sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pessoa brincou com a posteridade?

A Revista LER Livros & Leitores, de Setembro 2012, traz uma entrevista com o colombiano Jerónimo Pizarro, radicado em Portugal há cerca de 10 anos. Já é hoje considerado um dos mais notáveis investigadores pessoanos. Na dita entrevista, o investigador dá-nos uma perspectiva rigorosa sobre a real dimensão do espólio do poeta dos heterónimos, depois de décadas de trocas de opiniões e argumentos entre os pessoanos. E faz isso sempre a partir dos originais de Fernando Pessoa. O poeta só deixou organizado um livro: Mensagem. E uma arca com 30.000 papéis. A maior parte é prosa.

«Pessoa morreu em 1935, nós estamos em 2012. Não há qualquer coisa de incompreensível nisso», pergunta o entrevistador.

«Pois. Essa é a perplexidade que tive quando vivi a minha epifania. A minha relação com Pessoa começou em 2003 quando encontro um espólio trilingue amplamente inédito. Para mim, há quase uma década que é praticamente incompreensível termos tanto material por tratar e termos consciência, mesmo que seja uma consciência de poucas pessoas, de ainda termos trabalho para 40 ou 50 anos, ou muito mais». Responde o entrevistado.

Leram bem?. Trabalho para 40 ou 50 anos, ou muito mais!!!  

Para mim, o drama é que vou morrer sem, à data, se conhecer toda a obra do autor da Mensagem.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Caim segundo José Saramago

Por razões de agenda do meu Grupo de Leitura, revisitei o livro “Caim”, do José Saramago, que eu havia lido em Outubro de 2010, aquando da sua publicação.

Para já, deixo aqui um resumo dos 13 capítulos e voltarei a falar dele, após a discussão a realizar brevemente no seio do Grupo de Leitura.

Capitulo 1. Jardim do Éden. Adão e Eva. O pecado original. Expulsão de Adão e Eva do jardim do éden (Gn.3) Fora do jardim, a terra era árida e inóspita. Filhos: Caim, primeiro, Abel, depois. Set, o terceiro filho, só virá ao mundo 130 anos depois. Caim foi lavrador, Abel pastor (Gn 4).

Capítulo 2. Adão e Eva estão agora fora do paraíso. A primeira casa é uma caverna. Eva tenta entrar no Éden, para buscar comida. O anjo Azael simpatiza com Eva e dá-lhe comida. Adão e Eva encontram uma caravana, na qual se integram.

Capítulo 3. Adão e Eva, integrados na caravana, iniciam-se no cultivo da terra. A distribuição da mão-de-obra doméstica era harmoniosa, até ao dia das oferendas a Deus. Abel ofereceu um cordeiro, Caim produtos da terra. Deus aceitou a oferenda de Caim, mas rejeitou a de Abel. Despeitado, Caim mata Abel com golpes de uma queixada de jumento. Que fizeste com teu irmão Abel? Perguntou o Senhor. Pagarás pelo que fizeste, Andarás errante e perdido. Porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal. Este é o sinal da tua condenação (Gn.4).

Capítulo 4. Caim inicia a sua viagem errática pelo mundo. Encontra um velho que leva duas ovelhas atadas por um baraço. Chega à região de Nod. Arranja emprego como pisador de barro. A senhora desta terra é Lilith, que é casada com Noah. Caim é conduzido ao palácio. Lilith seduz Caim.

Capítulo 5. Caim passa os dias na cama de Litlth, insaciável. Noah projecta matá-los, por vingança. Num passeio, Caim é atacado. No instante do ataque, a arma transforma-se em cobra. Lilith quer que Caim mate Noah, mas recusa. Lilith fica grávida. São mortos os potenciais (frustrados) assassinos de Caim. Lilith e Caim dormem juntos pela última vez.

Capítulo 6. Caim deixa o palácio de LIlith. Encontrará Caim, de novo, o velho com as duas ovelhas? Quem é esta personagem? Interroga-se Caim, em cima do seu jumento. Caim encontra agora uma paisagem cheia de árvores e água, bem diferente da árida Terra de Nod. Sacrifício de Isaac (Gn 22). Caim que segura o braço de Abraão quando este se preparava para imolar o filho. Um Senhor tão cruel como Baal, que devora os filhos? Prosseguindo a sua viagem errática, Caim avista ao longe uma torre altíssima com a forma de um cone. Torre de Babel (Gn 11). O objecto daquela gente era construir uma torre que chegasse ao céu. Para que? Ficarem famosos, respondeu um deles. Porém, a construção estava parada. Porquê? O Senhor não gostou. Trocou todas as línguas e eles deixaram de se entender. E assim a obra não vai avante. A torre veio desmoronar-se como um castelo de cartas, após um sopro do Senhor. O Senhor é egoísta ao ponto de fazer desaparecer a torre? “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com Deus, nem ele nos entende, nem nós o entendemos a ele”.

Capítulo 7. Caim reencontra Abraão. Ele tem o condão de viajar no tempo (ir ao futuro e ao passado). Neste tempo, Abraão só tem ainda um filho, de nome Ismael, gerado pela escrava Agar. Um dos convidados para a tenda de Abraão comunica a este que para que vem a sua mulher Sara, não obstante a sua idade avançada, terá um filho. E teve, e chamar-se o já nosso conhecido Isaac (Gn. 18). Prosseguindo a sua viagem errática. Caim assiste ao diálogo entre Deus e Abraão. Este pede ao Senhor para poupar as cidades de Sodoma e Gomorra (Gn. 19) à destruição, que tinham caído em pecado. O leilão terminou nos 10 justos. Abraão voltou para a sua tenda, mas volta à cidade para se encontrar com o seu sobrinho Lot. Na manhã do dia seguinte, aconselham Lot a levar dali para fora a sua mulher e as duas filhas, para não serem apanhadas pelo castigo da cidade. Porém, Lot pediu para ficar numa aldeia perto, chamada Zoar, em vez de irem para a montanha. Foram autorizados a fazê-lo, mas com a condição de não olharem para trás. Então, caiu enxofre e fogo sobre Sodoma e sobre Gomorra, só restando cinzas e corpos carbonizados. Na retirada da família de Lot, a mulher deste olhou para trás, desobedecendo à ordem recebida, ficou transformada numa estátua de sal. E as crianças Senhor?

Capítulo 8. Caim caminha agora no deserto do Sinai. Encontra um acampamento no sopé de uma montanha. Moisés, que comandava o êxodo, ausentou-se durante 40 dias e 40 noites para falar com o Senhor. O irmão, Aarão, que no Egipto havia sido nomeado sumo sacerdote, aproveitando a ausência do irmão, acedeu ao pedido dos companheiros de caminhada, para lhes apresentar um Deus na figura de um bezerro de ouro (Ex 32 ). Josué, chefe militar dos israelitas, e ajudante de Moisés, esperou este à entrada do acampamento, alertando-o para o alarido existente acampamento. Regressado ao acampamento, Moisés destruiu o bezerro, reduzindo-o a pó. De seguida, Moisés “convidou” aqueles que eram pelo Senhor a vingarem os que haviam prevaricado. Morreram 3.000 homens, uma grande sangria. Profunda maldade do Senhor ?!. Em mais uma mudança de presente, Caim presencia agora a história de Lot e as Filhas (Gn 20). Lot, após se ter refugiado em Zoar, entendeu estar melhor defendido nas grutas da montanha. As filhas, na falta de homens para assegurar a continuidade da raça humana, acharam por bem ficar grávidas do próprio pai. E assim fizeram e tiveram descendência. Crescei e multiplicai-vos. E o Senhor o que diz? E Caim pode confirmar a multiplicação que logo aconteceu. Eram precisos mais humanos, mais combatentes para a guerra. É o que Caim, depois, assiste à guerra entre Israelitas e os medianitas (Nm 31). À primeira, caso raro, os Israelitas perderam, mas o Senhor logo tratou de mudar o rumo dos acontecimentos. Instruiu Josué com que devia fazer. O resultado final foi uma vitória dos Israelitas e os despojos foram enormes. E foi feita a divisão, cabendo uma boa parte ao Senhor. O que comprova que a guerra é um negócio.

Capítulo 9. Caim chega à cidade de Jericó, ao tempo que se prepara o assalto pelo exército de Josué. Ao sétimo dia, concretiza-se a tomada da cidade de Jericó (Js 6), com êxito. Há muitos mortos, de humanos e animais. Josué marchou sobre a cidade de Ai, mas é derrotado (Js 7). Perde 36 soldados. Fica muito zangado com o Senhor e interpela-o, que farás tu para defender o nosso prestígio. O Senhor, pedagogicamente, explicou que a derrota foi castigo por os Israelitas se terem apoderado de coisas que se destinavam a ser destruídas. Josué vai então investigar o que se passou e chega a Acan, o responsável pelo desvio de tais coisas. Confirmado o crime, Josué castiga Acan (Js 7). Sepultado sobre um monte de pedras, fica conhecido por Vale de Acor. Assim, se acalmou a ira do Senhor. De seguida, Josué junta 30.000 homens e delineia a Emboscada contra Ai (Js 8). Josué sai vencedor. O rei de Ai é enforcado numa árvore. Não houve um só sobrevivente. Foi esta a última vitória de Caim. Deixa o exército de Josué. O exército deste prossegue a tomada de várias cidades. Caim não assistiu, porém, ao maior prestígio de todos os tempos, a paragem do sol (Js 10, 12-15). Para que pudesse vencer, ainda com a luz do dia, a batalha contra os cinco reis amorreus, Josué pediu ao Senhor que detivesse o sol e ele assim fez. Os amorreus foram vencidos, porque, durante quase um dia inteiro, o sol esteve imóvel, ali no meio do céu.

Capitulo 10. Caim continua a sua viagem errática pelo mundo. Foi agricultor e pisador de barro, agora é rastraedor. Volta a encontra o velho com as mesmas ovelhas atadas por um baraço. Retorna à cidade onde vive Lilith, que tinha ficado grávida. Caim tem assim oportunidade de ver o filho entretanto nascido. Deve ter 9 ou 10 anos. Chama-se Enoch. Caim volta para a cama de Lilith. Conta o que viu (embora se trate de acontecimentos futuros). Caim interroga-se se alguma vez irá ser dono da sua pessoa. Passadas duas semanas, deixa a cidade e parte. Sem jumento, desta vez.

Capítulo 11. Caim chega a terra de Us, terra de Job (Jb 1, 1-9). Este era um homem imensamente rico. Para além disso, era um homem justo, como não há outro no mundo. O Senhor, desfiado por Satã, vai pô-lo à prova. São-lhe retirados todos os bens. Vai ser posto à prova. Caim vê nisso um jogo de apostas entre o Senhor e Satã, o que é inadmissível. Não obstante, os anjos, que o aguardavam à entrada da cidade, ajudaram-no a arranjar emprego na casa de Job. Num instante, Job é despojado de todos os seus bens. Ele e a sua família ficaram sem nada. E para aumento de prova, ficou cheio de chagas, da cabeça aos pés. Job tudo aceita resignado. Caim, que havia conseguido um emprego a cuidar de burros, pensou que melhor seria encontrar trabalho noutro local. Para o efeito, compra um burro ao seu dono. Antes de partir, foi ainda ver o seu dono, Job, que continua sentado no chão, à porta de casa, raspando as feridas das pernas com um caco de barro. Caim parte, deixando, sem despedir, Job em grande miséria e leproso.

Capítulo 12. Caim caminha agora por uma terra verdejante. Até parecia o jardim do Éden de saudosa memória. Avista, entretanto, uma construção de madeira, que se assemelhava muito a um barco. Caim estava, tão só, perante a Arca de Noé (Gn 6). Noé está acompanhado de 4 fortes homens e pela sua família. O Senhor manifesta-se e entra em diálogo com Caim. Dá notícia da cura de Job, assim como da restituição dos bens (Js 42-IX). Senhor dá ordem a Noé para levar Caim na arca. Mais um homem para fazer filhos. Para quê a arca? A terra está corrompida e cheia de violência. Noé é escolhido para iniciar uma nova humanidade. Dilúvio purificante. Caim ajudava. Já havia dormido com duas das noras de Noé e preparava-se para dormir com a terceira. A arca levantará ferro no dia seguinte.

Capítulo 13. A arca é levada para o mar, provocando um tsunami. Agora voga à toa. Passados sete dias, irão abrir as comportas do céu. Irá chover durante 40 dias e quarenta noites. Só ao fim de 150 dias as águas começaram a baixar. A mulher de Cam morreu num acidente. Caim vai para a cama com a mulher de Noé. Há que procriar sem quaisquer limites. A ordem vem de Noé. Caim elimina um a um os seus companheiros de viagem. A vítima seguinte é a própria mulher de Noé. A forma é sempre a mesma: são atirados ao mar. O nível do mar continua a baixar. Sem e a mulher caíram ao mar no mesmo dia, assim como a viúva de jafet. Sem mulher, Noé desanima e deixa-se cair ao mar. No dia seguinte, a arca toca terra. O Senhor chama por Noé, mas ninguém responde. Silêncio. De dentro da Arca, apenas sai Caim e os animais. O Senhor pergunta-lhe pelos outros. Menos Noé, que se afogou, por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, disse Caim. Não haverá nova humanidade. Recriminações recíprocas. Agora podes matar-me, disse Caim. Não posso, diz o Senhor. Morrerás de morte natural. As aves virão devorar-te a carne. Sim, depois de me terem devorado o espírito. Não se ouviu mais nada. Mas, provavelmente, terão argumentado mais vezes, a única coisa certa que se sabe é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda.


Entre parênteses, estão indicados, por abreviaturas, os livros do Antigo Testamento onde se relatam os episódios bíblicos referidos na narrativa.

sábado, 22 de setembro de 2012

O esplendor do Outono

 O equinócio do Outono de 2012 ocorre este Sábado, 22 de Setembro, às 15h30m. A estação prolonga-se durante 90 dias, até 21 de Dezembro, às 11h12m.

O equinócio é o instante em que o Sol, no seu movimento anual aparente, corta o equador celeste. A palavra de origem latina significa “noite igual ao dia”, pois, nestas datas, dia e noite têm igual duração.

Bem-vindo Outono, para viver e ser vivido.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um acusador arrependido

Passam hoje 162 anos sobre o nascimento de Guerra Junqueiro. O poeta nasceu em Freixo de Espada à Cinta no dia 17 de Setembro de 1850. Foi alto funcionário administrativo, politico, deputado, jornalista, escritor e poeta. A sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República. Assustou padres, bispos, reis e barões.

Junqueiro tinha o gosto de "matar".  Começou com o homicídio de D. João, em A Morte de D. João (1874), passou depois ao deicídio de Jeová, em A Velhice do Padre Eterno (1885), finalizou no parricídio de Portugal e no regícídio de D. Carlos, em Pátria (1896).

Em 1890, publicou publicou A Marcha do Ódio e Finis Patriae. Com um poema de trinta versos - O Caçador Simão - Junqueiro  incendiou o coração dos republicanos.

Foi já do alto das fragas ásperas do Douro que, severo como um profeta antigo, vociferou este trovão: "Eu odeio o Sr. D. Carlos, não com ódio sangrento, com ódio de orgulho e de vingança. O meu ódio é bom; conforta-me e consola-me. Odeio o rei, porque amo a Verdade e a minha Pátria".

Conta, também, o filosofo espanhol Miguel Unamumo, em Portugal País de Suicidas, que encontrando-se Guerra Junqueiro em Salamanca e falando-lhe do Rei D. Carlos, bradou: «Não sei como isto vai acabar, mas acreditando, como acredito, que em Portugal há uma família a mais e que o Rei é um monstro de perversão, se eu daqui pudesse matá-lo com o pensamento, fá-lo-ia.». Poucos dias depois, estando ainda Guerra Junqueiro naquela cidade - diz ainda Miguel Unamuno - chegou a notícia do assassínio do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe,  Bem, uma coisa é certa: o poeta Guerra Junqueiro, no dia do regicídio, não estava no Terreiro do Paço, nem por perto. Estava em Salamanca. Um excelente álibi!

Todavia, o regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 foi o estrondo que apanhou desprevenido Junqueiro ingénuo e exaltado, quebrando-lhe o vigor das pernas e deixando-lhe na boca uma acérrima recordação de versos. Remordido pela paixão, dá ideia que Junqueiro, depois da fatalidade que fez tombar rei e príncipe numa esquina do Terreiro do Paço, se desiludiu dos versos, virando-lhes, amedrontado, as costas.

Pôs-se assim febril e inutilmente, a rever os versos, censurando e rasgando tudo o que lhe parecesse ofensivo à memória dos mortos. Atormentado por uma falta de consciência, a de ter metido lenha e pólvora no regicídio, não se importou de estéticas para limpar poemas. Junqueiro, que muitos acusaram de sarcástico gratuito, não se incomodou de rasgar, e para sempre, os seus melhores versos, se com isso pudesse fazer as pazes com a sua consciência.

Amansou, desse modo, uma versão da Pátria, que veio ser publicada depois da sua morte (1925) e que quase nenhum valor poético apresenta, dizem os críticos. Mas quando lhe falaram de atentado estético contra um poema intocável, a que ele roubou centenas de versos, Junqueiro, enfiado no seu barretinho de lã, roído de remorsos, limitou-se a exclamar indignado:
- Não posso aparecer no outro mundo como acusador!!!
 

sábado, 15 de setembro de 2012

Bocage

Há 247 anos nasceu em Setúbal o poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage. Nasceu em 15 de Setembro de 1765, na Rua Edmond Bartissol 12 (antiga Rua de São Domingos), onde hoje está um museu, desde 1965. Bocage foi sempre um revoltado. Contra tudo e todos. Como explicar? Infância terrível. Filho de bacharel, que foi preso por dívidas ao Estado quando ele tinha 3 anos. Reinava o Marquês de Pombal. E a mãe morreu quando ele tinha 10 anos. Aos 16 anos, assentou praça. Foi depois para Lisboa, frequentar a Escola da Marinha. Andou por lá 5 anos, mas não acabou o curso. Café Nicola em Lisboa. Bebia muito, sobretudo, bebidas alcoólicas. Face ao seu comportamento, foi enviado, em 1786, para a Índia. Passou pelo Brasil, Rio de Janeiro, Moçambique, finalmente, Goa. Mas Bocage, que detestou Goa, não se terá portado lá muito bem. O Governador despachou-o para Damão. Pior ainda. Desertou. Embarcou depois para Macau. Em 1790,  está de novo no Continente.
Adere à Nova Arcádia, onde adoptou o pseudónimo Elmano Sadino.  Vive do que os amigos lhe dão. Dominava então Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique que decidiu pôr ordem na cidade, tendo em 7 de Agosto de 1797 dado ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Ficou preso no Limoeiro até 14 de Novembro de 1797, tendo depois dado entrada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Ficou até 17 de Fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das Necessidades. Durante este longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento e começou a trabalhar seriamente como redactor e tradutor. Só saiu em liberdade no último dia de 1798. De 1799 a 1801 trabalhou sobretudo com Frei José Mariano da Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas boas graças de Pina Manique. A partir de 1801, até à morte em 1805, viveu em casa por ele arrendada no Bairro Alto, naquela que é hoje o n.º 25 da travessa André Valente.

Começou por militar no movimento literário denominado Arcádia. Os árcades eram poetas refinados, convencionais. Mais tarde, adere à Nova Arcádia. Mas depressa se zangou com os novos confrades. Em 1791, publicou o primeiro livro de rimas. Bocage tinha uma grande obsessão por Camões, procurando imitá-lo:

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co' o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


Aponta as semelhanças (o mesmo fado, a partida de Lisboa provocada por motivos parecidos, o encontro com o Adamastor, a estada e a miséria na Índia, as saudades da amada, o ludíbrio da sorte), mas reconhece, a final, que não tem o talento de Camões ("não te imito nos dons da natureza").

Bocage afirmou-se um seguidor de Camões: imitou-o na vida, entre Lisboa e a Índia, mas não conseguiu imitá-lo na capacidade de poetar.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Uma parte de mim...




Hoje é dia de aniversário do poeta brasileiro Ferreira Gullar, nascido em 1930. Foi agraciado com o Prémio Camões em 2010. É dele o poema “TRADUZIR-SE”:





Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte-
será arte?

Ferreira Gullar

domingo, 9 de setembro de 2012

O limite da tolerância


Como irão reagir os portugueses, após o anúncio do Primeiro-Ministro, de sexta feira, de mais medidas de austeridade? Irão os portugueses conservar a sua revolta na esfera da intimidade ou será, desta, que vão trazer para a praça pública o desespero e a descrença nas medidas que vêm sendo tomadas sem resultados à vista?

Já há cerca de 50 anos, Miguel Torga olhava para o país e escrevia (in Diário IX, Chaves 17 de Setembro de 1961):

«É um fenómeno curioso: o país ergue-se indignado, moureja o dia inteiro indignado, come, bebe e diverte-se indignado, mas não passa disto. Falta-lhe o romantismo cívico da agressão.
Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados».

Apetece dizer que os portugueses continuam pacientes e resignados, pelo que, o mais certo, não vai acontecer nada.

Lá no fundo, somos, como disse Torga, uma colectividade pacífica de revoltados.