Não, não me enganei no título. Eu quero assim, lá para a frente explico a razão da minha escolha.
É verdade, acabei de ler “A Espada e a Azagaia”, de Mia Couto, o segundo livro da Trilogia “As Areias do Imperador”. Antes, havia lido o primeiro volume, “Mulheres de Cinza”. O terceiro virá, talvez, para o ano. Apetece-me devanear (vocábulo caro a Mia Couto) um pouco à volta deste segundo livro.
A narrativa decorre de Julho a Dezembro de 1895, no Sul de Moçambique. No rescaldo da Conferência de Berlim, Portugal quer afirmar-se como potência dominadora de facto e quer, particularmente, normalizar a situação no Sul de Moçambique onde se “criara”, contra a sua vontade, o Estado de Gaza, onde imperava Gungunhana.
É oportuno recordar que a Conferência de Berlim decorreu entre o dia 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885, com o objectivo de organizar, por meio de regras, a ocupação do continente africano pelas potências coloniais.
Portugal, que participou com outros países colonizadores, apresentou o projecto do célebre Mapa Cor-de-Rosa. É bom dizer que todos concordaram, mas, mais tarde, a Inglaterra (“Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente…”, nas palavras do poeta Guerra Junqueiro), surpreendeu os portugueses com o Ultimatum.
Se no primeiro volume “Mulheres de Cinza” só as cartas de Germano de Melo vinham intervalar a narração na 1ª pessoa, feita pela Imani, aqui surge a voz do tenente Ayres de Ornelas, criando uma verdadeira troca epistolar. Mia Couto criou um diálogo entre dois militares portugueses para mostrar que, do lado do colonizador, ocorriam visões diferentes e em claro conflito.
Todavia, deve dizer-se que Imani, a jovem moçambicana que se apaixonou pelo sargento Germano de Melo, surge como a personagem narradora nuclear, como verdadeira protagonista do romance, relevando assim o tema da condição feminina, que é recorrente em Mia Couto.
A questão central da trilogia, nas próprias palavras do autor, é desmitificar a figura de Gungunhana, porque, segundo ele, houve exageros de apreciação, de parte a parte, quanto a essa figura: para os portugueses, importava valorizar o régulo vátua porque isso contribuía para enaltecer a vitória de Mouzinho de Albuquerque; para os nacionalistas moçambicanos, havia o interesse óbvio de criar um herói da resistência anticolonial.
Segundo diz Mia Couto, o Imperador teve um comportamento muito ambíguo em relação a Portugal, tinha pouca consistência moral e, não obstante, foi feito um herói moçambicano após a Independência. Quando o pai Muzila morreu, Gungunhana, não sendo herdeiro legítimo (posição que recaia sobre o meio-irmão Mafumane), eliminou, após lutas intestinas, o príncipe herdeiro e obrigou a fugir para o exílio os outros rivais.
Ainda na opinião do autor (a que conta para análise do livro), Moçambique fez de Gungunhana uma coisa que ele nunca foi e Portugal criou um Gungunhana maior do que era. No fim de vida era um infeliz e desgraçado sem poder. Um homem que teve mais de 300 mulheres e a única que amou foi assassinada pela sua corte. Para se vingar, inspirou-se no Rei D. Pedro I. Vuiaze! Bradaram em uníssono os todos os súbditos.
Reinava, mas era um homem acossado, desconfiado, “Confio mais no álcool que me é oferecido pelo meu inimigo do que nas bebidas que me servem os familiares”.
E, todavia, o livro pouco nos diz de Gungunhana, a sua ausência das páginas nos dois primeiros livros é ensurdecedora. É curioso verificar que, sendo Gungunhana o protagonista principal, como ele está tão ausente da narrativa. Segundo o autor, foi esse o seu propósito: por um lado, uma forma de lhe retirar importância histórica; por outro, um truque literário que garante ansiedade ao leitor.
Esta é uma história que está para além da História, das batalhas travadas entre os portugueses e as tropas de Gungunhana, até à prisão deste no dia 28 de Dezembro de 1895, às mãos do capitão Mouzinho de Albuquerque.
Mas esta é, sobretudo, a história dos que estão entre a espada e a azagaia.
Esta é a história da jovem moçambicana Imani Nsambe que se apaixona pelo sargento português Germano de Melo, os quais, em textos cruzados, vão revelando um ao outro o que há de humano no meio de uma guerra.
Esta é a história do sargento Germano que deixou de ter corpo desde que chegou a África; que nem está num quartel mas numa cantina; que diz que sempre odiou a sua farda; que fez de uma velha espingarda uma cana de pesca.
Esta é a história do Pe Rudolfo Fernandes que se esqueceu de Deus; que usa as folhas do missal para fazer cigarros; que nos garante uma coisa: "neste lugar, até Cristo teria desistido".
Esta é a história da italiana Bianca que deixou Lourenço Marques para um dia ver o capitão Mouzinho de Albuquerque, esse príncipe com quem ela tanto sonhava; ou será que veio para recuperar as dívidas do cantineiro Sardinha?; que procurava sobreviver nestas terras do fim do mundo porque a morte do filho havia sido como que o fim da sua vida.
Esta é a história de Mwanatu, rapaz meio atontado mas dedicada sentinela do quartel (ou cantina?) de Nkokolani, que diz “eu sou um soldado português, não abandono a minha arma” e acaba morto pela arma de um militar português.
Esta é a história da gente que é arrancada das suas casas, das suas aldeias, transportada para sítios que não conhecem. Andam perdidos, sem identidade, indecisos entre fazer a guerra ou fazer a paz, sem saber a que Senhor servir, a que Lei obedecer.
Todos, à excepção de um, que sabe sempre o que tem a fazer, que não vacila. É o capitão Mouzinho de Albuquerque, aquele a quem chmavam um anjo de fogo, aquele que parecia um deus em cima do seu cavalo branco.
«Parar Mouzinho? Mais fácil parar o vento!»