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sexta-feira, 25 de maio de 2012

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A velha senhora que receitava poesias

A última revista LER-Livros & Leitores, da Bertrand, traz um artigo de José Eduardo Agualusa que conta a história de uma velha senhora que receitava poesias. 

Encantamentos

No primeiro dia de setembro de 2010 entrei na Livraria da Travessa, no Leblon, no momento em que o poeta Ferreira Gullar apresentava Em alguma parte alguma. As cadeiras estavam todas ocupadas. Havia dezenas de jovens sentados no chão. No momento em que me sentei, uma moça ergueu a mão:

- Para que serve a poesia?

Esta é uma daquelas questões que, cedo ou tarde, todos os poetas enfrentam. A resposta mais frequente, mais filha de imaginação e de verdade, assegura que a poesia não serve para nada. Alguns poetas, em especial os portugueses, acrescentam a seguir que também a vida não serve para nada, etc.
Felizmente, Ferreira Gullar tinha uma boa resposta. Muitos anos antes, exilado no Chile, durante o Governo de Salvador Allende, costumava almoçar, aos sábados, com um grupo de outros expatriados sul-americanos. Ao seu lado, sentava-se habitualmente um economista argentino, namorado de uma bela morena brasileira. O economista não tinha outro assunto que não fosse o da sua especialidade.

Até que um dia a morena o abandonou. No sábado seguinte o economista chegou triste e desmazelado. Sentou-se, e só falou de poesia. «Quando a morena vai embora», concluiu, triunfante, Ferreira Gullar, «a economia não serve para nada. Nenhuma ciência nos ajuda. Só a poesia nos pode salvar». Na origem, a poesia era uma disciplina da magia. Servia para encantar. Continua a ser assim, embora, no sentido literal, poucas pessoas ainda exercitem essa antiquíssima arte. Uma tarde, em Benguela, conheci uma das derradeiras praticantes. Almoçava com amigos, e amigos de amigos, num desses quintalões aniigos, carregados de frutos, e de boa sombra, da cidade das acácias rubras.

A determinada altura escutei um sujeito referir-se a uma tal Dona Aurora:

- A velha receita poesias.

- Recita - corrigi.

O homem, um oficial do exército, encarou-me, irritado:

- Não senhor! Receita! Dona Aurora receita poesias. Resolve problemas de amor, amarrações, mau-olhado, tudo com versinhos.

Fiquei interessado. Anotei o endereço da curandeira num guardanapo e na manhã seguinte bati-lhe à porta. Dona Aurora morava na Restinga, num casarão, em madeira, muito maltratado. A velha senhora, miúda, muito magra, vestia de cor de rosa. Toda a sua força parecia residir na cabeleira, a qual mantinha uma vigorosa rebeldia juvenil. Convidou-me a entrar. Móveis dos anos 50, muito gastos. Estantes carregadas de livros velhos. Aproximei-me. Poesia, e mais poesia: Florbela, Camões, Vinicus, José Régio, Sophia, Drummond, Manuel Bandeira, tudo misturado, num bem-aventurado desrespeito a fronteiras politicas, estéticas e ideológicas. «O meu marido sempre gostou de poesia», justificou-se: «Eu, menos. Foi só depois dele morrer, há 30 anos, que descobri o poder dos versos

Acontecera um pouco por acaso — contou. Uma tarde deu-se conta de que certos sonetos parnasianos (os mais trabalhosos) a ajudavam a vencer a insónia. Mais tarde, que João Cabral de Melo Neto, a partir de «O cão sem plumas», era muito eficaz no combate à cefaleia. Pouco a pouco foi desenvolvendo um método. Combatia a prisão de ventre lendo alto a Sagrada Esperança. Mantinha o quintal livre de ervas daninhas, percorrendo-o, ao crepúsculo, enquanto soprava devagar «O guardador de rebanhos».

Numa cidade pequena não tardou que tais excentricidades lhe trouxessem, primeiro inimigos, e depois devotos seguidores e pacientes. Hoje, ela recebe a todos, ricos e pobres, na sala onde me recebeu a mim. Ouve as suas queixas, levanta-se, percorre as estantes, e regressa com a solução. «Quem me procura mais são mulheres querendo reconquistar o coração dos maridos. Recomendo que lhes murmurem, enquanto dormem, algum Neruda, às vezes Camões, outras Bocage

Dona Aurora não aceita dinheiro pelos serviços prestados. «Não sou eu quem cura», explicou-me, «é a poesia». 

Igreja de Jesus em Setúbal

Hoje, uma ida a Setúbal, não programada, levou-me à Igreja de Jesus, com o convento ao lado, onde está instalado o Museu de Setúbal. Uma visita relâmpago. Estava apertado pelo tempo. Mas a visita ao Museu esteve quase para não acontecer. Difícil dar com ele. Funciona num edifício antigo, com entrada por um portão verde, como quem entra para um quintalejo. Tem 65 anos?. Não. Pois, então tem de pagar €1,50. Atenção, proibido tirar fotografias, mesmo com telemóvel. Muito bem. O Museu, que alberga diferentes núcleos, tem para mostrar, actualmente, apenas a Galeria de Pintura Quinhentista. Painéis que nos contam a vida da Virgem, presumível obra de Jorge Afonso, em que terão participado Cristóvão de Figueiredo e Gregório Lopes. Mas, o que de mais precioso lá se encontra é a Aparição de um Anjo a Santa Clara, Santa Inês e Santa Coleta, do ano de 1517, da autoria de Jorge Afonso. Um conjunto muito interessante para entender a pintura portuguesa de Quinhentos, para quem sabe da matéria...Mereceu atenção especial, ainda, uma cruz processional do século XV, de cristal de rocha e prata dourada, com um Cristo magnificamente modelado.

A Igreja de Jesus passa por ser o mais belo monumento da cidade. Uma igreja de estilo gótico, considerada como um dos primeiros exemplos do estilo manuelino. Foi desenhada, em 1494, pelo arquitecto Diogo Boitaca (o mesmo do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa), por voto de Justa Rodrigues Pereira, ama do rei D. Manuel I. Por fora, uma fachada simples e harmoniosa. Lá dentro, impressionam as colunas torsas feitas em brecha (uma pedra típica da Serra da Arrábida) que sustentam as abóbadas. No tecto nervuras espiraladas. Azulejos levantinos e mudéjares revestem o altar-mor e a cripta. Por último, um destaque para o portal, em brecha, e para o Cruzeiro erguido no largo fronteiro à Igreja.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Menino da sua mãe

(Quadro " O Menino da sua mãe" da autoria de Almada Negreiros - Pórtico de entrada da Faculdade de Letras de Lisboa)

O Menino da sua mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mão. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino da sua mãe.


Fernando Pessoa

terça-feira, 22 de maio de 2012

Revista Joaquim

O Prémio Camões 2012 foi concedido, ontem, ao escritor brasileiro Dalton Trevisan, ouvi eu, na televisão, pela boca do nosso Secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas.

Corri para o google para saber quem era este Dalton Trevisan, brasileiro, para mim, coitado, um ilustre desconhecido.

Dalton Jérson Trevisan, nascido em 1925, é um escritor famoso por seus livros de contos, especialmente O Vampiro de Curitiba (1965).

Parece que o homem é avesso a entrevistas e exposições em órgãos de comunicação social, criando uma atmosfera de mistério em torno de seu nome.

Liderou o grupo literário que publicou, entre 1946 e 1948, a revista Joaquim. O nome, segundo ele, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil".

Revista com o nome Joaquim? É mesmo nome de revista? Bem, desconhecia que eu era assim tão importante no Brasil. Por cá, só já nos restaurantes, pequeninos, comidos com arroz de grelos.

Como diria o nosso saudoso Fernando Pessa, e esta hein?  Obrigado, Dalton Trevisan.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Orca mágica e mítica


De repente, a Orca (a aldeia onde eu nasci) explodiu-me em literatura. Primeiro, foi a surpresa do livro O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro; agora, outro livro surpreendente Orca Terra, de Rosa Salvado Mesquita.

 “Orca mágica e mítica”, diz o Prof. Arnaldo Saraiva, no prefácio ao livro. Rosa Mesquita faz-nos regressar, de forma doce e bela, aos tempos primordiais da nossa infância. Um regresso ao universo da nossa aldeia (a casa dos nossos avós, os trabalhos do campo, as ruas a cheirar a queijo, as burras de tira água, os bolos de leite e o arroz doce, a Festa da Nossa Senhora de Oliveira, o fogo de artifício, o acordeonista Alziro, o Regato, a Intinha, o Olival, a recta do Barbado, a Feira de Setembro, o candeeiro a petróleo, a Fonte da Amoreira, o Gaiguei, a Fadagosa, o padre Morão (que foi lá colocado por falar muito de política), o santoro pelos Santos).

No tempo em que eu passava férias com os meus avós, eu era feliz e ninguém estava morto…

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Dois Amigos

Miguel Torga começou a escrever o seu Diário no dia 3 de Janeiro de 1932. Depois, foi uma longa caminhada diaristica, distribuídos por 16 livrinhos, da Editora Coimbra. Inconfundíveis. O último escrito aconteceu em 10 de Dezembro de 1993.
A morte de Fernando Pessoa, em 30 de Novembro de 1935, não passou despercebida a Miguel Torga. No dia 3 de Dezembro de 1935, Torga escreveu:
«Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era».

É verdade. No funeral de Pessoa não estiveram mais que 30 amigos. O génio veio depois. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta. Tal como ele dissera de Cesário Verde.

Já conhecia este texto de Torga, há muito tempo. O que eu não sabia era que Pessoa e Torga se relacionaram por carta. Pessoa tem com ele longas e acesas querelas, nas quais o chama sempre pelo seu nome verdadeiro de Adolfo (Correia da) Rocha. Pessoa terá aconselhado Torga em algum pormenor, não tendo este apreciado o gesto e respondido à letra. Em carta de 28/6/1930, dirigida a Gaspar Simões (curiosamente um amigo comum), Pessoa tenta explicar uma daquelas querelas:
«Recebi uma carta do Adolfo Rocha. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem áspera, nem é propriamente insolente, mas intima-me a explicar a minha carta anterior, diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a respeito do livro dele, explica, em diversos ângulos obtusos, que os intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou. Achei pois melhor não responder. Que diabo responderia? Em primeiro lugar é indecente aceitar intimações em matéria extrajudicial. Em segundo lugar, eu não pretendera entrar num concurso de opiniões interessantes. Em terceiro lugar, eu só poderia responder desdobrando em raciocínios as imagens de que, na minha pressa, o sr. engenheiro Álvaro de Campos se servira em meu nome. Desisti».

Querelas de pequena monta, que não causaram qualquer dano na amizade que se havia estabelecido entre os dois. Torga registou a morte do amigo, reconhecendo ser o nosso maior porta de hoje. Torga teve o mérito de ver o génio de Pessoa muito tempo antes dos outros.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro


Claro que eu, desde o primeiro segundo, não tive quaisquer dúvidas quanto ao nome da aldeia do concelho do Fundão, com nome de mamífero: ORCA. Nasci nesta aldeia no longínquo ano de 1947.

Li o livro de supetão, que está recheio de referências a locais que eu reconheci. A narrativa oscila entre o meio rural (a pequena aldeia com nome de mamífero) e a cidade (o autor fala em Queluz, mas o que está lá bem retratado é outra freguesia do concelho de Sintra, cujo nome tem o nome de um profeta). Agora é a minha vez de deixar aqui um enigma.

A leitura foi compulsiva, cheguei ao fim exausto. E sem respostas. A narrativa assenta numa história de três gerações. Simples. Porém, o autor, sabiamente, entrecruza a história principal com outras narrativas incompletas (porque morreu Celestino? Porque é que Duarte achava que o Índio viria a ser um grande artista? Porque é que o barbeiro Alcino tremia das mãos? etc...).

Mas a vida é assim mesmo, incompleta. Histórias dentro de histórias, como se fossem muitos livros num só.

O que me intriga é como João Ricardo Pedro, logo no primeiro romance, ousou escrever tão bem, com uma imaginação tão extraordinária. A leitura de "Metamorfose," de Kafka, ainda adolescente, deixou sequelas.

Que grande primeiro romance!!!

Apetece-me dizer como Saramago disse a Gonçalo M.Tavares. João Ricardo Pedro “não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 39 anos: dá vontade de lhe bater!

A Hora do Lanche


Li, não há ainda muito tempo, um texto de Eugénio de Andrade, no qual o poeta descreve uma visita que ele fez ao seu confrade Teixeira de Pascoaes, quando este se encontrava já muito doente. Eugénio de Andrade, além de escrever poesia de forma sublime, escreveu prosa igualmente bela.

Agora, veio-me parar às mãos um poema de Manuel António Pina, escrito no contexto de uma elegia dedicada aos cuidados prestados a Eugénio de Andrade no final da sua vida. Um poema triste, mas muito belo.

A Hora do Lanche

Na mão da Ana o iogurte não
iluminava, escurecia,
comunhão ajoelhada
no fundo do coração do dia

imemorial onde, desperto, ele dormia.
O movimento da colher embalava-o
como uma música que quase se ouvia
neste mundo ou como o colo que o adormecia.

A tarde declinava, as sombras,
como sombras, alongavam-se na almofada;
tudo fazia um sentido
literal e simples, onde não pode a poesia.


Se alguma coisa ficara
por dizer já não iria ser dita;
as palavras tinham-se sumido, transidas,
no interior da casa, o próprio silêncio emudecera.

Senhor, permite que adormeçamos
antes que feches a luz e desça
sobre nós a tua escuridão,
que os rebanhos estejam recolhidos
e os credores se tenham afastado da nossa porta,
mas que tenhamos pago as dívidas aos que nos serviram
e aos que nos amaram e aos que nos esperaram;
as tuas grandes mãos sustentarão o telhado e as paredes,
e moerão o grão e fermentarão o trigo,
apaga com as tuas mãos para sempre o rasto
da nossa vida
e que repousemos enfim
sem motivo para nos culparmos
por não termos sido felizes.


Foz do Douro, 26 de Janeiro de 2005
Manuel António Pina

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Conto "O Duende em Casa do Merceeiro"


Está patente, até 30 de Junho, a Exposição Hans Christian Andersen na Casa Roque Gameiro (uma parte), na Amadora.
A exposição pretende prestar homenagem a este escritor dinamarquês, bem como divulgar e contribuir para o conhecimento da sua obra, em áreas tão diversas como a literatura e as artes plásticas.
Entre os famosos contos de Andersen, destacam-se: O Patinho Feio, Os Sapatinhos Vermelhos, A Pequena Sereia, A Pequena Vendedora de Fósforos, O Duende em Casa do Merceeiro, O Soldadinho de Chumbo, dentre outros.
O meu Grupo de Leitura, que se reúne, quinzenalmente, na Casa Roque Gameiro, quis associar-se ao evento, contribuindo com alguns trabalhos para a exposição.
Na nossa reunião, de ontem, foi lido o seguinte conto:

O Duende em Casa do Merceeiro
«Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso, todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem.
Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno — e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia ter sido arrancada.
— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver interessado.
— Obrigado — respondeu o estudante. — Dê-mo em vez do queijo. Passo bem só com pão. É uma pena usar um livro destes para papel de embrulho! O senhor é muito boa pessoa e bastante prático, mas percebe tanto de poesia como aquela banheira ali ao canto.
Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira, mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio todo e vendia manteiga da melhor qualidade.
Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, excepto o estudante, estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objecto em que tocava ficasse capaz de exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.
Primeiro, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos à banheira onde se guardavam os jornais velhos.— É mesmo verdade que não percebes nada de poesia? — perguntou.
— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde banheira, comparada com o merceeiro.
Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus, que chinfrineira! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.
— Agora posso pôr o estudante no seu lugar! — exclamou o duende.
E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o estudante a ler o velho livro da loja.
Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções.
O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama — mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música, que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.
— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do género. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.
E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja, desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira.
Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da porta do sótão, parecia ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza — a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da árvore com o estudante! Mas era impossível.
Entretanto, contentava-se com o buraco da fechadura. Olhava através dele todas as noites, ali parado no patamar deserto, mesmo quando o vento do Outono começou a soprar pela clarabóia, fazendo-o quase morrer de frio. Mas ele nem o sentia até a luz se apagar no quartinho do sótão e a música se calar a pouco e pouco, ficando apenas o uivar do vento. Brr! Então, sentia como estava gelado e descia sem fazer barulho para o seu canto secreto da loja, quente e confortável. Em breve viria a tigela de papas de aveia do Natal, com o seu grande pedaço de manteiga. Sim, o merceeiro era a escolha certa.
Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-nocturno apitava: havia fogo, e toda a rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar pelo menos alguma coisa... O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita foi buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr buscar aquilo a que dava mais valor.
E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracitos. A coisa mais preciosa da casa estava salva!
Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro.
Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha era clara.
Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com mais calma, bem...
— Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas de aveia.
Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem com o merceeiro por causa das papas de aveia»

O conto, que do ponto de vista estilístico está muito longe de entusiasmar, apresenta, aqui e ali, curiosos ensinamentos (a cultura acima da barriga cheia, aproveitamento dos dotes disponíveis, falar um de cada vez, ouvir a opinião de todos, respeito pela opinião da maioria, a leitura ilumina, restituição do que não é nosso, salvar o mais importante em momentos de crise).
A figura do duende é a personagem principal do conto. O duende é o elemento surpresa na casa do merceeiro. Qual o papel dele? Um corruptor? Um moralista? Um politico? Um manipulador? Ou um ser imaginário que está ali para se comportar como um humano.
O duende comporta-se, desde o princípio, com muita ambiguidade. Hesita entre ficar com o estudante ou com o merceeiro. Por vezes, parece aproximar-se do estudante, fascinado pela luz que vem do velho livro de poesia, mas acaba por voltar para o merceeiro, por causa das papas.
Essa ambiguidade atinge o máximo quando é o duende, não o estudante, que salva o livro por ocasião do incêndio. O seu coração está dividido. Estudante? Merceeiro?. Não sou capaz de abandonar o merceeiro, por causa das papas, acaba ele por concluir. É absolutamente certo. Mesmo como um humano.

domingo, 6 de maio de 2012

Pequena aldeia com nome de mamífero


O romance 'O Teu Rosto será o Último', de João Ricardo Pedro, foi o primeiro romance de um autor português a conquistar o Prémio Leya.

Conta a história dos primeiros anos de vida de uma criança nascida nos tempos da Revolução de Abril.

Há curiosidade do autor, João Ricardo Pedro, ter escrito o seu primeiro romance numa altura em que ficou desempregado.

Hoje, ao folhear o livro na FNAC, dou conta que o autor coloca o início da narrativa numa «pequena aldeia com nome de mamífero, situada num sopé da Serra da Gardunha, voltado para Sul…».

Ora, esta pequena aldeia com nome de mamífero é, para mim, um sobressalto, um grande enigma. Alguém me ajuda? Eu tenho um palpite.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Na mão de Deus, na sua mão direita


A mulher de Miguel Esteves Cardoso foi operada no passado dia 2 a um tumor que se alojou no cérebro. Nesse dia,  na crónica que habitualmente escreve para o jornal “Público”, MEC colocava a sua Maria João nas mãos dos médicos e cirurgiões. Ontem, MEC confiou-a Deus, escrevendo-lhe uma carta: “Ajuda a Maria João, se puderes. Faz o que só um Deus pode fazer”. É uma carta ARREPIANTE.

Carta a Deus

Deus, Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo. Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz. Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais.

De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te. Quando inventaste o amor, esqueceste-te de que seria mais popular entre os seres humanos do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade. E, desculpa lá, de feitio. Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente amado, tens de aprender a ser um amor secundário. Sabemos que és Tu que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária.

Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos preocupamos mais com os entes amados do que contigo.

Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua significância. Que é tão grande.


Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público de 3 de Maio de 2012

Um Namoro Difícil

Para alguns estudiosos pessoanos (Teresa Rita Lopes, p.e.), Fernando Pessoa pensava mesmo em casar com Ophelia, ainda que nunca o diga explicitamente nas suas cartas. Mas devemos dizer que nem todos pensam assim. Questão controversa, discutindo-se muito a natureza deste namoro.

De todo o modo, para os que acham que Pessoa queria mesmo constituir um lar com a sua Ophelinha, um dos grandes problemas, a esse respeito, era evidentemente o económico. Então, sob o pseudónimo de A A Crosse, Pessoa intensificou as suas respostas a concursos ingleses de charadismo, esperando de uma vitória final a possibilidade de um grande prémio que tudo resolveria.
Um passo da carta de 22/03/1920 é perfeitamente claro a este respeito:
«Olha, Bébézinho ... Nas tuas promessas pede uma cousa que em tempos me pareceu duvidosa, por causa da minha fraca sorte, mas que agora me parece mais, muito mais possível. Pede que o snr. Crosse acerte no alvo de um dos prémios grandes — um dos prémios de mil libras a que concorreu. Não calculas a importância que para nós ambos teria se isso acontecesse!»

Pessoa teve o apoio da própria interessada, que rezou uma novena para Santa Helena e fez uma promessa ao Senhor dos Passos. «Não me esqueço do sr. Crosse», diz Ophelia numa carta; ou «são 11 horas, vou rezar pelo Sr. Crosse e vou-me deitar», diz ela noutra carta. Nem a santa, nem os suspiros casamenteiros, nem as novelas milagreiras, deram o resultado que Ophelia tanto ansiava. Estava escrito nas estrelas que o destino de Crosse era de perder. E o de Pessoa, também. Triste, triste, só Ophelia.

Palavras Cruzadas – Universo Fernando Pessoa

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HORIZONTAIS: 1- (…) Reis, heterónimo de Pessoa, educado num colégio de jesuítas, médico, latinista, que se expatriou para o Brasil em 1919 por ser monárquico; (…) Português, segunda parte do livro Mensagem, dedicada ao período áureo das navegações portuguesas. 2- Que tem olhos grandes; Prefixo latino que exprime a ideia de dois. 3- Aproxima-se; Forma reduzida de metropolitano. 4- Limpe; Bernardo (…), semi-heterónimo de FP, autor da célebre frase «A minha pátria é a língua portuguesa». 5- Reza; Puros [fig.]. 6- Símbolo de libra; Avenida [abrev.]. 7- Padre António (…), considerado, por Pessoa, o imperador da língua portuguesa; Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de ovo. 8- Alberto (…), heterónimo de Pessoa, natural de Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo; Fronteira. 9- Faz zirra-zirra; Pejo 10- Alcoólicos Anónimos [sigla]; Pessoa sentia apetência por questões esotéricas: (…), misticismo, gnosticismo, astrologia, etc… 11- Regimento de Sapadores Bombeiros [sigla]; Peça de vestuário de tecido leve para tronco e braços, geralmente com colarinho e botões à frente [pl.].

VERTICAIS: 1-Antigo e pequeno capote de mangas que se abotoava na frente [pl.]; Título do soberano da Rússia, no tempo do Império. 2- Tornar incomunicável como uma ilha; Apupas. 3- (…) de Pas, primeiro heterónimo de Pessoa, quando tinha 6 anos de idade. 4- Apogeu; Margem. 5- (ant.) República Democrática Alemã [sigla]; Raiva. 6- Nota musical; Sagrado; Aqui. 7- Pedra de amolar [pl.]; Programa Alimentar Mundial [sigla]. 8- Ceia abundante; Rubim. 9- Uma das fobias de Pessoa, tinha horror às (…). 10- Estabeleces; Força (alguém) a ter relações sexuais. 11- Curso natural de água que nasce, em geral, nas montanhas e vai desaguar ao mar…[pl.]; Gemeras [pop.].