(de Frederico Lourenço, in fb de 22/1/2023)
Ouvir a voz de Deus
Numa das passagens mais belas e misteriosas do Antigo Testamento, o profeta Elias é avisado de que, amanhã, Deus passará diante da gruta isolada na montanha onde Elias tem estado a viver. No momento da passagem de Deus, lemos que «houve um vento enorme, forte, que fendia montanhas e esmagava rochas diante do Senhor.» (1 Reis 19:11)
No entanto, não era neste vendaval violento que estava Deus: «o Senhor não estava no vento».
E, depois do vento, houve um terramoto: «e o Senhor não estava no terramoto».
E, depois do terramoto, um fogo: «e o Senhor não estava no fogo.»
Mas, finalmente, depois do fogo, veio «uma voz de brisa leve – e, aí, estava o Senhor.» (1 Reis 19:12).
A expressão «uma voz de brisa leve» é de uma beleza poética incrível. Pensar que Deus não está no estardalhaço, mas sim no quase-silêncio, tem um alcance muito significativo.
A palavra que traduzi por «voz» também pode significar «som»: em hebraico, «qol»; em grego, «phōnē». É por meio dela que Adão e Eva se apercebem da presença de Deus no jardim, no capítulo 3 de Génesis (onde nalgumas Bíblias lemos «som de Deus»; noutras, «voz de Deus»). Mas quando Deus Ele mesmo a emprega em Génesis 3:17, a palavra significa sem dúvida «voz»: «ouviste a voz da tua mulher», diz Deus, reprovando Adão.
A reprovação está no facto de a voz humana veicular palavras que nem sempre são benéficas (como é o caso das palavras atribuídas a Eva). As palavras divinas estão noutra categoria, embora «benéfico» possa não se afigurar o melhor adjectivo para aplicarmos a algumas palavras atribuídas a Deus no Antigo Testamento (sobretudo quando Deus dita o extermínio dos anteriores habitantes de Canaã, para os que israelitas lá possam viver).
Dir-se-á, por outro lado, que as palavras do Seu filho e porta-voz no Novo Testamento correspondem em pleno ao que se entende por benéfico: algo que faz bem e que, por si só, faz o Bem.
Na rica polifonia do Antigo Testamento – onde tanta importância é dada aos sacrifícios que o povo israelita tem que oferecer a Deus – está também clara a ideia de que Deus não valoriza assim tanto os sacrifícios: o que Ele valoriza acima de tudo (pelo menos nalgumas passagens da Escritura hebraica) é que ouçamos a Sua voz. Dando a palavra ao profeta Samuel, «Serão mais desejáveis ao Senhor sacrifícios do que escutar a voz do Senhor? Eis que escutar é melhor do que sacrifício; ouvir é melhor do que a gordura de carneiros» (1 Samuel 15:22).
Poderemos então perguntar: onde é que vamos para «escutar a voz do Senhor», como diz Samuel? Onde podemos ouvir a «voz de brisa leve», que Elias escutou?
Os cristãos acreditam que «Aquele que Deus enviou [Jesus] transmite as palavras de Deus» (João 3:34). No mesmo Evangelho, Jesus diz «quem ouve a minha palavra e crê n’Aquele que me enviou tem a vida eterna» (João 5:24).
Jesus parece estabelecer uma ligação fascinante entre «ouvir» e «crer». Sem ouvir, não há caminho para Deus.
Ouvir as palavras de Deus, porém, não constitui o fim do caminho. A finalidade última é que nós mesmos nos tornemos «morada» da voz de Deus. Esse sentido («morar», «habitar») está implícito no «permanecer» que lemos em João 15:5: «Eu sou a vinha, vós sois os ramos. Quem permanece em mim e eu nele, esse dá fruto abundante».
E sob que forma é que Jesus permanece em nós? Sob a forma das suas palavras.
«Se permanecerdes em mim e se as minhas palavras permanecerem em vós, aquilo que quiserdes, solicitai – e acontecerá para vós» (João 15:7).
O sentido de «acontecerá para vós» é enigmático. Mas eu diria que morarmos em Jesus, como consequência de as palavras dele morarem em nós, já é, por si só, um Acontecimento.
(na imagem: Elias pelo pintor italiano Guercino)