Uma mão amiga deu-me a ler “Os Fragmentos”, de Ferreira Castro, que eu desconhecia. O livro inclui, entre vários fragmentos, um romance com o título “O Intervalo”, escrito em 1936. Por razões óbvias, o livro não pôde ser publicado nessa altura. Foram, sobretudo, razões políticas, já que os adversários da República até se poderiam aproveitar do romance.
Durante 36 anos, Ferreira de Castro hesitou muito quanto às vantagens ou desvantagens da publicação de um romance que pintava, com objectividade dolorosa, a luta dos anarco-sindicalistas, no período curto de vigência da república espanhola. Ferreira de Castro dá-nos um panorama não idealista da brutalidade repressiva dos republicanos, nos momentos em que o operariado espanhol se levantou em greves ameaçadoras.
Esta foi mesmo a principal razão por que Ferreira de Castro teve sempre escrúpulos em dar à luz o seu romance. Só já em 1972, ele entendeu que tudo isso era já história, que os ânimos, de um lado e do outro, estariam já mais aplacados. Preparou-se, pois, para publicar uma versão um pouco alterada do manuscrito original, a qual só veria a luz, em 1975, após a sua morte.
O romance dá testemunho da vida, entre o proletariado espanhol dos anos trinta (imediatamente antes do começo da guerra civil), de um anarco-sindicalista português, Alexandre Novais (o alter-ego de Ferreira de Castro?).
É uma pintura poderosa e emocionante da vida difícil, sem estabilidade e frequentemente perigosa, da luta empreendida pelos operários espanhóis, num sentido de uma melhoria geral da vida de quem trabalha.
Esta visão de um intervalo entre o velho mundo da exploração e a utopia (os amanhãs que cantam), de um intervalo que significava luta. Aliás, se virmos bem, toda a obra de Ferreira de Castro não é mais que um repetir do testemunho de vidas situadas nesse intervalo. “A Selva”, “Imigrantes”, “Terra Fria”, “A Lã e a Neve”, “A Curva da Estrada” são outras tantas biografias de personagens angustiados que aspiram a emergir de um intervalo de luta para um mundo novo em que cessaria a exploração e o homem viveria finalmente livre.
O próprio Ferreira de Castro viveu toda a sua vida nesse intervalo e, quando julgava ter finalmente saído dele, a morte surpreendeu-o. Morreu no dia 29 de Junho de 1974, um mês após a Revolução do 25 de Abril.