segunda-feira, 30 de junho de 2014

Cinco galinhas e meia...

Ontem, aproveitando a brisa da tarde, passeei-me por Cascais. Depois de saborear um gelado da Casa de Gelados Santini, “procurei” D. António de Castro, fidalgo, caloteiro do piorio. A história é conhecida. 

D. António, senhor de Cascais, pediu ao poeta Luís de Camões uns versos, prometendo, em pagamento, enviar-lhe seis galinhas recheadas. Mas só lhe remeteu meia galinha. 

O poeta não se conteve e endereçou-lhe esta quadra:

Cinco galinhas e meia
Deve o senhor de Cascais;
E a meia vinha cheia
De apetite para as mais.

sábado, 28 de junho de 2014

Lisboa, nos passos de Cesário Verde

A reunião dos peregrinos foi junto à Sé de Lisboa, pelas 10 horas. Dia 26 de Junho do ano de 2014. Hoje, o roteiro vai à procura do poeta Cesário Verde na cidade de Lisboa. A Susana, da Divisão Cultural da CML, é quem nos vai guiar nesta peregrinação.

Antes de começar a percurso, Susana faz a apresentação do poeta e, desde logo, confronta-nos com uma pergunta. Terá sido, no seu tempo, Cesário Verde um poeta esquecido? Escolhe o poema "Esplêndida". 

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores
É como o refulgir dum arrebol 
          Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a Rua do Alecrim, 
           Velozes como a peste.
(...)

Este poema não foi bem aceite nos meios literários. Ramalho Ortigão cravou-lhe uma farpa. Escreveu ele, «… o snr. Cesário Verde, ao qual sinceramente desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a ilustrar o seu nome, tornando-se cada vez menos Verde e mais Cesário.” Injusto este Ramalho!

Deixamos a Sé para trás e descemos até ao vestíbulo da Igreja da Madalena. Não se sabe ao certo onde nasceu o poeta. Na Rua dos Fanqueiros? ou na Rua da Padaria? Certo mesmo, sabemos que foi baptizado nesta Igreja da Madalena, com quatro meses de idade. A Susana traz consigo uma cópia do registo da baptismo. José Joaquim Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro.  José, o nome do pai, Joaquim, o nome do padrinho, Cesário, por ter nascido no dia de São Cesário e Verde, o nome de família.

Continuamos a descer em direção ao rio, damos agora uma espreitadela à Rua da Padaria, Ali no nº 16 é um dos locais prováveis para o nascimento do nosso poeta.

Depois, um salto à Rua dos Fanqueiros, ali perto, no nº 9 (atual), outro local frequentemente citado para o nascimento do poeta. Fica a dúvida. Do outro lado da rua, ficava a loja comercial pertencente ao pai, que ocupava os nºs 2 a 10, do edifício que faz esquina com a Rua do Alfândega. 

Lisboa era. ao tempo, uma cidade imunda, fragilizada aos primeiros sinais de cólera que entrava pela barra do Tejo. A família Verde mudou de casa, sucessivamente, para a Rua do Salitre, depois para a Rua das Trinas (Madragoa). 

No Verão de 1857, a família abandonou mesmo a capital, por largos períodos, refugiando-se em Linda-a-Pastora, onde tinha uma casa com quinta. Cesário virá evocar essa fuga no poema “Nós”.  

Foi quando em dois Verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
(…)

Apesar de todos os cuidados, morreu a irmã Maria Julia, a primogénita, aos 19 anos e, também, a irmã Adelaide Eugénia, quando só tinha ainda 3 anos. Cesário irá recordá-la no já citado poema "Nós":

(...)
E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

(...)

É tempo de continuar a nossa peregrinação. Seguimos agora pela rua da Conceição, até à Rua Augusta. Passamos pela casa onde nasceu o poeta Mário de Sá Carneiro. Lá está uma placa a assinalar o acontecimento, no nº 93/95, 1º andar.

Cesário Verde deve muito aos poetas do Orfheu. Mário de Sá Carneiro, ao passar por Barcelona, com o contributo do catalão Ribera i Rovira, deu a conhecer o poeta Cesário Verde para lá da fronteira.

Mas foi sobretudo graças a Fernando Pessoa que Cesário Verde emergiu do limbo onde se encontrava e viu, finalmente, reconhecido o seu valor. No Livro do Desassossego, Pessoa, pela pena do Bernardo Soares, irá escrever:“Vivo numa época anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.

Foi então tempo da Susana ler um pequeno excerto do poema "Contrariedades",

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
         Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes 
       E os ângulos agudos.
(...)

Digam lá se não estamos perante um poema percursor de Álvaro de Campos? Este, mais tarde, irá evocar Cesário escrevendo «Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, / Ó do «Sentimento de um Ocidental»!". Cesário Verde, o mestre!»

Deslizando agora pela Rua da Augusta em direcção à praça do Rossio, cruzámos a Rua da Assunção. Aqui, morou António de Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz), grande amigo de Cesário. O Conde de Monsarz (o autor do poema "O Senhor Morgado" que Adriano Correia de Oliveira virá muito mais tarde a imortalizar) promoveu, nesta casa, saraus literários onde Cesário se cruzou com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Nenhum prestará atenção aos seus poemas. Onde já se viu um comerciante a poetar?

Na esquina da Rua da Assunção com a Rua Augusta existia (e ainda existe) a casa "Nunes Correia", fundada em 1856.


Cesário Verde, poeta e comerciante rico, que gostava de andar elegante, e na moda, provavelmente, comprava aqui os seus fatinhos. Cesário tinha boa figura. Por influência do seu grande amigo Silva Pinto, um liberal, Cesário é arrastado para a boémia revolucionária no “Martinhodas mesas espelhentas

Fialho de Almeida irá descrevê-lo assim: “O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada, de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinha a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões”.

Foi tempo de Suasana ler o poema “Ele”, outro poema que deu polémica. Pode ter sido no café Martinho que o poeta o compôs, em fins de 1973 (epigrafado Ao Diário Ilustrado) 

Era um deboche enorme, era um festim devasso!
No palácio real brilhava infame orgia.
E até bebiam vinho os mármores do paço!
(…)
Na praça, de manhã, havia, ó rei brutal!
Montões de sordidez horrível e avinhada...
- Nascera o Ilustrado - um vómito real!


Cesário ataca o Rei D. Luís, mas o poema, com um toque panfletário, não agradou nem a republicanos nem a monárquicos. Cesário era um liberal, um republicano, mas não militava em nenhum partido. 

A nossa peregrinação aproxima-se do fim. Dirigimo-nos para a porta do restaurante "Leão de Ouro", ao lado da estação do Rossio. Espera-nos, no interior do restaurante, um quadro (melhor uma cópia) célebre do mestre Columbano.


Em 1881, Cesário participou em reuniões do chamado "Grupo do Leão" (uma referência ao nome do restaurante) com outros literatos, como Fialho de Almeida entre outros. Também participaram nessa tertúlia pintores da época, como José Malhoa e os irmãos Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro. O "Grupo do Leão" foi imortalizado em 1885 num conhecido quadro a óleo da autoria do Columbano, que se pode ver no Museu do Chiado.



Cesário Verde, tal como Fialho de Almeida, foram esquecidos pelo pintor. Esquecimento? Talvez não...

Não faz mal, porque, dessa tertúlia, será Cesário, um não pintor, que antecipará a chegada do impressionismo a Portugal. O seu poema "De Tarde" é como uma tela de Renoir:

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto
 da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Desta vez, Susana leu o poema na integra e deu por fim o percurso. Obrigado, Susana, Adeus, até ao próximo!

Mas, Susana, era só atravessar a rua para acabarmos a nossa peregrinação diante do edifício onde foi dantes o "Martinho". Que pena. Não resisto às mesas espelhentas do Martinho. Falo do poema "Arrojos".

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
(...)
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

No final, só me apetece bradar como fez Álvaro de Campos: «Ó Cesário Verde, ó Mestre!»

terça-feira, 24 de junho de 2014

Uma vida lembrada não tem limites?


A escritora Teolinda Gersão encontrou uma forma engenhosa para, no seu último romance “Passagens”, contar a história de uma família. Confesso que ao ouvir falar, pela primeira vez, do livro, sublinhando-se que o tempo da narrativa corresponde ao tempo da duração de um velório, vieram-me à memória dois livros: “As Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis e “Até ao Fim”, de Vergílio Ferreira. 

O primeiro, que eu, irresponsavelmente, ainda não li, é a narrativa de um “defunto autor” que deseja escrever a sua autobiografia.

O segundo, que eu, obsessivamente, já li mais que uma vez, é a história de um pai, Cláudio, que na noite que está a velar o filho Miguel se lhe dirige em monólogo, através do qual conta a história da sua vida. Este, magnífico!

Passagens” é um romance sobre a história de Ana, sendo que a sua história é contada por ela própria (às vezes, desdobrada em si), recordada por vários elementos da família, sobretudo a filha Marta, e, ainda, por outras pessoas fora da família (veja-se, p.e., o longo monólogo da criada Conceição do lar onde Ana morreu). 

Aspecto que achei interessante é a estrutura da narrativa que se parece muito, à primeira vista, de uma peça de teatro. Mas isso não acontece por acaso. Este romance pertence àquele tipo de livros que nos coloca perante um palco, onde decorre justamente um drama humano. Temos um teatro dentro do grande Teatro da Vida. Uma harmonia perfeita entre o teatro da vida e a vida em teatro. 

Estamos perante um livro que, de certo modo, implica uma leitura dolorosa. O tema da morte não é fácil. “Passagens” é um romance deprimente? Penso que não. A autora tem esse mérito. É mais uma celebração da vida do que da morte.

O que fica da leitura deste livro? Um acento tónico na recordação, A nossa vida pode ser mais que um tempo finito (limitado ao tempo vivido), desde seja recordado. Aí, nessa dimensão, a nossa vida não tem limites. Será mesmo assim? Ou, como escreveu o poeta David Mourão-Ferreira, “há-de vir um Natal e será o primeiro em que o nada retome o Infinito”.

sábado, 21 de junho de 2014

Palavras-cruzadas com História

TEOLINDA GERSÃO” é o nome da escritora portuguesa que foi pedido no passatempo do dia 30 de Maio. E esta é a solução completa do problema:


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Recebi respostas, no e-mail e no Facebook, de: Aleme, Anjerod, António Amaro, Arnaldo Sarmento, Baby, Carlos Costeira, Bábita Marçal, Magno, Filomena Alves, Jani, João Alberto Bentes, José Bernardo, Mafirevi, Manuel Amaro, Mister Miguel, Olidino, Osair Kiesling, Pedro Varandas, Russo e Salete Saraiva. 

Agradeço, penhorado, a todos que participaram. Até ao próximo!

sexta-feira, 13 de junho de 2014

O verdadeiro Santo António


Hoje, é Dia de Santo António, data da sua morte em Pádua, no ano de 1231. Santo António de Lisboa ou Santo António de Pádua? Entre nós, apetece dizer que há dois Santos: Um, verdadeiro, que faz parte da História, Doutor da Igreja que viveu na viragem dos séculos XII e XIII; outro, mito popular, casamenteiro. 

Falemos de História. O Santo António nasceu em Lisboa, não sendo conhecida a data exacta do seu nascimento, sendo apontado, como mais provável, o ano de 1195. O local do nascimento também não é conhecido. Todavia, em Lisboa, há um lugar que se tornou local de romaria, por se acreditar que tenha sido aquele o quartinho do seu nascimento. Ali, muito perto da Sé. Naquele lugar “segundo a tradição”, como lá está escrito em latim, mas não mais do que isso. O Papa João Paulo II, numa das suas vindas a Portugal, esteve lá. 

Os pais seriam remediados, pois, só assim, se justifica ter o Santo estudado. Primeiro, na Sé de Lisboa, onde terá aprendido as primeira letras e teve as primeiras aulas de Latim. Depois foi para o Convento de São Vicente de Fora, dos Regrantes de Santo Agostinho. Esteve aqui entre 1211 e 1212. Quando aconteceu a reconstrução do Convento, foi construída uma capela no local onde se julga ter sido a cela do Santo. 

Com 15 anos, foi para Coimbra, para entrar Ordem de Santa Cruz de Coimbra. Ao tempo, ainda não havia Universidade, e este Convento é era o principal centro de estudos em Portugal. 

Em 1220, não se sabendo bem porquê, o Santo deixou a Ordem dos Regrantes de Santa Cruz, e foi para o Conventinho, no arrabalde de Coimbra, a meia légua do centro da cidade. Tornou-se franciscano, renunciou à riqueza e à soberba dos frades de Santa Cruz. Tornou-se irmão franciscano. No lugar do Conventinho (antes um humilde eremitério) está hoje a Igreja de Santo António dos Olivais. 

Foi neste tempo que passou a chamar-se António, em honra de Santo Antão (Antonius em latim), um asceta. O nome de baptismo, Fernando Martins, ficou para trás. Um despojamento total dos bens materiais, incluindo o nome. Esteve aqui pouco tempo, apenas 6 meses. 

Daqui partiu para uma viagem formidável, da qual nunca mais voltou. Não é certo que tenha passado por Marrocos, como alguns defendem. Certo, é que chegou a Itália, tendo estado presente no Concílio de São Francisco de Assis, não lhe sendo conhecida nenhuma intervenção. Depois, foi designado para um eremitério em Montepaolo, na província da Romagna, onde passou cerca de quinze meses. Depois, foi viver para Forli, perto de Bolonha. 

Um dia, faltou o pregador e foi-lhe pedido para que fosse ele a falar. Protestou, mas obedeceu. No final, todos estavam assombrados. Uma linguagem cheia de imagens, um conjunto encadeado de ideias, tudo assente numa sólida formação. Para a História, ficaram os sermões, que são ainda um precioso documento de estudo da época. Num sermão, que ficou célebre, disse para os que o ouviam (não tenho as palavras exactas, mas dá para perceber a ideia): 

“Vós que ostentais túnicas vermelhas que nos dizem pintadas com cores do Oriente, é mentira!, são vermelhas, sim,  pintadas com o sangue dos pobres!”.

Que falta fazem hoje pregadores assim!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Morte sem Mestre, segundo Herberto Helder



Chegou hoje às livrarias o novo livro de Herberto Hélder, A Morte sem Mestre, lançado pela Porto Editora, que inclui um CD com poemas ditos pelo poeta.

O livro apresenta uma originalidade, tem uma capa em papel craft (uma espécie de almaço) com o nome do autor e título do livro escritos à mão pelo próprio poeta. Trata-se de uma solução gráfica que reproduz o modo como Herberto Hélder encapa os livros na sua biblioteca.

Segundo avisou a Editora, A Morte sem Mestre, terá apenas uma edição, como aliás aconteceu com as anteriores. Sempre por vontade expressa do autor. 

Assim sendo, é de esperar, a exemplo do que aconteceu com A Faca Não Corta o Fogo e Servidões, a tiragem se esgote rapidamente.

Por isso, tirei-me das minhas tamanquinhas e fui, propositadamente, à Bertrand e truxe para casa um exemplar do livro (o empregado que me atendeu ainda perguntou se queria mais que um), que me custou €22,00 (preço de capa).

Se um dia me zangar com o poeta, não vou, de certeza, perder dinheiro. Com o Servidões também despendi a mesma quantia de €22,00, mas, consultando a internet (OLX), o preço pedido anda já à volta de €100,00. Com o poeta Herberto Hélder ganhamos com a sua poesia e investimos, com proveito, as nossas economias.

Deixo aqui o último poema do livro e que é também um dos poemas ditos pelo poeta no CD que acompanha o livro.


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
— e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

Herberto Hélder, in “A Morte sem Mestre”
Porto Editora, 2014