Acabei de ler o romance Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares. É um romance negro, como parece avisar, desde logo, a cor da capa do livro. O autor leva-nos a mergulhar no mais profundo da mente humana, no que ela tem de mais terrível. Mas, a cor da capa não é um mero acaso. É o próprio autor que o confessa: “São livros pretos, no sentido de uma certa dureza, e de um certo desencanto. Com certos livros tento interferir na existência das pessoas ou pelo menos na forma de se pensar sobre certos acontecimentos. O meu instinto primário foi escrever romances para tentar perceber o mal, como é que ele surge, em que situações se manifestam. Sou um escritor pós-Auschwitz. Tenho consciência do que aconteceu”.
A acção principal desenrola-se no dia 29 de Maio, de um qualquer ano, entre as 4 da manhã e até o dia parecer estar a amanhecer, algures em ruas sombrias perto de uma igreja de uma qualquer cidade alemã, para onde convergem, irresistivelmente, as personagens principais.
A restante narrativa serve apenas para, através de analepses, dar a conhecer ao leitor a história e o perfil das várias personagens. Falemos das principais.
Theodor Busbeck é um reputado médico e investigador, ex-marido de Mylia Busbeck. Theodor desenvolveu, ao longo dos anos, um estudo que permitisse estabelecer uma relação entre o horror e o tempo. Pretendia encontrar uma fórmula que permitisse não só prever, mas, sobretudo, agir. Ansiava, por essa via, salvar indivíduos que nunca chegaria a conhecer. Finalmente, publicou a investigação que preenchera a sua cabeça ao longo de décadas: cinco grossos volumes de mais de oitocentas páginas cada um. “O terror ainda não terminou”, repetia Theodor, “nos próximos séculos muitas populações serão massacradas”, vêm aí “vários milhões de mortos”, escreveu. Apresentou ainda, no seu estudo, uma tabela onde enunciava os povos que nos próximos séculos seriam alvo de massacres e os povos que seriam responsáveis por massacrar populações indefesas. O estudo não foi bem recebido. Houve até um crítico que o aconselhou a internar-se, seguindo, aliás, o conselho que ele próprio dava aos seus doentes. Só assim, dizia o crítico, recuperaria o bom senso e a boa racionalidade. Na noite do dia 29 de Maio, Theodor, pelas três da manhã, saiu para a rua à procura de uma prostituta. Ganhara o vício de frequentar aquele tipo de locais. Encontrou Hanna, mulher que o fascinou fisicamente e lhe abriu a porta do quarto da pensão.
Mylia Busbeck foi casada com o médico Theodor. Começou por ser sua doente quando ela tinha apenas dezoito anos. “A nossa filha não tem saúde” foi a primeira frase que Theodor ouviu sobre Mylia. Com o agravar da doença, Theodor decidiu, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a esposa no Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado na cidade. Aqui, Mýlia veio a conhecer Ernst Spengler, outro internado. Desta relação, vai nascer um rapaz a quem vai ser dado o nome de Kaas. O rapaz, porém, vai ser adoptado por Theodor, o qual, a seguir, pede o divórcio de Mylia. Mais tarde, os dois saem do hospício, mas vive cada um em sua casa. Na noite de 29 de Maio, Mylia, às quatro da manhã, estava na rua à procura da igreja, que encontra fechada. Sente-se muito mal e telefona a Ernst a pedir ajuda. Quando este atende, Mylia desmaia.
Ernst Spengler, esquizofrénico, fez um filho a Mylia quando ambos estiveram internados no Hospício Georg Rosenberg. Na noite de 29 de Maio, Ernest estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Era Mylia a pedir auxílio. Saiu de casa, seriam talvez quatro, cinco da manhã. À medida que corria, gritava alto por Mylia. Mas, não obstante o seu andar desajeitado, chegou ao pé do corpo deitado. Agarrou-se a ele. Era o corpo de Mylia.
Kaas Busbeck é o filho de Mylia e Ernest, mas vive na casa de Theodor que o adoptou e se encarregou da sua educação. A sua perna direita arrastava-se cada vez mais pelo chão. Era a sua parte fraca, juntamente a sua forma de falar enrolada. Na noite de 29 de Maio, Kaas acordou e olhou para o relógio: três e cinquenta. Aproximou-se do quarto do seu pai, mas surpresa: estava vazio. O pai tinha saído. Kaas não gostou, ficou mesmo zangado com o pai. Uma cobardia, pensou. Resolveu ir à cidade à procura do pai. Deambulou pela noite e estava já a abrandar, ainda longe das ruas centrais da cidade, quando com ele se cruzou um homem. Esse homem era Hinnerk.
Hanna, a prostituta, não pintava as pálpebras de cor roxas para ser amada, mas sim para que a solidão de um homem visse ali uma interrupção exuberante. Hanna tinha um amigo, Hinnerk, ex-combatente. Na noite de 29 de Maio, Hanna estava na pensão com mais seis mulheres. “Vou sair”, disse, “São três da manhã, se não chegar até às seis é porque alguém me matou”. E dando uma risada, bateu com a porta. Saiu para passar por casa de Hinnerk, antes de ir procurar um cliente. Não encontrou Hinnerk em casa, mas Theodor veio ao seu encontro, cheio de excitação.
Hinnerk, ex-combatente, guardava para si dois objectos: uma arma e uma sensação constante de medo. “Tem cara de assassino” e “vem aí o homem” era o murmúrio que ouvia com frequência ao passar na rua. Baixava a cabeça para não ouvir. A única mulher que frequentava a sua casa era Hanna. Esta levava-lhe parte do dinheiro que ganhava na prostituição. Na noite de 29 de Maio, passava um pouco das três e meia da manhã quando Hanna tocou à porta de Hinnerk (este nunca lhe passara a chave para a mão). Tocou várias vezes, ninguém atendeu. Hinnerk havia saído, com a sua arma colocada, como sempre, entre as calças e a barriga. Naquela noite, Hinnerk procurava algo e não tinha medo. Avançava já nas imediações da igreja, sob os candeeiros da cidade, quando se cruzou com Kaas. O rapaz de doze anos, deficiente, que procurava o pai, assustou-se com a figura de Hinnerk. Este agarrou-o com força e atirou-o ao chão. Kaas ainda tentou gritar.
Noite de 29 de Maio, quatro e meia da manhã: Hinnerk acaba de sair de uma pequena ruela onde agora esta estendido o corpo de um rapaz, Kaas Busbeck. Hinnerk encontra Ernst que ajuda Mylia que desmaiara junto a uma cabine telefónica. Hinnerk oferece ajuda aos pais do rapazinho que acabara de matar. Com a ajuda, sobretudo, de Hinnerk, Mylia é levada para um banco do jardim. Hinnerk levantou a camisa e tirou a arma das calças que exibiu num tom nada agressivo. Apesar disso, Ernest e Mylia assustaram-se. Mýlia pega na arma, virou-se na direcção de Hinnerk e perguntou: “E se eu disparar?”. “Dispare!”, respondeu Hinnerk, divertido. Passado algum tempo, Mylia está fechada na cela de um hopistal-prisão. Ela fora condenada por “assassínio de um indivíduo adulto de nome Hinnerk Obst na noite de 28 de Maio do ano…”. Na mesma noite o seu filho, Kaas, havia sido assassinado de forma violenta. O assassino nunca fora identificado.
Mas, o autor, a final, surpreende-nos: a história da morte de Hinnerk precisa de ser mais bem contada. Voltando um pouco atrás, Mýlia, que havia sido incentivada a disparar, riu-se e baixou a arma. Ernest, a seu lado, pegou nela. Brinque com ela, disse Hinnerk. A conversa prosseguiu, até que, de repente, um estrondo rebenta com a cabeça de Hinnerk. Ernest está com a pistola na mão, a tremer: a bala saiu. “Que fizeste estúpido!”, diz Mylia. Mataste o homem. Mylia grita. Ernst foge o mais rápido possível daquele local. Mylia cala-se, a arma está no chão. Ernst já desapareceu. Mylia fica na mesma posição durante largos minutos até que se dobra e pega na arma. Caminha em direcção à porta da igreja. Ainda é noite, mas uma breve claridade começa, algures, a surgir. O dia parece estar a amanhecer, Mylia sente-se desmaiar, mas resiste. Finalmente, alguém se aproxima, vindo de dentro da igreja. Mýlia tem de falar para quem está dentro da igreja. Ganha forças e grita: “Matei um homem. Deixam-me entrar?” .
Jerusalém apresenta-nos personagens dilaceradas que se cruzam, se entrelaçam, se movimentam, por vezes se amam e, quase sempre, se magoam na noite de uma fria e emblemática cidade, supostamente, alemã.
A personagem do médico Theodor afigura-se-nos a mais complexa de todas. Ele próprio se considera uma espécie de Deus.Sob a capa do altruísmo e da dedicação para com a humanidade, Theodor mal disfarça seus sentimentos mais obscuros. Ele procura sempre separar com clareza os loucos e "doentes da cabeça" dos "homens saudáveis", os normais. Gaba-se da capacidade de "perceber os loucos". Donde, acha que a melhor solução é interná-los. Foi o que fez com a sua mulher.
Esta filosofia de que em mundo insano quem é são é louco remonta à clássica novela de Machado de Assis, O Alienista. Gonçalo M. Tavares não traz em si, porém, o sarcasmo aberto e corrosivo de Machado. Seu humor lembra mais o de Kafka: lúgubre e melancólico. Gonçalo assemelha-se ao autor checo também pela sua prosa lacónica e enxuta.
No final da leitura, restam dois enigmas para mim indecifráveis:
O primeiro, a data de 29 de Maio tem algum significado? A “Noite dos Cristais” é uma data conhecida pelos actos de violência que ocorreram em diversos locais da Alemanha e da Áustria, então sob o domínio nazi, com destruição de sinagogas, de lojas, de habitações e de agressões contra as pessoas identificadas como judias. Mas, isso aconteceu na noite de 9 de Novembro (de 1938);
o segundo, o título do livro. “Jerusalém” porquê?. «Jerusalém» é nome da cidade símbolo da encruzilhada de civilizações e de religiões. Será que o autor nos apresenta essa mítica cidade como símbolo dos caminhos obscuros que a mente humana pode percorrer?
Aqui ficam estes dois enigmas. Pode ser que, algum dia, eu venha a conhecer a resposta.