiro!…
Há amigos assim. 



Para os braços da minha mãe


Como abraçam tão bem
Os braços da minha mãe!...
E que doçura sagrada
Na volta da vaga estrada?

Vindo do fundo do nada
Volto a casa em duas pernas
Crescendo até ao fim
Da estrada da terra ardente,
Num golpe de asa intenso
Da vontade de chegar.

Chega antes a noite
Em cores de ansiedade
E de pombas e de paz,
Anelo da calma, do lar?

Num tempo longe demais
Surge a saudade de outrora
Arrastando o passado
Da mãe menina encantada,
Da raiz, do imo de mim.

Escada em ponto de fuga
Em busca da lua cheia
Sem apoio que não seja
A esperança que não morre
Na noite de cor ardente?

Mas a noite chega ao fim
Nos braços da mãe em concha

Naquele eterno retorno
Que dá sentido a tudo:
Às perguntas, aos anseios,
À ânsia de transcendência
Ao desejo de infinito?

Que história contada,
(Amante da poesia),
E cantada em cada imagem
De tons, de sons de harmonia!...

António Amaro Rodrigues (20/3/2014)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Filho és, pai serás...


Eneias e Anquises, escultura em chumbo, 1756. Representa a fuga de Eneias do incêndio e saque da cidade de Tróia, carregando às costas seu pai Anquises. Por este gesto, Eneias veio a ser compensado. A história é longa, não vale a pena agora contar. O que importa é a lição a reter. Como diz o povo, "Filho és, pai serás, assim como fizeres, assim acharás".


Na mesma linha, lembrei-me de uma história que o José Saramago conta num dos seus romances. Leiam este excerto do livro, que vale a pena:


[…] Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô. Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não. Do que veio a passar-se depois não há sinal na história, mas de ciência mui certa sabemos que se é verdade que o trabalho do rapazinho ficou em meio, também é verdade que o pedaço de madeira continua a andar por ali. […] 

José Saramago, in “As Intermitências da Morte”

segunda-feira, 17 de março de 2014

Palavras Cruzadas com História - Eça de Queiroz


CENAS DA VIDA DEVOTA” é a solução do passatempo de Palavras Cruzadas do dia 9 de Março.

É, portanto, como se pedia, o subtítulo do romance “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz.

A propósito, será bom recordar que Eça de Queiroz pretendeu escrever (e escreveu) um conjunto de três livros (uma trilogia) com a mesma intenção – Crítica Social. E, em cada um deles, acrescentou um subtítulo com o qual quis balizar o tema ali tratado. Os romances são: “O Crime do Padre Amaro”, “O Primo Bazílio” e “Os Maias”, sendo que os subtítulos são, respectivamente, “Cenas da Vida Devota”, “Episódio Doméstico” e “Episódios da Vida Romântica”.

Eis a solução do passatempo de 9 de Março:



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Recebi respostas, por email e no Facebook, de: Aleme, Anjerod,, Arnaldo Sarmento, Bárbara Marçal, Elizabeth Sá, Emanuel Magno, Filomena Alves, João Alberto Bentes, Manuel Caleiro, Mister Miguel, Olidino, Paulo Freixinho, Pedro Varandas e Russo. 

Obrigado a todos e até ao próximo passatempo!