quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (2)

Volto aqui à Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, após ter participado, no dia 19 deste mês, no Grupo de Leituras sobre Narrativa Portuguesa, que teve lugar na Fundação das Casas de Fronteira e Alorna. A palestrante foi a Profª. Maria Helena Santana e teve a presença da Profª. Maria Alzira Seixo, como convidada especial.
Do que li e do que ouvi, deixo aqui, por isso, mais uns tantos comentários.
A questão principal parece, pois, ser a seguinte: De quem é a confissão desta narrativa? De Lúcio? De Ricardo? Do próprio Mário de Sá-Carneiro?
O argumento da narrativa, recorrendo curiosamente ao formato de um romance policial, é muito simples: Após 10 anos de prisão, Lúcio decide dar uma confissão sincera que explica todas as circunstâncias do assassinato envolvido em mistério e demonstrar a sua inocência.
As personagens principais da narrativa são três. Lúcio, Ricardo e Marta. E o enredo é também incrivelmente (ou só aparentemente) simples:
1- Lúcio vai para Paris estudar Direito, ou melhor, não estudar...Aí conhece Ricardo Loureiro, por quem logo experimentou uma viva simpatia. Os dois participam numa espectáculo assombroso, oferecido pela amiga americana. A “Orgia do Fogo” foi assim um espectáculo de luzes, corpos, aromas, fogo e água!. Mas, para Lúcio, a lembrança deste fabuloso espectáculo ficou gravada na sua lembrança, não por a ter vivido, mas sim porque, dessa noite, nasceu a sua amizade por Ricardo!. Esse encontro marcou o princípio da sua vida!.
2-  Esse relacionamento intensifica-se e Ricardo revela-se: «Diga-me, Lúcio, você não é sujeito a certos medos inexplicáveis, destrambelhados?» Ricardo diz ainda: «a minha alma não se angustia apenas, a minha alma sangra»...«Sim, a minha pobre alma anda morta de sono, e não deixam dormir - tem frio e não a sei aquecer! Endurece-se-me toda, toda!»...«Até que um dia (oh! É fatal) ela se me partirá, voará em estilhaços... a minha pobre alma! A minha pobre alma!»
3- Ricardo encheu-se coragem para confessar: «É isto só: não posso ser amigo de ninguém...não proteste..eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar...de estreitar...Enfim: de possuir!»
Atente-se como M.S.C. condensou toda a narrativa nesta quadra do poema:
"Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse --- ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!"
4- Entretanto, Ricardo regressou a Portugal, a Lisboa. Lúcio regressa também a Lisboa, decorrido um ano. No regresso, Ricardo apresenta a Lúcio a sua mulher-Marta - com quem havia casado. «Era uma linda mulher loira, muito loira, alta escultural – e a carne mordorada, dura, fugitiva». Mulher fatal e inatingível!».
5- A personagem misteriosa de Marta é um símbolo da ligação do corpo de Lúcio com a alma de Ricardo. Lúcio aproxima-se de Marta, fascinado pelo mistério que a envolve. Mas o que o impelia para aquela mulher, não era a sua alma, não era a sua beleza – era só o seu mistério. Derrubado o segredo, esvair-se-ia o encantamento e ele poderia caminhar bem seguro. «Por fim os nossos corpos embaralharam-se, oscilaram perdidos numa ânsia ruiva...»...«... e em verdade não fui eu que a possuí – ela, toda nua, ela sim, é que me possuiu...».
6- Entretanto, a ligação entre Lúcio e Marta foi prosseguindo, sem uma sombra. Marta, de resto, encarava o seu relacionamento com Lúcio sem qualquer prudência. Até que, um dia, Marta exigiu, na presença de Ricardo, que Lúcio a beijasse. O que Lúcio fez desajeitamente. Marta exigiu então a Ricardo que o ensinasse. Surpresa. «Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim...tomou-me o rosto...beijou-me...»!... «O beijo de Ricardo fora igual, exactamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira!». Rematou assim Lúcio.
7- Porém, com o decorrer do tempo, Lúcio começa a observar uma certa mudança na atitude de Marta. Será que ela tem outro amante?. Decide espioná-la. E é verdade. Marta é também amante do russo Sérgio. E será que tem mais amantes? E Ricardo sabe dos amantes de Marta? Adensa-se o Mistério de Marta!
8- Desiludido, Lúcio parte para Paris. «De novo, ungindo-me de Europa, alastrando-me da sua vibração, se encapelava dentro de mim Paris – o meu Paris, o Paris dos meus vinte e três anos...».
9- Em Paris, Lúcio tem conhecimento da publicação do livro DIADEMA, de que é autor Ricardo, obra essa que veio revelar ao mundo uma literatura nova...
10- Cresce em Lúcio, entretanto, algo de muito bizarro: no asco, no ódio que sentia por Ricardo, «misturava-se como que um vago despeito, um ciúme, um verdadeiro ciúme dele próprio»...«num relâmpago me voou pelo cérebro a ideia rubra de o assassinar – para satisfazer a minha inveja, o meu ciúme: para me vingar dele!».
11- Desde que chegara a Paris, Lúcio não avançou uma linha do drama que vinha escrevendo, «já nem sequer me lembrava de que era um escritor...» Entretanto, Lúcio escreve o último acto d`A Chama e parte com ele, de volta, para Lisboa.
12- Por mero acaso, Lúcio encontra Ricardo, deixando-o, num primeiro momento, sem reacção. Ricardo confessa-se: «Esqueceste-o?...Eu não podia ser amigo de ninguém...não podia experimentar afectos...Tudo em mim ecoava em ternuras...» e continuou «Dedicavas-me um grande afecto; eu queria vibrar esse teu afecto – isto é: retribuir-to; e era-me impossível!... Só se te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse...Ah! mas como possuir uma criatura do nosso sexo?». Como fazer? «retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas estreitando-te ela, era eu próprio quem te estreitava...Satisfiz a minha ternura». Atónito, Lúcio ouvia o poeta como que hipnotizado. Por fim, Ricardo agarrou, violentamente, Lúcio por um braço...e obrigou-o a correr com ele... até casa.
13- Aproxima-se o desenlace final. «Chegou a hora de dissipar fantasmas... Ela é só tua..hás-de-me acreditar». Gritou Ricardo em delírio, puxando Lúcio para os aposentos da esposa. Marta folheava um livro junto à janela. Mal teve tempo de se voltar. Ricardo puxou de um revólver e desfechou-o à queima-roupa...Marta tombou inanimada no solo...«E então foi o Mistério...o Mistério fantástico da minha vida...» Espanta-se Lúcio: «Ó assombro! Ó quebranto!. Quem jazia estiraçado junto da janela não era Marta – não!-, era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés-sim, aos meus pés! – caíra o seu revólver ainda fumegante!...» ...«Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama...»
14- Por fim, diz Lúcio, achou-se preso num calabouço do Governo Civil, guardado à vista por uma sentinela...
15- Cumpridos os 10 anos de prisão, não resta a Lúcio que não seja dar a sua versão dos factos e explicar (será que alguma vez ele será capaz de explicar o que é inexplicável?) todas as circunstâncias do assassinato envolvido em mistério.

Saído do cárcere, Lúcio retirou-se para uma vivenda rural, isolada, perdida, sem desejos, sem esperanças, sem preocupações quanto ao futuro. Antes da morte real, o autor apenas quis escrever a sua estranha aventura. Ela prova, diz ele, como factos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverosímil - embora verdadeira.
Como o próprio diz a final, sobre tudo pairou um vago ar de mistério. Marta foi procurada pela polícia, mas em vão ( será que poderia haver outro resultado?).
Comentários finais
Parece que M. Sá-Carneiro mistura muito do que era a sua história com muito do que seria o seu futuro. Sem o saber? Será assim?. Este livro foi considerado por José Régio uma obra-prima, onde estão presentes três das suas obsessões: o suicídio, o amor e o anormal avançando até à loucura.
Nesta obra desfilam temas como o suícidio, a modernidade, a ânsia de grandes cidades, o culto de Paris e da sua tradição face ao burgo português, ou, uma vez mais, a loucura (vide Loucura, de Mário de Sá-Carneiro). Não sem antes, no meio da receita, temperar tudo isto com uma descrição mordaz e deliciosa da falsidade poética, do exagero na criação de movimentos artísticos e do snobismo intelectual
Para além do mais, esta obra ganha um sabor especial por constituir uma espécie de versão portuguesa de O Retrato de Dorian Gray. Mas, ao contrário do livro do também brilhante Oscar Wilde, Sá-Carneiro troca as personagens, retira-lhes previsibilidade e aspira tudo o que está a mais no texto, deixando apenas génio, sem lacunas ou artefactos. Em comum com este tem a procura de uma nova estética e um surrealismo muito característico. Ganha Oscar Wilde em descrição da sociedade, ganha Sá-Carneiro em descrição da mente. Curioso nesta aproximação Wildesca, é o facto de, pioneiramente, Sá-Carneiro quase introduzir o tema da homossexualidade, tão presente na vida de Wilde.
Em Mário de Sá-Carneiro, as personagens das suas novelas são dispersas, enlouquecidas e quase sempre buscam uma solução para fugir aos seus problemas, ou seja, à realidade.
Tendo Fiódor Dostoiévsky como uma das suas referências, podemos ver, nesta narrativa, uma aproximação entre Lúcio e Raskólnikov, as duas personagens principais: monólogo interior a tentar explicar os motivos que levaram ao assassinato.
Podemos ainda falar, como marca de carácter do autor, do Complexo de Ícaro. «...a vida de todos os dias - é a única que eu amo. Simplesmente não a posso existir». No poema QUASE, M.S.C. recorre à história da antiga mitologia grega com os seus símbolos característicos: sol, asas e mar.

Conclusão
O desdobramento das personagens é um tema permanente das novelas e poemas de Mário de Sá-Carneiro. As marcas do desdobramento das personagens reflecte-se por exemplo no conto Eu-Próprio o Outro. O narrador transforma-se lentamente em alguém outro, por quem sentiu no inicio admiração. Ao fundirem-se as duas almas (do Eu e do Outro), o narrador deseja fugir do outro, porque assim perde a sua individualidade.
“Já não existo. Precipitei-me nele.
Confundi-me.
Deixámos de ser nós-dois. Somos um só.
Eu bem o pressentia, era fatal...
Ah! Como o odeio!
Foi-me sugando pouco a pouco.
O seu corpo era poroso. Absorveu-me. (...)”

Não é surpreendente que as novelas ilustram as próprias sensações do autor, a sua alma desdobrada, a ânsia de fugir de si mesmo e o desejo de ser o outro. Contudo, numa das cartas mandadas a Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro confessa que a duplicidade das almas não pode existir. Escreve que, no caso da compreensão total entre as duas almas, os corpos morrem e persiste só uma alma fundida.
Este pode ser o caso da Confissão de Lúcio. Os corpos de uma pessoa unida morreram (cada um do seu próprio modo: um corpo desaparece, um fica morto no chão e o terceiro e ainda vivo mas sem sensação da vida) mas a alma fundida sobreviveu.
A personagem desdobrada de uma alma não conseguiu viver no mundo real. Por causa da sua alma dispersa, as suas partes - Lúcio e Ricardo - não foram capazes de aceitar nas suas vidas a Marta, a personificação da arte. Não conseguiam viver na vida real e a convivência com Marta trouxe consigo martírios ainda mais pesados. Marta tornou-se um elemento que desdobrou ainda mais as duas partes (de Lúcio e de Ricardo) duma personagem. Por isso, a morte bizarra, com certeza significa um tipo da libertação dos martírios que já ultrapassaram as fronteiras aceitáveis.
Mas tal como a alma, também a arte não se pode matar. Assim podemos explicar o desaparecimento de Marta. Pois, Ricardo tentou matá-la, mas como a arte é imortal, Marta não morreu, somente desapareceu. Em vez de Marta, estendeu-se no chão o corpo de Ricardo e Marta, como um espírito artístico dissipa-se para encontrar outro espaço, ou seja, outro corpo em que podia dar impulsos para criatividade artística.
Também o próprio Mário de Sá-Carneiro não encontrou modo para viver a vida quotidiana, também a sua alma foi desdobrada, e ainda que quisesse, não conseguiu nem viver no mundo real nem no mundo de arte e decidiu suicidar-se da mesma forma como os protagonistas da Confissão de Lúcio. Se calhar, também a sua alma artística ficou a viver à procura doutra colocação.
A Confissão de Lúcio pode ser, portanto, percebida como a confissão do próprio autor.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Senhora Presidente ou Senhora Presidenta?

Senhora Presidente ou Senhora Presidenta? Boa questão. Pertinente como vulgo se diz.
Como é sabido, existe um permanente conflito entre a norma e o uso. A norma é a gramática, o uso é aquilo que a maioria das pessoas (provavelmente num número cada vez maior) diz no dia a dia. E o que acontece é que, ao fim de muitos anos, a norma adopta o uso. Sempre foi assim. Mas, enquanto tal não acontece, o uso viola a norma. Donde, quem não respeita a norma, comete um erro gramatical. Os Acordos Gramaticais e as Reformas da Língua, que sempre houve ao longo da nossa História, com mais de 800 anos, servem precisamente para isso.
No caso presente, o vocábulo presidenta já se encontra dicionarizado. Tenho aqui comigo o Dicionário da Língua Portuguesa 2010, da Porto Editora, e lá vem: «presidenta=mulher que preside». Tenho também aqui à mão o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o qual, do mesmo modo, nos apresenta: «presidenta=mulher que se elege para a presidência de um país; mulher que preside...». Surpresa! Reparo agora que o "velho" Dicionário do Morais, em minha casa há mais de 30 anos, já nos apresenta: «presidenta=mulher que preside; mulher de um presidente».
Por último, fui ver o que o Prof. Lindley Cintra diz sobre esta matéria e nova surpresa. E o que diz ele?. Pois, a pág. 195 da sua Nova Gramática do Português Contemporâneo, diz assim:
«os substantivos terminados em e são geralmente uniformes. Essa igualdade formal para os dois géneros é quase absoluta nos finalizados em nte de regra originários de particípios presentes e de adjectivos uniformes latinos. Há, porém, um pequeno número que, à semelhança da substituição do o (masculino) para a (feminino), troca o e por a (ex: elefante/elefanta; governante/governanta; infante/infanta; mestre/mestra; monje/monja; parente/parenta».
Depois, diz ainda em observações: «os femininos giganta (de gigante), hóspeda (de hóspede) e presidenta (de presidente), têm ainda curso restrito no idioma». Isto disse o ilustre linguista em 1984, já há cerca de 28 anos.
Em conclusão, propendo a aceitar, como boa, a forma presidenta.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Os Bichos, de Miguel Torga

Há cerca de um mês, a RTP-2 apresentou, com toda a justiça, no programa GRANDES LIVROS, 2ª Série, o livro Bichos, de Miguel Torga, editado em 1940, reeditado, mais tarde, em traduções sucessivas para variadíssimas línguas. Animais com sentir humano ou seres humanos vestidos de animais. Homens que são bichos e bichos que são seres humanos. Nero conta-nos a última hora de um cão. Morgado é a história do burro que, após uma vida de trabalho, é abandonado pelo dono. Tenório é a história do galo que é confrontado com o seu declínio. Mago é a história do gato que se deixou domesticar pela dona. Miura é a história do touro que, já vencido, se entrega à espada. Madalena é a história de uma mulher de Trás-os-Montes que se isola para dar à luz. Estas são algumas das histórias do livro que nos fala da perda da essência humana.
O último conto do livro conta a história do Vicente. Vicente é um corvo que, inconformado, foge da Arca de Noé e que, em luta com o Criador, não se rende.
O conto baseia-se no episódio bíblico da Arca de Noé. Deus, zangado com a conduta dos homens, decide puni-los. Mas que tinham a ver os bichos com as fornicações dos homens? Vicente, incorformado, decorridos 40 dias após a entrada na Arca, resolve fugir. Abre as asas e vai «de encontro à imensidão terrível do mar».
Diz Torga que «o seu gesto foi, naquele momento, o símbolo da universal libertação».
O patriarca Noé, então com seiscentos anos de idade, é interpelado pelo Criador para prestar contas acerca da localização do seu servo Vicente. Não resta outro caminho ao patriarca senão ir procurá-lo. A Arca navega então pelos mares, «carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo?».
À vista, as águas cobriam já toda a terra, à excepção de um pequeno penhasco. Mas, à medida que as águas cresciam, esse pequeno outeiro ia diminuindo. Restava dele apenas o topo, «sobre o qual, negro, sereno, impávido, permanecia Vicente. Escolhera a liberdade e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, para encarar de frente a degradação».
No espírito de cada um, este dilema apenas: «ou se salva o pedestal que sustinha o Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao Criador-, ou, submerso o ponto de apoio, Vicente morria, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema».
Suspense. «Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A morte temia a morte. Finalmente, o Senhor cedeu. Nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre!. Para salvar a sua própria obra, o Criador fechou, por fim, as comportas do céu».
É deste duelo entre Deus e um corvo, que queria alcançar a sua própria liberdade, se percebe a mensagem de os Bichos.

Miguel Torga, o subversivo


Passaram, ontem, 16 anos sobre a morte de Miguel Torga. Destaco de Orfeu Rebelde:

«Nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
de insatisfação
».

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Os Instrumentos de Tortura do Séc. XXI

Hoje, de manhã, fui ao Fitcenter fazer a minha sessão habitual de ginástica. Mas, hoje, cheguei a casa “de gatas”, feito num 88888888...
Há uns bons anos, acompanhado dos meus filhos, fui ao Palácio das Galveias, ao Campo Pequeno, em Lisboa, ver uma exposição sobre os Instrumentos de Tortura na Idade Média. Impressionante, arrepiante, pavoroso, assustador, terrível, sinistro, aterrador, horroroso, medonho, sanguinolento, cruciante, atroz, bárbaro, doloroso, severo, pungente, lancinante, feroz, horripilante, cruel, temeroso, desumano (faltam-me, ainda, outros adjectivos para descrever tal horror em toda a sua dimensão).
Bem, meus amigos, o ginásio, que frequento, está apetrechado com uns aparelhos que não são muito diferentes daqueles que eu vi na tal exposição: o garrote, a serra, a roda, o empalamento, as cunhas, os estiradores, os tirantes, o esmagador, as pinças, a forquilha, o emparedamento, o quebrador de joelhos, etc...
É tudo para o nosso bem, dizem os meus monitores, quais novos inquisidores da Idade Moderna.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O saco de figos

«...O salão era excessivamente grande para mim, os cães ladravam para o agouro das trevas, eu estava só no mundo. De longe, da minha infância perdida, veio a ternura da memória, a face cansada de minha mãe, a luz suave de tudo para nunca mais. E uma saudade densa caiu-me, como um peso, na alma. E chorei longamente, um choro recolhido, só choro para mim. Chorei quanto pude, até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do outro, calados e de mãos dados. Então lembrei-me, por entre o pranto, de um pequeno saco de figos que minha mãe me dera à despedida. Procurei-o na saca da roupa, puxei-o para a cama. E o sabor deles, que me encheu a alma, trouxe-me a presença de um carinho morto, como se minha mãe ali me estivesse velando e houvesse ainda aldeia à minha volta...»


Vergílio Ferreira, in Manhã Submersa (pág. 30)

Ausência


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breynner

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (1)

Acabo de ler a CONFISSÃO DE LÚCIO de Mário de Sá-Carneiro. Quase de supetão. Parece que M. Sá-Carneiro mistura muito do que era a sua história com muito do que seria o seu futuro. Sem o saber? Será assim?. Este livro foi considerado por José Régio uma obra-prima, onde estão presentes três das suas obsessões: o suicídio, o amor e o anormal avançando até à loucura.
Obra complexa, a merecer, por isso, uma melhor análise. A Fundação das Casas de Fronteira e Alorna vai realizar, pelo Grupo de Leitura dedicado à Narrativa Portuguesa dos Princípios do Séc. XX, a leitura desta obra, o que acontecerá no dia 19 do corrente, pelas 21h30, no Palácio Fronteira.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O mundo de Sophia de Mello Breyner

Segundo notícias vindas a público, o espólio de Sophia de Mello Breyner será doado a 26 de Janeiro de 2011 pela família da escritora à Biblioteca Nacional. No mesmo dia, se inaugurará uma exposição sobre a sua vida e obra.
Nesse espólio, existem cadernos que contêm poemas escritos a lápis ou tinta permanente, datados da adolescência de Sophia, do período entre 1932 e 1941.
Revelam os esboços dos primeiros poemas de Sophia. Numa folha solta, dobrada de um desses cadernos, está mesmo o primeiro poema escrito, intitulado “Primeira noite de verão”.
«Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter-nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite.
No gume da perfeição, no imenso halo de luz azul e transparente, no rouco da treva, na quasi palavra de murmúrio da brisa entre as folhas, no íman da lua, no insondável perfume das rosas, havia algo de pungente, algo de alarme.Como sempre a noite de vento leste misturava extasi e pânico».
(Primeira noite de Verão, 9/5/1934).

Leio até me arderem os olhos

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O Livro de Cesário Verde.

Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O Dia Original

                                                
                                           Há muitas coisas espantosas,
                                           mas nada há mais espantoso do que o homem.
                                           (Sófocles, in Antígona)