sábado, 28 de janeiro de 2012

Aniversário

28-Janeiro de 1980 (segunda). Aqui estou, pois, no guetto, até se cumprir um mês sobre o acidente. E para não haver grandes intervalos de escrita, aqui estou a escrever. Dá-se o caso, aliás, de cumprir hoje 64 anos. Sem comentários. Perdi no dia 4 uma boa oportunidade de não ter de fazer mais contas. Como é nova e viva esta sensação de que tudo está feito, de que é perfeitamente aceitável que a vida, os outros, nos excluam. Mas fiz 64. E curioso. E já agora talvez que venha a reflectir um pouco no que fui nesses 64. E a ideia mais forte que se me impõe (qual a que se impõe aos outros?) é a de que fui uma espécie de «falso», como se diz dos «falsos» da pintura. De um lado está o nosso ser que é normalmente, bons deuses, péssimo; e do outro o parecer, que já não é mau de todo. Entre os dois nos corre mais ou menos a vida. Ela é assim quase sempre velhacóide. Quanto a mim, deu-me pouco; e o pouco que me deu foi extremamente regateado. Oh, que a comédia acabe depressa, quero lá saber. Mas sem muita maçada, se não é muita maçada. São os votos que me faço no dia do aniversário.(…)

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 3

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Está caladinho, se queres ter trabalhinho

Confesso que, actualmente, oiço muito pouco Rádio. Apenas quando viajo de carro. Às quartas e às sextas, entre as nove e meia e as dez, aproveito uma curta viagem para estar ligado à Antena 1, propositadamente para ouvir, nesses dias, o jornalista e autor Pedro Rosa Mendes e o jornalista-viajante Gonçalo Cadilhe.

No passado dia 18 (quarta-feira), ouvi o Jornalista Pedro Rosa Mendes ler uma crónica muito dura contra o regime angolano e, de passagem, uma crítica feroz de subserviência a que se prestou a nossa RTP, o que aconteceu num programa de “Prós e Contras”.

Pensei, na altura, com os meus botões: que grande bomba! Não me admiro que a bomba rebente mesmo e alguém se aleije.

A bomba rebentou mesmo e fez vítimas, como tem sido abundantemente noticiado. Para além do jornalista Pedro Rosa Mendes, saem de cena os outros cronistas, incluindo o Gonçalo Cadilhe, que eu ouvia, com gosto, falar de viagens e livros.

Ontem, o Pedro Rosa Mendes falou ainda, no horário do costume, mas, penso, pela última vez. Falou de democracia e fez as necessárias despedidas.

A final, deixou um conselho: “Está caladinho, se queres ter trabalhinho”. Infelizmente, é verdade…

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O centenário de Redol

Leio na Imprensa de hoje que as comemorações do centenário de nascimento de Alves Redol (1911-1969) culmina esta semana com a realização de um congresso internacional, que se inicia hoje na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e prossegue, amanhã e depois, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, terra natal do autor de Gaibéus e Barranco de Cegos, livros que eu revisitei muito recentemente, sobretudo o segundo, do qual, curiosamente, falei aqui ontem.

Gaibéus foi o livro que lançou o neo-realismo na ficção portuguesa. «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte», escreveu Alves Redol na primeira edição de 1939. «Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo».

Alves Redol procurou, depois, outro caminho para a sua narrativa, como forma de responder a críticos, inclusive, com os quais partilhava cumplicidades ideológicas, como Mário Dionísio ou Óscar Lopes, que censuraram a fragilidade estética das suas primeiras obras.

Nesta via, Barranco de Cegos, publicado em 1961, oito anos antes da sua morte, teve o reconhecimento unânime da crítica, como a sua melhor obra.

Esta evolução estilística deve ser creditada a favor do escritor. O compromisso pessoal de Redol com o PCP, de que se tornou militante nos anos 40, não impediu que “o seu projecto de vida tenha sido, desde o início, o de chegar à escrita, no sentido profundo do termo, o de chegar a literatura”, afirmou agora António Pedro Pita, director do Museu do Neo-Realismo.

Por mim, penso que o conseguiu, embora continue a julgar excessivo o destaque que o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, lhe dedica, como já tive oportunidade de o dizer aqui. É a minha opinião, mas Barranco de Cegos vale mesmo a pena ser lido.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Barranco de Cegos, de Alves Redol

Acabei de ler o Barranco de Cegos, de Alves Redol. As últimas 60 páginas do livro foram lidas, na madrugada do dia hoje, de supetão. O romance foi publicado em 1962, mas a história discorre sobre os últimos anos da Monarquia em Portugal. É considerada uma das melhores criações da carreira literária do autor, sendo também considerado um dos romances essenciais do Neo-Realismo português.

Narra a luta de um proprietário ribatejano, Diogo Relvas, contra a invasão das indústrias e dos interesses financeiros, num contexto de progressiva afirmação do capitalismo. O título do romance, Barranco de Cegos, retirado da epígrafe de S. Mateus ("Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco") anuncia, no entanto, que esse combate se encontra, à partida, perdido.

O romance narra a caminhada inconsciente e irremediável da família Relvas e da Nação para o abismo de derrota e de morte, simbolizados, no último capítulo, no corpo embalsamado do velho Relvas que persiste em manter-se agarrado à vida. Cegos são os servos, criados e campinos oprimidos, comandados pelo cego, obstinado e autoritário, Diogo Relvas, ele também guiado por outros cegos, os políticos, o rei, correndo todos para um precipício. Vale a pena ler. Comparado com os Gaibéus, que li o ano passado, este é um livro bem mais consistente.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Pai-Nosso

Os moçárabes eram os cristãos que viviam na península ibérica durante o domínio árabe. Desenvolveram uma liturgia própria que prolongou a tradição suevo-visigótica.

Através deste vídeo, podemos aqui ouvir o canto do Pai-Nosso atribuído à tradição moçárabe, interpretado pelos monges de S. Domingo de Silos, Espanha.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Um amigo de Pessoa

A propósito da génese dos heterónimos, foi o próprio Fernando Pessoa que, em carta de 13 de Janeiro de 1935, dirigida a Casais Monteiro, deixou escrito: “Ricardo Reis vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontâneamente por ser monárquico”.

O poeta da Mensagem deixou-nos assim um enigma: o que aconteceu ao Ricardo Reis que partiu para o Brasil em 1919 e nunca mais voltou?

José Saramago veio ajudar na resolução deste enigma. O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, conta-nos a história de Ricardo Reis que regressa a Portugal depois de ser informado da morte de Fernando Pessoa. O livro começa em fins de 1935 e vai terminar nove meses depois com a “morte” de Ricardo Reis. No final do livro, Saramago põe na boca de Ricardo Reis: “deixo o mundo aliviado de um enigma”.

Faltava, porém, saber onde se havia Fernando Pessoa inspirado na criação do heterónimo Ricardo Reis.

O Jornal “Publico”, de ontem, trazia uma notícia curiosa sobre a existência de um amigo, até agora desconhecido, de Fernando Pessoa: Carlos Lobo de Oliveira (1895-1973), poeta e tradutor, cuja obra se iniciou em 1912, em revistas literárias como a “Águia”, estando a sua obra disponível no “site” dedicado ao seu espólio - http://www.carloslobooliveira.com/

Numa pasta deste arquivo foi encontrada uma carta de Pessoa, de 17 de Maio de 1928, para Carlos Lobo, que reza assim: “Meu querido Carlos: Só hoje recebi - hoje mesmo a haviam deixado no Café Arcada – a sua carta de 24 de Abril. Consegui arranjar-lhe 3 exemplares da “Athena” que contém o “Christmas Cake”….A minha morada perpetua é Apartado (ou Caixa Postal) 147, Lisboa. Um abraço do muito seu, Fernando Pessoa».

Sabe-se que Carlos Lobo, para fugir às sangrentas represálias decorrentes da sua participação no Movimento da Monarquia do Norte, emigrou para a Galiza e depois para o Brasil, onde viveu desde 1919 a 1924. Não deixa, assim, de ser curiosa, quiçá especulativa, a coincidência entre alguns aspectos da biografia de Carlos Lobo com o heterónimo de Fernando Pessoa, Ricardo Reis.

A relação de amizade entre Carlos Lobo e Fernando Pessoa pode muito bem ter inspirado a gestação de Ricardo Reis.

Se assim for, parece termos agora a história completa acerca deste heterónimo: Carlos Lobo foi a fonte inspiradora de Ricardo Reis; José Saramago marcou o ano e as circunstâncias da morte de Ricardo Reis.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Contos Tradicionais Portugueses: O caldo de pedra



O caldo de pedra

Um frade andava no peditório. Chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada.
O frade estava a cair de fome e disse:
- Vou ver se faço um caldinho de pedra.
E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela, como para ver se era boa para um caldo.
A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
- Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhe:
- Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, pediu:
- Se me emprestassem aí um pucarinho...
Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.
- Agora, se me deixassem estar a panelinha aí, ao pé das brasas...
Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:
- Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava a primor!
Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada com o que via.
O frade, provando o caldo:
- Está um nadinha insosso. Bem precisa duma pedrinha de sal.
Também lhe deram o sal. Temperou, provou e disse:
- Agora é que, com uns olhinhos de couve, ficava que até os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves. O frade limpou-as, ripou-as com os dedos e deitou as folhas na panela. Quando os olhos já estavam aferventados, arriscou:
- Ai! Um naquinho de chouriça é que lhe dava uma graça!...
Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço. Ele pô-lo na panela e, enquanto se cozia, tirou do alforge pão e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo.
Comeu e lambeu o beiço.
Depois de despejada a panela, ficou a pedra no fundo.
A gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:
- Ó senhor frade, então a pedra?
- A pedra... Lavo-a e levo-a comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

Teófilo Braga, in Contos Tradicionais Portugueses

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Foge, cão, que te fazem barão. Para onde? Se me fazem visconde

O Governo nomeou ontem o presidente da Câmara do Fundão, afecto ao PSD, Manuel Frexes, e o vice-presidente da Câmara do Porto, do CDS-PP, Álvaro Castello-Branco, para o conselho de administração das Águas de Portugal, situação que vem merecendo várias críticas, inclusive do PS (pasme-se!) que considera a situação «muito grave».

Recorde-se que, na semana passada, Eduardo Catroga, entre outros nomes, foram propostos para o conselho geral e de supervisão da EDP.

Se eu fosse militante de algum partido do Governo, saía da minha zona de conforto e emigrava o mais rapidamente possível, não fosse o Governo lembrar-se de mim para alguma cadeira dourada.

Almeida Garrett, se ainda fosse vivo, diria: “Foge, cão, que te fazem barão. Para onde? Se me fazem visconde”.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Assumam-se!

Durante a minha vida, ouvi muitas vezes o seguinte diálogo:

- É católico?

- Sim, sou católico, mas não praticante.

Nos últimos dias, tenho ouvido, como nunca, este diálogo:

- É mação?

- Sim, sou mação, mas adormecido.

Assumam-se!

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A estrela de Sophia de Mello Breyner Andresen

Quantas vezes procuramos fora de nós aquilo que está tão próximo! Quantas vezes procuramos longe o que está próximo!. Como também diz Sophia de Mello Breyner Andresen, neste lindo poema sobre a estrela que guiou os magos: “Quanto deserto / Atravessei para encontrar aquilo / que morava entre os homens e tão perto”.

A ESTRELA
Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram

E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima
De uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto
»


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

As lojas maçonicas e as lojas do Pingo Doce

"— Todos somos réus - comentou o Pereira Saldanha, ao introduzir um pedaço de rapé nas ventas.
— Não estou de acordo — gritou Zé Botto, tentando desembaraçar o corpo pesado dos braços do cadeirão — Réus, como?!. Para mim, e há muito boa gente da mesma opinião, todo o mal comeu com a revolta do Porto. A revolta republicana meteu medo às pessoas de bem. Eu sei de alguns que puseram o seu dinheiro lá foraEm Paris e em Londres. Devem ter desaparecido fortunas nessa altura. E ainda estão a escapar-se...
— Esses são os cobardes de sempre! — observou João Vitorino - São os mesmos que põem o dinheiro a salvo e encetam conversas, às escondidas, com os mações e os carbonários.
—Mas será tudo?! —perguntou Diogo Relvas do fundo da sala… — Ao que julgo, há uma soma de acontecimentos. A independência do Brasil…
— As lutas liberais — objectou alguém.
— Eu insisto: a independência do Brasil, às aventuras coloniais, agora a implantação da república brasileira, o ultimato, a revolução do Porto... e a falência do Baring Brothers ou lá o que é".

Alves Redol, in Barranco de Cegos

Este romance foi escrito em 1962 e é considerado por muitos a melhor obra de Alves Redol. A narrativa começa à volta do ultimato britânico em 1890 e do colapso financeiro em 1891.

Nestes dias, tem-se falado muito em lojas maçónicas e nas lojas da família Alexandre Soares dos Santos.

Nem de propósito, este excerto do livro que comecei agora a ler...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Jerusalém, de Gonçalo M.Tavares

Acabei de ler o romance Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares. É um romance negro, como parece avisar, desde logo, a cor da capa do livro. O autor leva-nos a mergulhar no mais profundo da mente humana, no que ela tem de mais terrível. Mas, a cor da capa não é um mero acaso. É o próprio autor que o confessa: “São livros pretos, no sentido de uma certa dureza, e de um certo desencanto. Com certos livros tento interferir na existência das pessoas ou pelo menos na forma de se pensar sobre certos acontecimentos. O meu instinto primário foi escrever romances para tentar perceber o mal, como é que ele surge, em que situações se manifestam. Sou um escritor pós-Auschwitz. Tenho consciência do que aconteceu”.

A acção principal desenrola-se no dia 29 de Maio, de um qualquer ano, entre as 4 da manhã e até o dia parecer estar a amanhecer, algures em ruas sombrias perto de uma igreja de uma qualquer cidade alemã, para onde convergem, irresistivelmente, as personagens principais.

A restante narrativa serve apenas para, através de analepses, dar a conhecer ao leitor a história e o perfil das várias personagens. Falemos das principais.

Theodor Busbeck é um reputado médico e investigador, ex-marido de Mylia Busbeck. Theodor desenvolveu, ao longo dos anos, um estudo que permitisse estabelecer uma relação entre o horror e o tempo. Pretendia encontrar uma fórmula que permitisse não só prever, mas, sobretudo, agir. Ansiava, por essa via, salvar indivíduos que nunca chegaria a conhecer. Finalmente, publicou a investigação que preenchera a sua cabeça ao longo de décadas: cinco grossos volumes de mais de oitocentas páginas cada um. “O terror ainda não terminou”, repetia Theodor, “nos próximos séculos muitas populações serão massacradas”, vêm aí “vários milhões de mortos”, escreveu. Apresentou ainda, no seu estudo, uma tabela onde enunciava os povos que nos próximos séculos seriam alvo de massacres e os povos que seriam responsáveis por massacrar populações indefesas. O estudo não foi bem recebido. Houve até um crítico que o aconselhou a internar-se, seguindo, aliás, o conselho que ele próprio dava aos seus doentes. Só assim, dizia o crítico, recuperaria o bom senso e a boa racionalidade. Na noite do dia 29 de Maio, Theodor, pelas três da manhã,  saiu para a rua à procura de uma prostituta. Ganhara o vício de frequentar aquele tipo de locais. Encontrou Hanna, mulher que o fascinou fisicamente e lhe abriu a porta do quarto da pensão.

Mylia Busbeck foi casada com o médico Theodor. Começou por ser sua doente quando ela tinha apenas dezoito anos. “A nossa filha não tem saúde” foi a primeira frase que Theodor ouviu sobre Mylia. Com o agravar da doença, Theodor decidiu, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a esposa no Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado na cidade. Aqui, Mýlia veio a conhecer Ernst Spengler, outro internado. Desta relação, vai nascer um rapaz a quem vai ser dado o nome de Kaas. O rapaz, porém, vai ser adoptado por Theodor, o qual, a seguir, pede o divórcio de Mylia. Mais tarde, os dois saem do hospício, mas vive cada um em sua casa. Na noite de 29 de Maio, Mylia, às quatro da manhã, estava na rua à procura da igreja, que encontra fechada. Sente-se muito mal e telefona a Ernst a pedir ajuda. Quando este atende, Mylia desmaia.

Ernst Spengler, esquizofrénico, fez um filho a Mylia quando ambos estiveram internados no Hospício Georg Rosenberg. Na noite de 29 de Maio, Ernest estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Era Mylia a pedir auxílio. Saiu de casa, seriam talvez quatro, cinco da manhã. À medida que corria, gritava alto por Mylia. Mas, não obstante o seu andar desajeitado, chegou ao pé do corpo deitado. Agarrou-se a ele. Era o corpo de Mylia.

Kaas Busbeck é o filho de Mylia e Ernest, mas vive na casa de Theodor que o adoptou e se encarregou da sua educação. A sua perna direita arrastava-se cada vez mais pelo chão. Era a sua parte fraca, juntamente a sua forma de falar enrolada. Na noite de 29 de Maio, Kaas acordou e olhou para o relógio: três e cinquenta. Aproximou-se do quarto do seu pai, mas surpresa: estava vazio. O pai tinha saído. Kaas não gostou, ficou mesmo zangado com o pai. Uma cobardia, pensou. Resolveu ir à cidade à procura do pai. Deambulou pela noite e estava já a abrandar, ainda longe das ruas centrais da cidade, quando com ele se cruzou um homem. Esse homem era Hinnerk.

Hanna, a prostituta, não pintava as pálpebras de cor roxas para ser amada, mas sim para que a solidão de um homem visse ali uma interrupção exuberante. Hanna tinha um amigo, Hinnerk, ex-combatente. Na noite de 29 de Maio, Hanna estava na pensão com mais seis mulheres. “Vou sair”, disse, “São três da manhã, se não chegar até às seis é porque alguém me matou”. E dando uma risada, bateu com a porta. Saiu para passar por casa de Hinnerk, antes de ir procurar um cliente. Não encontrou Hinnerk em casa, mas Theodor veio ao seu encontro, cheio de excitação.

Hinnerk, ex-combatente, guardava para si dois objectos: uma arma e uma sensação constante de medo. “Tem cara de assassino” e “vem aí o homem” era o murmúrio que ouvia com frequência ao passar na rua. Baixava a cabeça para não ouvir. A única mulher que frequentava a sua casa era Hanna. Esta levava-lhe parte do dinheiro que ganhava na prostituição. Na noite de 29 de Maio, passava um pouco das três e meia da manhã quando Hanna tocou à porta de Hinnerk (este nunca lhe passara a chave para a mão). Tocou várias vezes, ninguém atendeu. Hinnerk havia saído, com a sua arma colocada, como sempre, entre as calças e a barriga. Naquela noite, Hinnerk procurava algo e não tinha medo. Avançava já nas imediações da igreja, sob os candeeiros da cidade, quando se cruzou com Kaas. O rapaz de doze anos, deficiente, que procurava o pai, assustou-se com a figura de Hinnerk. Este agarrou-o com força e atirou-o ao chão. Kaas ainda tentou gritar.

Noite de 29 de Maio, quatro e meia da manhã: Hinnerk acaba de sair de uma pequena ruela onde agora esta estendido o corpo de um rapaz, Kaas Busbeck. Hinnerk encontra Ernst que ajuda Mylia que desmaiara junto a uma cabine telefónica. Hinnerk oferece ajuda aos pais do rapazinho que acabara de matar. Com a ajuda, sobretudo, de Hinnerk, Mylia é levada para um banco do jardim. Hinnerk levantou a camisa e tirou a arma das calças que exibiu num tom nada agressivo. Apesar disso, Ernest e Mylia assustaram-se. Mýlia pega na arma, virou-se na direcção de Hinnerk e perguntou: “E se eu disparar?”.Dispare!”, respondeu Hinnerk, divertido. Passado algum tempo, Mylia está fechada na cela de um hopistal-prisão. Ela fora condenada por “assassínio de um indivíduo adulto de nome Hinnerk Obst na noite de 28 de Maio do ano…”. Na mesma noite o seu filho, Kaas, havia sido assassinado de forma violenta. O assassino nunca fora identificado.

Mas, o autor, a final, surpreende-nos: a história da morte de Hinnerk precisa de ser mais bem contada. Voltando um pouco atrás, Mýlia, que havia sido incentivada a disparar, riu-se e baixou a arma. Ernest, a seu lado, pegou nela. Brinque com ela, disse Hinnerk. A conversa prosseguiu, até que, de repente, um estrondo rebenta com a cabeça de Hinnerk. Ernest está com a pistola na mão, a tremer: a bala saiu. “Que fizeste estúpido!”, diz Mylia. Mataste o homem. Mylia grita. Ernst foge o mais rápido possível daquele local. Mylia cala-se, a arma está no chão. Ernst já desapareceu. Mylia fica na mesma posição durante largos minutos até que se dobra e pega na arma. Caminha em direcção à porta da igreja. Ainda é noite, mas uma breve claridade começa, algures, a surgir. O dia parece estar a amanhecer, Mylia sente-se desmaiar, mas resiste. Finalmente, alguém se aproxima, vindo de dentro da igreja. Mýlia tem de falar para quem está dentro da igreja. Ganha forças e grita: “Matei um homem. Deixam-me entrar?” .

Jerusalém apresenta-nos personagens dilaceradas que se cruzam, se entrelaçam, se movimentam, por vezes se amam e, quase sempre, se magoam na noite de uma fria e emblemática cidade, supostamente, alemã.

A personagem do médico Theodor afigura-se-nos a mais complexa de todas. Ele próprio se considera uma espécie de Deus.Sob a capa do altruísmo e da dedicação para com a humanidade, Theodor mal disfarça seus sentimentos mais obscuros. Ele procura sempre separar com clareza os loucos e "doentes da cabeça" dos "homens saudáveis", os normais. Gaba-se da capacidade de "perceber os loucos". Donde, acha que a melhor solução é interná-los. Foi o que fez com a sua mulher.

Esta filosofia de que em mundo insano quem é são é louco remonta à clássica novela de Machado de Assis, O Alienista. Gonçalo M. Tavares não traz em si, porém, o sarcasmo aberto e corrosivo de Machado. Seu humor lembra mais o de Kafka: lúgubre e melancólico. Gonçalo assemelha-se ao autor checo também pela sua prosa lacónica e enxuta.

No final da leitura, restam dois enigmas para mim indecifráveis:
O primeiro, a data de 29 de Maio tem algum significado? A “Noite dos Cristais” é uma data conhecida pelos actos de violência que ocorreram em diversos locais da Alemanha e da Áustria, então sob o domínio nazi, com destruição de sinagogas, de lojas, de habitações e de agressões contra as pessoas identificadas como judias. Mas, isso aconteceu na noite de 9 de Novembro (de 1938);
o segundo, o título do livro. “Jerusalém” porquê?. «Jerusalém» é nome da cidade símbolo da encruzilhada de civilizações e de religiões. Será que o autor nos apresenta essa mítica cidade como símbolo dos caminhos obscuros que a mente humana pode percorrer?

Aqui ficam estes dois enigmas. Pode ser que, algum dia, eu venha a conhecer a resposta.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Lamego


Uma voz amiga faz o favor de me lembrar datas “importantes” da nossa vida militar em comum. Passam hoje 40 anos sobre a minha ida para Lamego, para frequentar o 2º Ciclo do C.O.M.. Os meus camaradas ficaram em Mafra, mas a mim (lá viram que tinha bom corpo para amochar), deram-me guia de marcha para os Rangers, em Lamego.
A minha viagem até Lamego, há quarenta anos, é inesquecível. Nesse longínquo dia 3 de Janeiro de 1971, apanhei um comboio às 7h, 30m com destino à cidade da Guarda, onde era suposto apanhar um autocarro por volta das 15h,30m, para chegar a Lamego às 17h. Este era o plano de viagem estabelecido, em face dos transportes disponíveis ao tempo. Acontece que na noite anterior caiu um grande nevão em toda a zona centro do país. Chegado à Guarda, os autocarros estavam impedidos de circular, donde a solução foi prosseguir a viagem de comboio até à Régua (estação mais próxima de Lamego), com passagem por Coimbra e Porto. Cheguei a Lamego por volta das 22h, pelo que, face ao adiantado da hora, já não me apresentei no quartel. Procurei, eu e mais uns tantos camaradas que haviam passado pelos mesmos contratempos, uma pensão para passar a noite. Já não me lembro da ementa do jantar, mas lembro-me que comi, nessa noite, uns pedacinhos de presunto como nunca comera na minha vida. Hoje, à distância de 40 anos, não sei se o presunto seria assim tão bom. Eu sentia-me o homem mais desgraçado,  mas o sabor dele encheu-me a alma e fez com que houvesse ainda mundo à minha volta...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Há dois dias, o jornal “Público” trazia a notícia da adaptação cinematográfica, por Luchino Visconti, de dois livros de Fiódor Dostoiévski. Um deles é “Noites Brancas”, escrito em 1848, um ano antes da sua prisão na Sibéria.

Li este livro há já alguns anos. Narra a história de um homem, sem nome, que vagueia pela noite branca (um fenómeno comum na Europa quando o Sol não chega a pôr-se completamente à noite) de São Petersburgo. A sua solidão é preenchida quando se apaixona por Nastrienka, uma mulher que espera por um antigo amor.

O filme existe agora em DVD, o que aguça a minha curiosidade. Por regra, nem sempre um bom livro dá um bom filme. Vamos ver, mas palpita-me que sim.