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sábado, 30 de junho de 2012

Os Livros do Senhor Júlio Dinis

Regras de funcionamento do meu Grupo de Leitura, levaram-me a voltar a ler As Pupilas do Senhor Reitor, do Júlio Dinis. Julgo ter lido este livro por volta dos meus quinze anos, graças às bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. Eu era leitor assíduo da carrinha que estacionava no terreiro (agora parque de estacionamento) ao cimo da avenida principal do Fundão, em frente da Câmara.

Digo, desde já, para não haver dúvidas, que não estou nada arrependido de ter revisitado este livro, que Alexandre Herculano considerou «o primeiro romance do século».

Júlio Dinis acabou curso de Medicina em 1861. Veio a morrer precocemente em 1871, apenas com 32 anos de idade, vitimado por tuberculose. Escreveu toda a sua obra, portanto, durante a década de 60. Intensa, quer do ponto de vista literário, quer do ponto de vista político. Parece interessante tentar perceber a opção literária do escritor.

Naquele ano de 1861, Eça de Queirós foi estudar para Coimbra, onde já estava Antero de Quental que, nesse ano, publicou As Odes Modernas. Nesse mesmo ano, morreu D. Pedro V, sucedendo-lhe o irmão D. Luís.

A primeira metade do Século XIX havia sido muito complicada. A fuga da corte real para o Brasil em 1807. As invasões francesas que desencadearam uma guerra violenta, durante sete anos, com efeitos devastadores. A Revolução liberal de 1820. A Guerra Civil de 1828 a 1834. A Revolta Setembrista de 1836. O Massacre do Rossio em 1838. O Golpe de Estado no Porto em 1842, Em 1846, a Maria da Fonte (Abril) e a Patuleia (Outubro). Finalmente, a paz em 1847, com o Acto Constitucional (Adenda à Carta Constitucional).

Inicia-se, então, em Portugal, um período que fica conhecido pela Regeneração e que irá até 1890. Foi um período de acalmia na sociedade. Os partidos guerreavam-se no Parlamento, mas os portugueses deixaram de se matar uns aos outros. Nos anos 60, a juventude republicana concordava que era preciso parar com a luta entre partidos para se cuidar da Economia e da Educação. Mas outros jovens, não menos democratas, citavam Proudhon (socialismo), Comte (positivismo), Darwin (evolucionismo) e Hegel (idealismo) para declararem a Regeneração uma fraude. Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins são os principais expoentes das novas ideias, vindas do estrangeiro, e que entraram em confronto com a escola romântica, por vezes até de forma violenta. A discussão irá culminar na Questão Coimbrã, em 1865, e, mais tarde, nas Conferências Democráticas do Casino, em 1871. Estava em marcha um novo movimento literário, o Realismo.

Neste contexto, como entender a opção de Júlio Dinis?
Ortega y Casset disse que «O Homem é o homem e as suas circunstâncias». Embora me pareça uma afirmação por demais evidente, ela aplica-se totalmente ao escritor Júlio Dinis.
Três razões. Primeiro, o escritor nasceu no seio de uma família burguesa; segundo, estudou no Porto e não em Coimbra; terceiro, a doença obrigou-o a uma certa reclusão rural.

Tivesse ele estudado em Coimbra, podia muito bem acontecer que ele fosse contaminado pelas novas ideias, fazendo escola ao lado de Antero e dos restantes companheiros. A vida no campo, por motivo de saúde, em Ovar e na Ilha da Madeira, explicam, também, a opção pelo romance campesino, com as suas personagens tiradas a partir das pessoas com quem conviveu de perto. Preconiza, por isso, o regresso ao campo e à vida simples. Procura uma aliança entre a ciência e a ingenuidade. O que não é fácil. Curiosamente, Eça de Queirós que havia falado de Júlio Dinis, de forma irónica, «J.D. viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve», retomou este tema, em A Cidade e as Serras, ainda que com outra intenção. 

As Pupilas do Senhor Reitor é um romance lançado ao público em formato de folhetim em 1863 e, posteriormente, editado e publicado como livro em 1867.

Até apetece dizer que o primeiro formato de As Pupilas do Senhor Reitor foi uma das inspirações para as telenovelas como as conhecemos hoje. A sua escrita segue uma cuidada e elegante captação de ambientes e retrata, em boa verdade, um certo Portugal social, político e religioso. 

Há uns tempos atrás, a RTP1 passou um documentário com o intelectual Eduardo Lourenço, por altura da atribuição do Prémio Pessoa 2011. Um documentário interessante que dá para ver o humor do Professor, ao contar episódios com muita graça. Um deles foi a propósito do escritor Júlio Dinis. Contou ele: O pai do escritor, intrigado com as leituras do filho, interpelou-o: «Joaquim, que andas tu a ler? Bem, se ainda lesses o Senhor Júlio Dinis, que escreve romances muito bonitos».

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A que propósito, José?

Aproveitando a borla existente até final do mês, fui ontem, com os meus amigos do CUTLA (Clube Universitário Tempos Livres da Amadora), à Fundação José Saramago, aberta ao público no passado dia 18, no dia em que passavam 2 anos sobre a morte do escritor.

Está instalada na Casa dos Bicos, edifício que Brás de Albuquerque, filho do vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque, mandou construir em 1523, após uma viagem a Itália, e que teve como modelo o Palácio dos Diamantes, em Ferrara. A guia, que nos acompanhou durante a visita, teve oportunidade de, justamente, falar um pouco da história deste edifício que, ao longo do tempo, serviu a distintas funções, tanto privadas como públicas.

É importante saber que o edifício continua propriedade municipal, cedido à Fundação por um período de 10 anos, mediante protocolo assinado em Julho de 2008.

É ainda importante saber que a Fundação se rege, como não podia deixar de ser, por uns Estatutos.

Acontece que, no final da visita, fui assaltado por uma série de dúvidas, porque não vi, no espaço percorrido, nenhuma iniciativa em relação: ao apoio ao surgimento de novos autores de língua portuguesa (cfr. alínea b) dos Estatutos); ao apoio e estímulo a iniciativas e acções culturais em defesa da difusão da Literatura Portuguesa (cfr. al. d) dos Estatutos); a promoção e estímulo a intercâmbios entre as diversas literaturas nacionais que se expressam em português (cfr. al. e) dos Estatutos).

O que eu vi, sem mais, foi a divulgação da obra do escritor José Saramago, por todo o lado. São os livros (em muitas línguas), os objectos pessoais, os diplomas, as medalhas, as distinções e, ainda, o merchandising. Onde estão as outras iniciativas previstas nos Estatutos (novos autores portugueses, acções de defesa de divulgação da literatura portuguesa, promoção e intercâmbio das diversas literaturas nacionais)?. Apenas contesto a presença, em regime de exclusividade, da obra do José Saramago.

Mas há ainda, para terminar, uma coisa perfeitamente incompreensível! O edifício é público, mas o amigo do José Saramago, Vasco Gonçalves, tem um lugar privilegiado no terceiro andar. O escritor reservou um espaço, bem razoável, para ali instalar, definitivamente (não, não se trata de uma exposição temporária), a biblioteca do Vasco Gonçalves. A que propósito, José?

quarta-feira, 13 de junho de 2012

O dia dos meus anos


Se o Fernando Pessoa fosse hoje ainda vivo, era dia de festejar o "dia dos meus anos".


Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Amado cão

José Jorge Letria escreveu “Amados Cães”, onde conta histórias de cães famosos. Aliás, famosos eram os donos. São pequenas histórias de cães com história. Respiguei quatro delas que achei curiosas.

Hemingway. O adeus aos cães. Gatos e cães ocuparam um espaço importante na vida do autor de O Velho e o Mar. A Quinta da Vigia, situada a cerca de 20 quilómetros de Havana, acolheu quatro cães e 57 gatos e uma biblioteca de mais de 9 mil livros. Os gatos foram em muito maior número que os cães, mas foram estes que tiveram direito a campa e a lápide funerária. Chamavam-se Negrita, Blackie, Machakos e Black Dog. Um dia, um deles, talvez Negrita, viu-o a limpar e olear uma caçadeira e disse para os companheiros cães e gatos: «Há-de ser com ela que irá escrever o capítulo final da sua vida, e não com lápis ou com máquina de escrever». E assim foi.

Kasbec, o galgo afegão de Picasso, tinha uma grande mágoa e, por isso, resolveu escrever uma carta ao dono. “Se tantas vezes celebraste na tela a grandeza e a beleza dos touros que tantas vezes apreciavas, cobiçando talvez a pujança fálica das suas imponentes e ruidosas cobrições, por que motivo nunca me quiseste dar a honra de ser modelo da tua arte, sendo eu belo e elegante como sempre são os cães da minha raça?».

Viagem com Charley, de John Steinbeck, foi um livro que eu li há  bons anos.  Um dia, Steinbeck decidiu ver a América também através do olhar do seu cão Charley, um Poodle castanho, já com dez anos de idade. O escritor sempre gostou de cães e nunca dispensou a companhia deles. A viagem foi feita numa carrinha baptizada com o nome de Rocinante, o mítico cavalo imaginário de D.Quixote. A relação de afecto entre o dono e o cão parece ter sido absolutamente inexcedível. Dessa aventura, nasceu o livro "Viagens com Charley". Sobre o seu inesquecível companheiro de viagem, escreveu Steinbeck: «Inteligente e bem comportado, Charley é mais do que um mero companheiro de viagem; ele é parte integrante do projecto. O cão ajuda a quebrar o gelo com os estranhos: Charley é o meu embaixador».

José Jorge Letria não fala de Machado de Assis, mas podia falar. Este escritor da língua portuguesa, amplamente considerado como o maior nome da literatura brasileira, viveu um grande amor ao lado da sua mulher, Carolina. Os dois nunca tiveram filhos e dedicaram todo seu amor a uma cadela de nome Graziela. Após a morte de Graziela (outra grande perda para Machado de Assis), tiveram um outro cão a quem deram o nome de Zero.

Não podia deixar de falar, agora, do meu cão. Foi baptizado com o nome de Joyce, sem pensar, confesso, no escritor James Joyce. Desconheço, até, se o escritor irlandês gostava de animais. Sei que escreveu, entre outros, o livro "Ulisses", cuja leitura que eu tentei, mas desisti sempre. Livro difícil. Há poucos dias, o Gonçalo M. Tavares falou dele na Casa Fernando Pessoa, mas eu não pude estar presente. A Joyce, a minha cadela, entrou na nossa casa há doze anos. Era um bebé, com um mês de vida. Entrou na nossa casa num momento muito difícil. Veio com uma missão de grande responsabilidade, mas não teve tempo para pôr em acção todo o seu saber. Mas ficou connosco para sempre. Tem sido uma grande ajuda. Dá-nos tudo, sem reclamar qualquer contrapartida. Agora, é imprescindível nas nossas vidas.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

“O Teu Rosto Será o Último”, revisitado

A leitura do livro “O Teu Rosto Será o Último”, de João Ricardo Pedro, deixou-me, no final, uma sensação um tanto estranha. Donde, a necessidade de revisitar o livro. O intuito, porventura condenado ao falhanço, é tentar descobrir um fio condutor entre as várias personagens e encontrar um fim plausível para as histórias deixadas dependuradas.

A história principal é simples, é a história das três gerações de uma família.

Duarte é o personagem principal da narrativa, que muitos garantiam que ia ser o maior beethoviano do seu tempo. Vivia com os pais em Queluz, melhor (preciso eu) numa freguesia com nome de monte e de um profeta. Um dia, não quis tocar mais, ninguém entendendo porque o fez.

António Mendes, o pai, que acordava todas as noites aos berros, a pensar que está a ser atacado por pretos no meio do mato e engole quarenta comprimidos por dia só para se conseguir lembrar o nome do filho. Um dia, suicida-se com a pistola do seu pai.

Dona Paula, a mãe, que o filho não percebia como é que ela, uma beata, era capaz de torcer pela União Soviética, num jogo de futebol contra a Holanda. Um dia, disse ao marido e ao filho: «Tenho um cancro», encostando a mão ao seio esquerdo. Depois disse ainda: «Vou ser operada na segunda-feira, amanhã dou entrada no hospital» E mais disse: «A despensa está cheia, fiz bacalhau com natas, que está no congelador, e uma panela de sopa».

Augusto Mendes, o avô paterno, médico, que um dia vem do Norte para se instalar numa pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul. Um dia, em que se preparava para ver passar - na aldeia donde até as cobras fogem - a Volta a Portugal em bicicleta, caiu inanimado no chão. Passado algum tempo, não obstante os cuidados da mulher, morreu.

Dona Laura, a avó materna, era a única rapariga da aldeia com a terceira classe. Começou por limpar a casa e o consultório do doutor Augusto Mendes. Até que, um dia, o doutor Augusto Mendes disse, Laura, acho que devíamos casar. Dona Laura, parece, ainda vive na aldeia. Um dia que lá passar, vou perguntar por ela.

Os avós maternos não se sabem os nomes. Estes eram de Lisboa. O avô era do “contra”, participou na campanha do Humberto Delgado. Um dia, depois do jantar, foi levado para o António Maria Cardoso. No dia seguinte, bateram à posta de casa, alguém veio anunciar que ele tinha morrido. A avó morreu atropelada por um eléctrico na Rua do Alecrim, enquanto a filha a esperava, sentada a uma mesa dum café ali perto.


Há, depois, as outras histórias que se cruzam com a história principal, onde orbitam personagens, cujas ligações não são fáceis de entender.

Celestino chega à aldeia que tem nome de mamífero, quarenta anos antes do 25 de Abril de 1974. Neste dia, é assassinado, exactamente à mesma hora que Marcelo Caetano se rende no Largo do Carmo.

Policarpo é o amigo do Dr. Augusto Mendes. É quem lhe vende a casa na aldeia que tem nome de mamífero. Parte para a Europa numa altura em que o professor de Coimbra estava a começar a carreira. Prometeu, e cumpriu, ir remetendo cartas a dar notícias. O avô de Duarte foi sempre lendo ao neto todas as cartas recebidas do seu amigo Policarpo, à excepção a carta de 1975, se calhar, ou talvez por isso, por se encontrar incompleta. Mais tarde, foi viver para Buenos Aires, onde veio a morrer.

Alcino era barbeiro no salão Playboy, onde o Duarte tinha hábito cortar o cabelo. Antes de começar a cortar o cabelo aos clientes, as mãos do Alcino tremiam como varas verdes. Mas Duarte acreditava que o barbeiro Alcino era, provavelmente, o único barbeiro do mundo a proporcionar aos seus clientes a sensação de terem sobrevivido a um desastre. Como certas pinturas que nos comovem, não pelas suas qualidades estéticas, mas por sabermos, de antemão, que foram pintadas por crianças sem braços…

A professora de canto (nome?) tinha umas mamas e um rabo que faziam lembrar certos madrigais de Monteverdi. Um dia, Duarte, ao tocar o Prelúdio BWW 867, em Si bemol menor, caiu sobre o piano. Acudiu-lhe a professora de piano…uma sorte para Duarte.

O médico (nome?), que gostava de Bach, usava, no dedo mindinho, da mão esquerda, um anel de ouro que tinha gravadas, em estilo gótico, as letras H e C. O Duarte saiu do consultório, com uma caterva de exames para fazer. O médico passou todo o fim de semana sem sair de casa. Não recebeu qualquer visita, nem atendeu o telefone.

O professor de piano (nome?), tinha um pai (nome?) que se apaixonou pelas pinturas de Bruegel. O filho conta a história do pai: Um dia, o pai professor, ao entrar na sala do Museu de História de Arte, em Viena, onde se encontrava o quadro de Bruegel, deparou-se com uma mulher que acabara de colocar um a tela ainda em branco. Uns dias depois, assombrou-se: o rosto da mulher pintada era igual ao rosto da pintora, por sua vez igual ao do quadro do Bruegel. Era um autorretrato. A pintora tinha-se encontrado a si própria, já que, como no quadro, tinha uma perna mutilada. Um dia, a mulher da tela desapareceu sem deixar rasto. Na iminência de uma nova Guerra, regressaram a Portugal. O pai morreu e foi enterrado no cemitério de Vila Viçosa.

Numa manhã, o professor de piano, depois de recordar história do pai enquanto fazia a barba, saiu de casa e, na rua, apanhou um táxi: “Queluz, por favor”. Consigo levava um embrulho. O destino foi a casa de Duarte. Em casa só estava a mãe. Explicou-lhe que dentro do embrulho estava um quadro. E contou-lhe a história do quadro. Já muitos anos de o pai ter morrido, o encontrou num quarto de um hotel em Buenos Aires.”Quero dá-lo ao seu filho” e explicou: “Pelos momentos em que o ouvi tocar Mozart, Beethoven, Bach…” e disse ainda “que pena ele ter desistido” E acrescentou: “mas acho que o quadro me deu a resposta para a desistência do seu filho”. O Duarte desistiu precisamente no momento em que estava prestes a tornar-se igual à música que tocava…

Dias mais tarde, ao pendurar o quadro na parede, Duarte reparou: Wien, 3/8/1924 e, ainda, num canto, as iniciais HC. Nesse preciso momento, Duarte lembrou-se de duas coisas: primeira, o anel que o médico que usava no dedo mindinho e que tinha gravado as iniciais HC; segunda, a carta de Policarpo de 1975, que o avô nunca lhe lera e lhe faltavam as últimas folhas.

Artur Monteiro, soldado em África, depois inspector, para quem o pai de Duarte foi a pessoa mais extraordinária que conheceu em toda a vida. Ao ver o quadro, o inspector Monteiro deu-se conta que aquele rosto assustado lhe recordava alguém. Alguém de cujo nome já não se lembrava…Quando chegou a casa, o soldado Monteiro perguntou-se como é que poderíamos esquecer tudo acerca de uma pessoa e, no entanto, lembrarmo-nos do seu rosto até ao ínfimo detalhe.

Na carta de 1975, escrita em Buenos Aires, que lhe faltavam as últimas páginas, Policarpo diz algumas coisas que era suposto ajudar a desenrolar o novelo: a importância que atribui à morte de Celestino; Antes da II Grande Guerra estava em Berlim numa data coincidente com a chegada do Celestino à aldeia que tinha nome de mamífero; anuncia que vai apresentar a explicação para o motivo da fuga de Celestino, assim como da sua morte; fala da aquisição do hotel há 6 anos, que se chamava Robert e que veio mais tarde saber que chamava Joseph; fala ainda do hóspede (a mulher da tela) do quarto 302 que veio a morrer uns anos depois; da surpresa do quadro dependurado na parede onde aparecia uma mulher de lenço azul na cabeça que só tinha uma perna e caminhava com ajuda de duas maletas; a constatação de que o rosto da mulher do quadro era igual ao retrato da hóspede, apesar do tempo decorrido; a antologia, em alemão, de poemas de Camões; a velhota, cidadã aparentemente alemã (a mulher da tela?), tinha noventa anos e chamava-se Clawdia e não Hannah, como inicialmente se pensou; há dois meses (já depois do 25 de Abril), chega a Buenos Aires um português, a perguntar por Joseph Castorp (antigo dono do hotel) e que diz que a razão da sua vida àquela cidade são assuntos relacionados com Beethoven; Afinal, Joseph Castorp chama-se Robert Cussler; Este homem chora ao olhar para o quadro da mulher sem perna; o homem vai depois falar do pai, mas, neste altura, as páginas seguintes (as tais que iam dar a explicação para todos os enigmas) desapareceram.

E agora, leitor?. Desenrasca-te. Tenta tu ligar as pontas deixadas no ar…

Confesso que, de palpável, pouco ou nada se consegue. Apenas uma conclusão, com um algum grau de razoabilidade, mas sem relevância para a decifração da narrativa: O homem, que gostava das pinturas de Bruegel, relaciona-se com a mulher da tela. Esse homem, e o seu filho (que nos conta a história do pai) voltam a Portugal. A mulher da tela vai para Buenos Aires. O filho é o professor de piano de Duarte, que vai a Buenos Aires e traz o quadro para o oferecer ao Duarte. O quadro tinha as iniciais HC (de Hannah e de Clawdia?). E o médico, que gostava de Bach, também está ligado a este núcleo de pessoas. Se não, como explicar as iniciais HC no anel que ele usava no dedo mindinho. O que quer ainda dizer que este anel devia pertencer à mulher da tela. É só. Uma mão cheia de nada.

Permanecem as principais dúvidas (porque morreu Celestino? Porque é que Duarte achava que o Índio viria a ser um grande artista? Porque é que o barbeiro Alcino tremia das mãos? Porque é que o médico conhecia Bach como as suas mãos? Quem era a mulher do museu? Porque é que Duarte deixa de tocar piano? Quem é HC, no anel do médico?).

Mas valerá mesmo a pena tentar ligar os fios do novelo? Há histórias assim. Nem todas histórias têm necessariamente que ter um fim. A nossa vida também é assim, incompleta.

No final, só um enigma eu consegui decifrar. A pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, virada a sul…ORCA.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

De médico e louco....



Machado de Assis, em O Alienista (1882), pretende, sobretudo, chamar a atenção para a mentalidade científica que marcou o Séc. XIX. É uma abordagem satírica e irónica da necessidade de justificar os excessos da ciência como uma condição para os avanços no futuro.




A narrativa de Machado de Assis conduz-nos, de forma hábil, por caminhos em que é muito difícil ao leitor distinguir a linha que separa a razão da loucura, do que é certo do que não é, do que é verdade ou não, de que quem está isento ou não.

É, ainda, uma sátira ao poder. Tanto a razão como a loucura são usados pelo poder, dependendo do interesse. E como o poder é, quase sempre, pouco duradouro, sobretudo quando é alcançado através de manobras demagógicas. E, pior ainda, quando esse poder cai nas mãos de mentecaptos, como o caso do barbeiro do conto, que pouca coisa entende para além da navalha e da barba…

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Carta ao Jornal do Fundão

Caro Fernando Paulouro,

Já fui assinante do Jornal do Fundão, hoje não, do que me penitencio. De todo o modo, graças à gentileza de amigos, tenho lido o jornal, nos últimos tempos. Ainda recentemente, li uma referência elogiosa a um livro que fala da aldeia onde eu nasci. Orca Terra, de Rosa Salvado Mesquita.

Posso dizer, ainda, que, nos últimos dias, andei às voltas com uns recortes do Jornal do Fundão, do ano de 1992! Um muito interessante debate, terçado nas páginas desse jornal, a propósito de um artigo (17/1/92) que o padre António Morão escreveu quando saiu livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. Esse artigo teve duas respostas (31/1/92) e o padre Morão replicou (7/2/92). Recuperei esse acalorado debate para documento Word. Não se podia perder. Tenho uma grande admiração pelo padre António Morão. Quando passava férias na terra dos meus avós, foi da boca dele que eu, pobre inculto, com 15 anos, ouvi pela primeira vez falar da existência do PCP e do Álvaro Cunhal. Foi ele que me deu a conhecer a Vida e Morte Severina , de João Cabral de Melo Neto e, ainda, a música de Chico Buarque e o nome de escritores como Jorge Amado.

Bem, mas a razão desta minha missiva, hoje, é outra.

Quero falar do livro que foi mais vendido na última Feira do Livro de Lisboa. Venceu ainda, como se sabe, um dos principais prémios literários em Portugal. Quem sou eu para falar deste livro, reconhecidamente um grande livro, tanto mais tratando-se da primeira experiência literária dum jovem escritor.

Dois pequenos excertos do livro:

«…pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da Gardunha, voltada para sul…» - pág. 12.

“O inspector perguntou-lhe: «Confirma que se deslocou à casa onde vive a sua avô, mãe de seu pai, Laura de Jesus Mendes, situada numa aldeia com nome de mamífero, concelho do Fundão». Duarte respondeu: «Sim.»”– pág. 177.

Não oferece dúvidas de que aldeia fala o autor nesta sua narrativa: ORCA.

E a questão que se coloca é (espero não estar a cometer nenhuma injustiça, caso já o tenham feito): quando é que o Jornal do Fundão nos fala deste livro e do seu autor com raízes familiares no concelho do Fundão?

Tenho a certeza que o padre Morão, lá onde está (rodeado de livros por todo o lado) já leu este romance do João Ricardo Pedro e divertiu-se imenso.