Na Quarta-Feira passada (dia 18) peregrinei até Évora, com os meus amigos dos livros, para fazer o percurso da Aparição do Vergílio Ferreira. Fomos acompanhados por um guia que o Turismo de Évora disponibilizou.
A peregrinação começou na praça famosa do Giraldo, aquele cavaleiro salteador ou salteador cavaleiro que, para Afonso Henriques lhe perdoar os crimes, se determinou a conquistar esta cidade. Entrámos no Café Arcada, mas o Dr. Moura faltou ao encontro marcado. Certamente, tomava conta dos seus doentes. Tem um Deus para lhe tomar conta da vida e da morte. Logo ali ao lado, à esquina, parada no tempo, a montra da livraria do Nazareth. Depois, penetrámos na cidade, enredada de ruas, semeada de ruínas, de arcos partidos, nichos de santos, janelas góticas. Subimos a Rua da Selaria, agora sem a praga das carroças atroando a cidade. Perto do nicho do Senhor dos Terramotos, ao alto, o cão cansou-se da espera do osso da janela lá de cima. Depois, o Largo do Templo de Diana. Nas colunas solitárias pareceu-me ouvir um murmúrio antigo de uma floresta imóvel. O zimbório da Sé lá estava, mas não brilhava. À direita, ao chegar ao Largo, está o Museu. Espreitei mas a Sofia e o Alberto Soares já haviam saído. Ao pé do Templo de Diana, está a Biblioteca, mas, nesse dia, não havia aula de português. Não entrámos na Sé. Ana, estás aí dentro, tenho a certeza, encontraste finalmente o caminho que dá sentido à tua vida. Ergui os olhos para a massa escura da catedral, o alinhamento dos contrafortes, a renda da corda, lavrada a mãos grossas, pelas rosáceas, pelas ameias, a ascensão, até às flechas, de uma força entroncada, vinda do fundo da terra, escorrendo ainda o negrume de raízes…e os Apóstolos da Sé, à entrada, são magníficos. Depois, descemos as ruas apressadas e oblíquas, descobrindo, finalmente, o edifício da Universidade de Évora, o antigo liceu.
Procurei o bom reitor do liceu, que não encontrei. Também não dei pela presença do cão. Sobre um pequeno lago, ergue-se uma taça de mármore, onde os pombos vêm (ou vinham?) beber água. Aí tirámos a fotografia da praxe.
Saímos e vamos pela Rua do Colégio. Há uma casa à direita, ao alto de um jardim, com uma fachada de azulejos azuis. Uma outra casa adiante, com um brasão, abre-se de arcarias, num jardim traçado pela curva da rua. A guia levou-nos até ao Largo das Portas de Moura, mas não me levou à Rua da Mesquita, à casa onde viveu Vergílio Ferreira. Vimos a janela de Garcia de Resende e percorremos a Rua dos Infantes, que, desta vez, não estava embaraçada de peões. Do alto de uma janela, vem um som do princípio do mundo. Cristina toca uma música celestial. É para mim uma aparição. Oh, Cristina! E que estarás tu tocando? Bach? Beethoven? Mozart? Chopin? Não sei. Descemos agora pela Travessa da Caraça. À igreja de São Francisco chegámos quase sem forças. Passeámos pela grande nave, admirámos as pinturas atribuídas a Garcia Fernandes. Embora não fazendo parte do percurso vergiliano, entrámos na Capela dos Ossos. Visita mais apropriada para uma Quarta-Feira de Cinzas. Saímos deprimidos. Estes franciscanos, tanta canseira, para nos obrigarem a pensar por breves momentos. O milagre da vida, em face da inverossimilhança da morte. Perto, fica a casa do Chico, um tipo com um ar dominador de pugilista, com quem tenho um combate a travar, mas hoje não. O último local da viagem é o Jardim Público, junto ao busto da Florbela Espanca, ali desde 1949, da autoria do escultor Diogo de Macedo.
Através dos túneis de sombra, entrevejo Alberto Soares: «Sento-me, reconciliado, nos bancos de azulejos, fechados em recantos clandestinos, vou visitar Florbela, olho-a de um banco de madeira que lhe fica em frente, medito com ela. É uma cabeça calma, triste e majestosa. Banha-se de grandeza e gravidade desde a fronte cansada, que verga sobre as mãos em repouso, até às espáduas largas, em que o pescoço se espraia. Sinto que ela prevaleceu sobre a melancolia dos séculos e que chegou até nós para nos dar testemunho. Não está bem ali, rodeada de lirismo. E imagino-a num limite da cidade, frente à planície deserta, num alto pedestal tocando os astros…»
Finalmente, o encontro com Florbela. Interrompemos a sua meditação com a nossa poesia. Até eu, coitado, ousei dizer o poema “Alma Perdida”. Momento há muito esperado.
Por sugestão do guia, fomos terminar a peregrinação numa pastelaria afamada na cidade. Havia que descansar e retemperar forças antes de iniciar o regresso. Então, ao aproximar-me da pastelaria, vi, ao longe, o antigo edifício do Regimento de Infantaria 16 de Évora. Larguei os meus companheiros de jornada e aproximei-me com os mesmos medos de há 40 anos. Lentamente, o casarão foi rodando com a curva da rua, espiando-me do alto da sua quietude lôbrega. Entrei de supetão e veio ao meu encontro um missionário. Contei a minha história. O comandante, o louco Zé Pinheiro, não estava. Estará em nova comissão de serviço? Posso tirar uma fotografia? Só lá fora, respondeu o missionário do quartel. Eu pedi uma história quente, mas serviram-me uma recordação fria.
Juntei-me aos meus amigos, para iniciar o regresso a casa. Tinha encontro marcado com tanta gente, mas faltaram todos. No regresso, nas algibeiras, só recordações. Raiva. No tempo, há 40 anos, quando vim a esta cidade branca pela primeira vez, eu era feliz e ninguém estava morto.