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sexta-feira, 6 de junho de 2014

José Saramago e O Ano da Morte de Ricardo Reis

Miradouro de Santa Catarina, Lisboa, vista sobre o rio Tejo, 10 horas da manhã do dia 27 de Maio de 2014. Susana, do Departamento de Acção Cultural, da CML, que nos guiará, dá as boas-vindas aos peregrinos do roteiro José Saramago e O Ano da Morte de Ricardo Reis.

O rio Tejo à nossa frente, não muito longe o cais de Alcântara, onde Ricardo Reis, no dia 30 de Dezembro de 1935, desembarcou do Highland Brigade, navio que o trouxe do Brasil, quando soube da morte de Fernando Pessoa. Há exactamente um mês.

Um táxi havia de o levar ao Hotel Bragança, na Rua do Alecrim, onde ficou hospedado durante os primeiros meses.

Mais tarde, Ricardo Reis pensou arrendar uma casa, o seu projecto era voltar a exercer Medicina. Donde, após algumas buscas, encontrou a casa que queria, justamente muito perto do sítio onde ainda nos encontramos, o Miradouro de Santa Catarina. 

Foi tempo da Susana, após esta descrição, ler o seguinte extracto do romance:
[…] Ricardo Reis aproximou-se duma janela, da vidraça sem cortina viu as palmeiras do largo, o Adamastor, os velhos sentados no banco, e o rio sujo de barro lá adiante, os barcos de guerra com a proa virada para terra, por eles não se sabe se a maré está a encher ou a vazar, demorando aqui um pouco logo veremos, Quanto é a renda, quanto é a indemnização pela mobília, em meia hora, se tanto, com algum discreto regateio, se puseram de acordo, o procurador já tinha visto que estava a tratar com pessoa digna e de posição, Amanhã vossa excelência passa pelo meu escritório para tratarmos do arrendamento, e olhe, senhor doutor, deixo-lhe a chave, a casa é sua. Ricardo Reis agradeceu, fez questão de pagar um sinal acima do valor convencionado nestas transacções, o procurador passou ali mesmo um recibo provisório, sentou-se à secretária, puxou da caneta de tinta permanente chapeada de enfeites de ouro, folhas e ramagens estilizadas, no silêncio da casa ouvia-se apenas o raspar do aparo no papel, a respiração um pouco sibilante, asmática, do homem, Pronto, aqui tem, não precisa vossa excelência de se incomodar, eu tomo um táxi, calculo que ainda queira ficar um bocadinho a saborear a sua nova casa, eu compreendo, as pessoas querem muito às casas, a senhora que aqui morava, coitada, o que ela chorou no dia em que saiu, ninguém a podia consolar, mas a vida às vezes obriga, a doença, a viuvez, o que tem de ser tem de ser e tem muita força, então lá o espero amanhã. Sozinho agora, com a chave na mão, Ricardo Reis percorreu de novo toda a casa, não pensava, olhava apenas, depois foi à janela, a proa dos barcos estava virada para cima, para montante, sinal de que a maré descia. Os velhos continuavam sentados no mesmo banco […]. 


Foi altura de o grupo abandonar este local e começar verdadeiramente a nossa peregrinação. Olhei ainda para trás, lá estava o Adamastor, não haja dúvidas que Luís de Camões exagerou muito no rosto carregado. Só não vi os velhos sentados no banco.

A estação seguinte foi a Praça Luís de Camões, onde Ricardo Reis conseguiu arranjar um consultório, cedido, ainda que temporariamente, por um colega de profissão.

Foi tempo da Susana ler mais um extracto do romance:
[…] É primavera, veja que engraçado, aquele pombo em cima da cabeça do Camões, os outros pousados nos ombros, é a única justificação e utilidade das estátuas, servirem de poleiro aos pombos, porém as conveniências do mundo têm mais força, Marcenda apareceu à porta, Faz favor de entrar, dizia mesureira a empregada, subtil pessoa, muito competente na arte de distinguir posições sociais e níveis de riqueza, Ricardo Reis esqueceu-se dos olmos, das tílias, os pombos levantaram voo, alguma coisa os assustou ou deu-lhes o apetite de mexer as asas, de voar, na Praça de Luís de Camões a caça está proibida todo o ano, fosse esta mulher pomba e não poderia voar, asa ferida […].

Adiante, para trás ficava a estátua do vate da epopeia lusitana, com os pombos à volta. Triste destino este, o das estátuas.


Descemos a Rua do Alecrim, seguindo as calhas dos eléctricos. Logo, à direita, o Largo Barão Quintela. Aí parámos diante da estátua de Eça de Queirós. Lá está a famosa frase que Eça deixou, como epigrafe, no romance “A Relíquia”.

Susana abriu o livro do Saramago para ler mais uma passagem:
[…] provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido, sedimentos removidos, novas cristalizações, por exemplo, Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia, parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e ir ao exame repetir sem se enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com igual convicção um novo dito, Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade, e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis, que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que abrem a boca para falar […].

O Eça que desembrulhe esta charada. Eu já tenho que chegue. Continuamos a descer a Rua do Alecrim, em direcção do Hotel Bragança. Lá está o edifício, o primeiro do lado direito, do lado de quem sobe. O hotel em que se hospedou o monárquico Ricardo Reis, regressado do Brasil, para onde se exilara em 1919, depois de uma falhada Revolta no Norte.

Foi tempo de Susana voltar ao livro para ler as linhas que descreve a chegada de Ricardo Reis ao hotel:
[…] Gostava era de um quarto de onde pudesse ver o rio, Ah muito bem então vai gostar do duzentos e um, ficou livre esta manhã, mostro-lho já. A porta ficava ao fim do corredor, tinha uma chapazinha esmaltada, números pretos sobre fundo branco, não fosse isto um recatado quarto de hotel, sem luxos, fosse duzentos e dois o número da porta, e já o hóspede poderia chamar-se Jacinto e ser dono duma quinta em Tormes, não seriam estes episódios de Rua do Alecrim mas de Campos Elísios à direita de quem sobe como o Hotel Bragança, e só nisso e que se parecem […].


A Susana leu mais um trecho, indispensável fazê-lo, para lembrar que foi aqui que se deu o primeiro encontro entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa. Ouçamos:
[…] é então que Ricardo Reis repara que por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa, ter-se-ia esquecido, enfim, são coisas que podem acontecer a qualquer, meteu a chave na fechadura, abriu, sentado no sofá estava um homem, reconheceu-o imediatamente apesar de não o ver há tantos anos, e não pensou que fosse acontecimento irregular estar li à sua espera Fernando Pessoa, disse Olá, embora duvidasse de que ele lhe responderia, nem sempre o absurdo respeita a lógica, mas o caso é que respondeu, disse Viva, e estendeu-lhe a mão, depois abraçaram-se, Então como tem passado, um deles fez a pergunta, ou ambos, não importa averiguar, considerando a insignificância da frase […].

Para trás ficou o Cais do Sodré, seguimos agora a Rua do Arsenal. A próxima paragem vai ser no átrio da Câmara Municipal de Lisboa. Aqui nos recolhemos para fugir à algazarra dos carros que mal deixa ouvir as leituras da nossa guia.

Local carregado de simbolismo politico, foi aproveitado para a Susana, agora mais confortada, ler mais dois trechos.

O primeiro, sobre o discurso do pai de Marcenda, um adepto incondicional de Salazar. Ao jantar, ainda no Hotel Bragança, o Dr. Sampaio dirige-se a Ricardo Reis nestes termos:
[…] A nós o que nos vale, meu caro doutor Reis, neste cantinho da Europa, é termos um homem de alto pensamento e firme autoridade à frente do governo e do país, estas palavras disse-as o doutor Sampaio, e continuou logo, Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem, Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras públicas em geral, e a disciplina, meu caro doutor, o sossego das ruas e dos espíritos, uma nação inteira entregue ao trabalho sob a chefia de um grande estadista verdadeiramente uma mão de ferro calçada com uma luva de veludo que era do que andávamos a precisar, Magnifica metáfora, essa, Tenho pena de a não ter inventado eu […].


De seguida, é tempo de Susana nos falar da parte do livro em que Saramago descreve a ida de Ricardo Reis ao comício que teve lugar na Praça de Touros do Campo Pequeno, numa noite quente do final de Agosto de 1936, no qual se juntaram Sindicatos vindos de toda a parte do pais, para dar vivas ao Estado Novo. Ricardo Reis, que nunca assistira a um comício politico, não se entusiasmou.

Ouçamos a Susana ler as linhas que descreve o regresso, a pé, de Ricardo Reis até à sua casa no Alto de Santa Catarina.
[…] Ricardo Reis, que esteve todo este tempo ao ar livre, com o céu por cima da cabeça, sente que precisa de respirar, de tomar ar. Desdenha os táxis que aparecem, logo assaltados, e, tendo vindo à festa, mas não fazendo parte da festa, atravessa a avenida para o outro passeio, como se viesse de um lugar diferente, calhou ser esta a rota de passagem, de mais sabemos como são irreprimíveis as coincidências do mundo. A pé, vai atravessar a cidade inteira, não há vestígios da patriótica jornada, estes eléctricos pertencem a outras carreiras, os táxis dormitam nas praças. Do Campo Pequeno ao Alto de Santa Catarina é quase uma légua, para o que lhe havia de dar, a este doutor médico, em geral tão sedentário de hábitos. Chegou a casa com os pés doridos, uma estafa, abriu a janela para arejar a atmosfera abafada do quarto […].

Voltámos à gritaria da rua, agora em direcção ao Terreiro do Paço, última paragem do roteiro. À frente, temos, novamente, o rio Tejo, testemunha do bombardeamento do navio Afonso de Albuquerque. Foi a revolta dos navios, que teve lugar no dia 9 de Setembro de 1936. Morreram doze marinheiros, um deles Daniel Martins, o irmão de Lídia.

Finalmente, Ricardo Reis indigna-se (assim o quis Saramago) com que contempla à sua volta. Não voltará a escrever (se for Saramago a mandar) sábio é o que se contenta com o espectáculo.


Susana lê mais estas linhas, onde se vemos (quem diria) um Ricardo Reis finalmente revoltado:
[…] Durante toda a tarde, Lídia não apareceu. Na hora da distribuição dos vespertinos Ricardo Reis saiu para comprar o jornal. Percorreu rapidamente os títulos da primeira página, procurou a continuação da notícia na página central dupla, outros títulos, ao fundo, em normando, Morreram doze marinheiros, e vinham os nomes, as idades, Daniel Martins, de vinte e três anos, Ricardo Reis ficou parado no meio da rua, com o jornal aberto, no meio de um silêncio absoluto, a cidade parara, ou passava em bicos de pés, com o dedo indicador sobre os lábios fechados, de repente o barulho voltou ensurdecedor, a buzina dum automóvel, o despique de dois cauteleiros, o choro duma criança a quem a mãe puxava as orelhas, Se tomas a fazer outra, deixo-te sem conserto. Lídia não estava à espera nem havia sinal de que tivesse passado. É quase noite. Diz o jornal que os presos foram levados primeiro para o Governo Civil, depois para a Mitra, que os mortos, alguns por identificar, se encontram no necrotério. Lídia andará à procura do irmão, ou está em casa da mãe, chorando ambas o grande e irreparável desgosto […].

A peregrinação está a chegar ao fim. É a hora da morte de Ricardo Reis. Passados nove meses que chegou a Portugal, Ricardo Reis morre em Lisboa.

É tempo de Susana, antes de se despedir, fazer a última leitura:
[…] Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que a Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo. Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, E estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez. Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse, Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se. Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa-de-cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer, E esse livro, para que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis […].

E lá foram os dois a caminho do Cemitério dos Prazeres. O ano da morte de Ricardo Reis, segundo José Saramago, aconteceu exactamente no dia 10 de Setembro de 1936. Mais não fosse, ficamos todos aliviados do enigma deixado pelo poeta da Mensagem.  

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