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sábado, 28 de junho de 2014

Lisboa, nos passos de Cesário Verde

A reunião dos peregrinos foi junto à Sé de Lisboa, pelas 10 horas. Dia 26 de Junho do ano de 2014. Hoje, o roteiro vai à procura do poeta Cesário Verde na cidade de Lisboa. A Susana, da Divisão Cultural da CML, é quem nos vai guiar nesta peregrinação.

Antes de começar a percurso, Susana faz a apresentação do poeta e, desde logo, confronta-nos com uma pergunta. Terá sido, no seu tempo, Cesário Verde um poeta esquecido? Escolhe o poema "Esplêndida". 

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol
Aumenta-os com retoques sedutores
É como o refulgir dum arrebol 
          Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a Rua do Alecrim, 
           Velozes como a peste.
(...)

Este poema não foi bem aceite nos meios literários. Ramalho Ortigão cravou-lhe uma farpa. Escreveu ele, «… o snr. Cesário Verde, ao qual sinceramente desejamos que estas modestas observações contribuam para que continue a ilustrar o seu nome, tornando-se cada vez menos Verde e mais Cesário.” Injusto este Ramalho!

Deixamos a Sé para trás e descemos até ao vestíbulo da Igreja da Madalena. Não se sabe ao certo onde nasceu o poeta. Na Rua dos Fanqueiros? ou na Rua da Padaria? Certo mesmo, sabemos que foi baptizado nesta Igreja da Madalena, com quatro meses de idade. A Susana traz consigo uma cópia do registo da baptismo. José Joaquim Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro.  José, o nome do pai, Joaquim, o nome do padrinho, Cesário, por ter nascido no dia de São Cesário e Verde, o nome de família.

Continuamos a descer em direção ao rio, damos agora uma espreitadela à Rua da Padaria, Ali no nº 16 é um dos locais prováveis para o nascimento do nosso poeta.

Depois, um salto à Rua dos Fanqueiros, ali perto, no nº 9 (atual), outro local frequentemente citado para o nascimento do poeta. Fica a dúvida. Do outro lado da rua, ficava a loja comercial pertencente ao pai, que ocupava os nºs 2 a 10, do edifício que faz esquina com a Rua do Alfândega. 

Lisboa era. ao tempo, uma cidade imunda, fragilizada aos primeiros sinais de cólera que entrava pela barra do Tejo. A família Verde mudou de casa, sucessivamente, para a Rua do Salitre, depois para a Rua das Trinas (Madragoa). 

No Verão de 1857, a família abandonou mesmo a capital, por largos períodos, refugiando-se em Linda-a-Pastora, onde tinha uma casa com quinta. Cesário virá evocar essa fuga no poema “Nós”.  

Foi quando em dois Verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas,
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
(…)

Apesar de todos os cuidados, morreu a irmã Maria Julia, a primogénita, aos 19 anos e, também, a irmã Adelaide Eugénia, quando só tinha ainda 3 anos. Cesário irá recordá-la no já citado poema "Nós":

(...)
E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

(...)

É tempo de continuar a nossa peregrinação. Seguimos agora pela rua da Conceição, até à Rua Augusta. Passamos pela casa onde nasceu o poeta Mário de Sá Carneiro. Lá está uma placa a assinalar o acontecimento, no nº 93/95, 1º andar.

Cesário Verde deve muito aos poetas do Orfheu. Mário de Sá Carneiro, ao passar por Barcelona, com o contributo do catalão Ribera i Rovira, deu a conhecer o poeta Cesário Verde para lá da fronteira.

Mas foi sobretudo graças a Fernando Pessoa que Cesário Verde emergiu do limbo onde se encontrava e viu, finalmente, reconhecido o seu valor. No Livro do Desassossego, Pessoa, pela pena do Bernardo Soares, irá escrever:“Vivo numa época anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele.

Foi então tempo da Susana ler um pequeno excerto do poema "Contrariedades",

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
         Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes 
       E os ângulos agudos.
(...)

Digam lá se não estamos perante um poema percursor de Álvaro de Campos? Este, mais tarde, irá evocar Cesário escrevendo «Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre, / Ó do «Sentimento de um Ocidental»!". Cesário Verde, o mestre!»

Deslizando agora pela Rua da Augusta em direcção à praça do Rossio, cruzámos a Rua da Assunção. Aqui, morou António de Macedo Papança (futuro conde de Monsaraz), grande amigo de Cesário. O Conde de Monsarz (o autor do poema "O Senhor Morgado" que Adriano Correia de Oliveira virá muito mais tarde a imortalizar) promoveu, nesta casa, saraus literários onde Cesário se cruzou com Guerra Junqueiro, Gomes Leal e João de Deus. Nenhum prestará atenção aos seus poemas. Onde já se viu um comerciante a poetar?

Na esquina da Rua da Assunção com a Rua Augusta existia (e ainda existe) a casa "Nunes Correia", fundada em 1856.


Cesário Verde, poeta e comerciante rico, que gostava de andar elegante, e na moda, provavelmente, comprava aqui os seus fatinhos. Cesário tinha boa figura. Por influência do seu grande amigo Silva Pinto, um liberal, Cesário é arrastado para a boémia revolucionária no “Martinhodas mesas espelhentas

Fialho de Almeida irá descrevê-lo assim: “O tipo era seco, com uma ossatura poderosa, a pele de fêmea loura, rosada, de bom sangue, a cabeça pequena e grega, com uma testa magnífica, e feições redondas, onde os olhos amarelo-pardos de estátua, ligeiramente míopes, tinha a expressão profunda, rectilínea, longínqua, que a gente nota nos marítimos acostumados a interrogar o oceano por dilatadas extensões”.

Foi tempo de Suasana ler o poema “Ele”, outro poema que deu polémica. Pode ter sido no café Martinho que o poeta o compôs, em fins de 1973 (epigrafado Ao Diário Ilustrado) 

Era um deboche enorme, era um festim devasso!
No palácio real brilhava infame orgia.
E até bebiam vinho os mármores do paço!
(…)
Na praça, de manhã, havia, ó rei brutal!
Montões de sordidez horrível e avinhada...
- Nascera o Ilustrado - um vómito real!


Cesário ataca o Rei D. Luís, mas o poema, com um toque panfletário, não agradou nem a republicanos nem a monárquicos. Cesário era um liberal, um republicano, mas não militava em nenhum partido. 

A nossa peregrinação aproxima-se do fim. Dirigimo-nos para a porta do restaurante "Leão de Ouro", ao lado da estação do Rossio. Espera-nos, no interior do restaurante, um quadro (melhor uma cópia) célebre do mestre Columbano.


Em 1881, Cesário participou em reuniões do chamado "Grupo do Leão" (uma referência ao nome do restaurante) com outros literatos, como Fialho de Almeida entre outros. Também participaram nessa tertúlia pintores da época, como José Malhoa e os irmãos Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro. O "Grupo do Leão" foi imortalizado em 1885 num conhecido quadro a óleo da autoria do Columbano, que se pode ver no Museu do Chiado.



Cesário Verde, tal como Fialho de Almeida, foram esquecidos pelo pintor. Esquecimento? Talvez não...

Não faz mal, porque, dessa tertúlia, será Cesário, um não pintor, que antecipará a chegada do impressionismo a Portugal. O seu poema "De Tarde" é como uma tela de Renoir:

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto
 da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Desta vez, Susana leu o poema na integra e deu por fim o percurso. Obrigado, Susana, Adeus, até ao próximo!

Mas, Susana, era só atravessar a rua para acabarmos a nossa peregrinação diante do edifício onde foi dantes o "Martinho". Que pena. Não resisto às mesas espelhentas do Martinho. Falo do poema "Arrojos".

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
(...)
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

No final, só me apetece bradar como fez Álvaro de Campos: «Ó Cesário Verde, ó Mestre!»

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