Em 1940, Miguel Torga, ainda jovem, assinou um pequeno livro chamado “Bichos”. 14 contos sobre animais, histórias de animais que, à primeira vista, até as crianças liam e compreendiam. Será que “Bichos” é um livro infantil? A sua leitura atenta parece negá-lo.
“Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé…Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra, senão morrer calmo e digno…”. São estas as palavras com que Miguel Torga abre “Bichos”: com a descrição das últimas horas de um cão diante da morte. Nero olha para trás em busca de um sentido para a vida. Recorda os dias gloriosos da caça, a confiança do dono, o filho que herdou os defeitos da mãe e, por isso, foi dado a um vizinho. E era pena porque assim Nero morria ali só e esquecido, sem ter sequer junto a ele alguém da família.
Depois, encontramos Morgado. Uma noite, ao atravessar o mato, é cercado por lobos. O dono monta-o e pica-o para que fuja a galope. Mas, quando o burro sucumbe ao esforço, o dono deixa-o à sua sorte. Então, Morgado mergulha numa reflexão invulgar para um burro.
As histórias de “Bichos” parecem algo mais que simples fábulas. Palavras de Miguel Torga: “Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora e sentiu os dentes do primeiro lobo, cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e dar significação a tudo”.
Aparentemente, as histórias que Torga nos conta parecem muito simples. Nós temos a sensação de estar perante uma grande simplicidade na descrição do cão e do gato e do burro e do galo, mas há, por trás dessa transparência, a necessidade de uma interpretação.
Mais adiante, somos apresentados a Tenório, um galo atormentado por dilemas semelhantes aos de Nero e Morgado. Viveu, brilhou e, agora, confronta-se com o declínio. Escreve Miguel Torga: “Galo velho, isto é que era uma vida, andava um homem sabe Deus como e logo uma sentença sem apelo. Galo velho!”. Tenório era ultrapassado pelo próprio filho. Este tinha já a sua estirpe, já chegava para as galinhas e até já cantava. O último som, aliás, que Tenório ouve em vida é, justamente, esse canto cruel do novo galo da capoeira.
É caso para perguntar: Que se passa com estes bichos? Que dilemas tão humanos estão eles a viver?
Miguel Torga nasceu em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, em 1907. De família humilde, não foi a vocação mas a necessidade que o levou ao Seminário. Mas os seus desacordos com Deus, cedo o mandaram para o Brasil, para trabalhar na roça de um tio. Como recompensa, o tio pagou-lhe o curso de Medicina em Coimbra. E, aqui, em Coimbra, Miguel Torga foi médico durante largas largas décadas. Volta, sempre que pode, à terra natal. Palmilha a pé as serras, atende gratuitamente os doentes da aldeia e é lá que quer ser sepultado em campa rasa.
Escreveu Miguel Torga algures: “Encontro-me aqui. Desde há muito que eu sei que sou usufrutuário de uma herança sagrada, que só merecerei se nunca me esquecer que São Martinho é o berço onde tenho de nascer a todas as horas.”
Porque Torga, a sua obra e sua terra eram uma e a mesma coisa. O local de nascimento de um homem era, para Torga, o eixo do mundo.
Miguel Torga achava que nós devíamos ser fiéis, honrar as nossas raízes. Ele dizia: “Eu sou do povo, sou pelo povo e não há forças que me apaguem do instinto a cepa donde provenho”. E isto parece ser fundamental para perceber Torga.
Miguel Torga escreveu poesia, teatro, conto, romance, mas qualquer que seja o género, algo permanece: uma autenticidade que recusava malabarismos verbais, para se concentrar no que é essencial na vida.
Voltemos aos “Bichos”. Escreve Miguel Torga: “Muita alegria tem tal bicho! A alegria passa-lhe... É deixar vir o Inverno”. Quando as formigas alertam a cigarra para os perigos de não trabalhar, ela canta ainda mais alto, porque Torga desafia a moral tradicional de La Fontaine. Escreve ainda Torga: “A cegarrega olha para trás e revê todos os obstáculos que ultrapassou para chegar aqui. Por isso, canta. Não para o mundo, mas por ela. Para celebrar a sua vitória no grande teatro da vida. “Protoplasma, lagarta, ninfa, quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto. Chegara!, agora era receber o calor do presente e cantar”.
Parece-nos que Miguel Torga (a figura humana de Torga) está também no conto cegarrega, a cigarra. Porque, a determinada altura, a cigarra simboliza o poeta “O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão”, palavras de Torga. O poeta é ele próprio, porque o poeta vence a morte, cantando, poetando, como ele diz. Só o canto, só a cantar, acreditando na vida, é que se vence a morte. São as palavras a terminar o conto. E também no poema Refrigério Miguel Torga é a cegarrega dorida ao sol do mundo. Assim,
Refrigério
Cegarrega dorida ao sol do mundo,
Canto e não canto, consoante a hora.
Agora,
Justamente,
Estou a cantar.
Não sei que tenho, que só me consolo
Neste colo
De penas.
As grandes e pequenas
Mágoas de revoltado
Impenitente,
Condenado a morrer sem triunfar,
Sofro-as melhor assim, a protestar
Liricamente.
in Diário VII, Coimbra, 6 de Dezembro de 1954.
Continuando, vemos que “Bichos” vão lentamente revelando os seus segredos. Neles, somos tentados a dizê-lo, estão a filosofia e a ética do Torga, como na história do Mago.
Outrora um gato bravo e mulherengo que, um dia, sucumbiu aos mimos de uma dona. Domesticado e humilhado, regressa ao convívio da rua. Mas, quando os velhos amigos o provocam, envolve-se numa luta que perde vergonhosamente. Torga escreve: “Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera…Ele que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca. Ele, o escolhido da Moira Negra…Ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes”.
Mago é o paradigma do animal que se deixou civilizar e enfraquecer. É uma sombra de si mesmo.
Ora, nós sabemos perfeitamente que Torga, o autor, através destes bichos que vamos conhecendo, quer dar recados. Todos eles.
Poderá a história do inofensivo Mago conter algum recado? Ter alguma coisa a ver com Política, por exemplo? Será possível.
Palavras de Miguel Torga num comício a seguir ao 25 de Abril: “Gostaria de esclarecer, desde já, que não sendo filiado no Partido, presido a esta reunião na simples qualidade de homem socialista que sempre fui. Homem mais sensível a uma Ética do que a uma Ideologia, mais espontaneamente fraterno do que disciplinarmente correligionário; mais atento ao imperativo dinâmico de vozes remotas do que ao momentâneo encantamento dos ecos doutrinários.”
Miguel Torga disse também que o seu partido era o mapa de Portugal. Crítico impiedoso de Salazar, jamais aceitou submeter-se, contudo, à ortodoxia de um partido. Discursou nas primeiras reuniões do Partido Socialista, mas, ao contrário do gato Mago, a sua rebeldia não aceitava domesticações.
Torga nunca pertenceu a nenhum partido e fez o seu percurso solitário. Foi preso, sem pertencer a nenhum partido, sem pertencer ao grupo Neo-Realista ou a qualquer outro. Pertenceu sempre vagamente a um grupo da oposição.
Censuraram-lhe livros, foi seguido e preso pela PIDE. Recusou prémios por serem dados pelo Regime e, certo dia, confessou a um jornalista francês: “Sentimentalmente, sou um socialista; mas, por dentro, continuo anarquista, um rebelde!”
Quando a Presença surgiu como porta-estandarte do segundo modernismo, teve em Miguel Torga um dos seus autores mais destacados. A revista defendeu uma literatura viva e livre e estão lá alguns dos maiores nomes das Letras de então. Mas, após um ano, Torga afastou-se. Por defeito ou feitio, na Politica como na Literatura, Torga não nascera para grupos. Fazia o seu próprio percurso, muitas vezes pagando-o com a fama de homem difícil.
Na verdade, à vezes, ele transmite essa ideia talvez por que não transigia com os hipócritas, com os oportunistas. E, portanto, ele defendia-se por uma necessidade de defesa da sua própria integridade. Ele teve a seguinte expressão: “A liberdade é uma penosa conquista da solidão”.
Palavras de Miguel Torga: “Nasci tão chegado às origens que até na criação literária sou como as leiras da minha meninice. No fim de cada colheita pareço estéril, maninho, em restolho”.
Nem para publicar os seus livros, ele aceitou submeter-se a regras de ninguém. Por isso, pagou do próprio bolso as edições. Acima de tudo, Torga permaneceu um camponês da aldeia: uns plantam árvores de fruto; ele semeia palavras. Como no poema do
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
in “O Outro Livro de Job”
O sintoma mais claro da personalidade de Torga está escondido na escolha do seu pseudónimo. Adolfo Coelho da Rocha, a partir de 1934, passa a assinar Miguel Torga. Porquê?
Miguel de Miguel de Unamuno e Miguel Cervantes. E Torga de torga, planta retorcida e forte, urze brava, nascida na serra.
Regressemos aos “Bichos”. Com Miura, “Bichos” revela-nos em definitivo a grandeza moral do animal selvagem. Um touro, lançado na arena, tenta perceber o que esperam dele. Escreve Torga: “Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés, o ar de quem joga a vida. O manequim de lantejoulas caminhava sempre”. Miura investe, mas o manequim esconde-se atrás da capa. A plateia aplaude a humilhação. Uma vez e outra…e outra, até que do alto da sua dignidade, Miura vê a espada e oferece-se à morte por não suportar mais aquela tortura absurda. “A lâmina oferecia-se inteira. Miura fitou-a bem. Depois, numa arremetida que parecia ainda de luta e era de submissão, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume”.
Pouco a pouco, vamos percebendo que o que “Bichos” nos dá é um desafio a Deus. Animais conscientes que questionam os desígnios do Criador numa terra materna, donde tudo nasce e a que tudo no fim regressa.
A relação entre Miguel Torga e Deus nunca foi fácil, Certa vez, quando recuperou de uma cirurgia, uma irmã freira ofereceu-lhe uma medalha de um santo, mas Torga recusou dizendo: “Com Deus falaria de igual para igual, sem intermediários”.
Voltando aos “Bichos”, escreve Miguel Torga: “Madalena arrastava-se a custo, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias”.
Madalena, que estranhamente aparece no meio dos bichos, é uma mulher de Trás-os-Montes, que foi engravidada por um homem que não quis casar com ela e que, por isso, ela se isola nos montes para parir o filho, por forma a que ninguém saiba que ela foi mãe.
Escreve Miguel Torga: “Nem um som, nem a presença de uma aragem a quebrar a solidão que a cercava. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida. Vermelha e suja. O segredo dela e de Deus”.
De repente, do meio dos animais, “Bichos” revela-nos seres humanos:
Madalena que vai parir um filho indesejado na serra;
Jesus, um menino, que beija um ovo e isso basta para fazer nascer um passarinho;
Ramiro, o pastor, que de tanto conviver com as ovelhas, deixou a língua dos homens; e
Nicolau que coleccionou insectos na vida inteira e cuja último desejo, antes de morrer, é ser correctamente catalogado e colocado numa caixa ao lado dos restantes espécimes.
É caso para nos interrogarmos: mas que faz aqui esta gente? Porquê estes humanos no meio dos bichos?
A resposta poderá ser esta: Porque aqui nestes contos há homens que são bichos (como por exemplo o Sr. Nicolau, a Madalena,...) que são autênticos bichos, que pensam como os bichos e agem como os bichos. E há bichos que são seres pensantes, com sensibilidade, com alma…
Disse Miguel Torga, uma vez, ao discursar: “Sei que não escrevi desses livros paradigmáticos e nunca essa convicção foi tão cruciante (aflitiva) como neste momento. Muito embora a vossa grata presença aqui me queira dar essa ilusão. Valha-me a certeza de que o tentei até ao limite das forças, não seduzido pelo aceno de qualquer aplauso, mas na ânsia passional, quase somática de que eles fossem uma emergência expressiva, modesta mas autêntica, do plasma matricial da Pátria.”
Miguel Torga guardou para o fim meia dúzia de páginas magistrais, onde escolhe para herói um CORVO, o animal das trevas, da noite e da morte. Mas Vicente não era a morte, porque Torga ia desafiar de novo a moral tradicional e colocar o seu corvo em fuga da Arca de Noé.
No mito bíblico, o corvo saía da Arca, voava e voltava, para ver se havia terra. E, finalmente, foi solta uma pomba, a qual regressou com um ramo de oliveira no bico, sinal de que havia terra.
Porém, no conto do Torga, não é assim. O corvo, ao fim de 40 dias, enclausurado naquela prisão flutuante, rebelou-se contra o Criador e saiu da Arca e nunca mais voltou.
Escreve Miguel Torga: “O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e em condenados”.
Olhamos para essas páginas magnificamente escritas e interrogamo-nos: Que faria Deus? Obrigá-lo-ia a voltar? Iria castigá-lo exemplarmente? De súbito, do meio das águas, avista-se Terra, um pequeno penhasco, nada mais, e sobre ele uma silhueta negra. Era Vicente.
Mas as águas iam subindo. Assiste-se, então, à luta do corvo contra Deus, ou seja, da criatura contra o Criador.
Vicente não se renderia. Escolhera a liberdade e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Animais e humanos assistiam em suspenso. As ondas quase arrancam o corvo do pouco de terra que resta. Escreve Miguel Torga: “Mas em breve se tornou evidente que o Senhor iria ceder, que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre, que, para salvar a sua própria obra, fechava melancolicamente as comportas do céu”.
Nas primeiras edições de “Bichos”, o conto terminava dizendo que Deus nada podia contra “aquela vontade inabalável de viver. Só a partir da 7ª edição, Torga alterou para ”aquela vontade inabalável de ser livre” Porquê? Vivia-se já a Primavera Marcelista. Era mais fácil falar de liberdade. Seria mais um recado político? Decerto, mas não só. Desde há muito que Miguel Torga compreendera que viver não bastava. A dignidade humana obrigava a que a vida só valesse a pena em plena liberdade.
Liberdade
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
in Diário XII, Albufeira, 28 de Agosto de 1975
A liberdade é, podemos assim dizer, o grito que ecoa no fim dos “Bichos”. A liberdade de sermos nós, no erro e na redenção, com ou sem Deus.
Somos até tentados a perguntar em jeito de um jogo: Que animal quero ser? Em qual me revejo? Seria eu capaz de fugir da Arca de Noé?
Hoje, em que por vezes todos nos sentimos animais de quinta, controlados e formatados, “Bichos” vem lembra-nos que, debaixo de regras e linguagens, todos provimos de um paraíso por reencontrar. Uma essência instintiva que nos manda amar, morder, bater, saltar como bichos. Os bichos que somos todos.
Muito bom! Esclarecedor e inspirador, mesmo a calhar para o meu trabalho com alunos sobre alguns contos dos Bichos. Muito obrigada pela partilha!
ResponderEliminarTão instrutivo quanto inspirador. Uma partilha generosa e diga de nota. Obrigada por isso.
ResponderEliminarSatisfeito por saber que gostou. Grato pelo seu comentário.
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