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domingo, 22 de abril de 2018

A lagoa de "O Delfim"

O Delfim” foi escrito no fim do salazarismo, em período de guerra colonial, retrata o universo da família Palma Bravo na Gafeira. Uma localidade provinciana, conservadora, características que poderiam ser atribuídas a parte da sociedade portuguesa de época. 

Para quem conheceu JCP, como FJV, o livro fala-nos sobre Portugal, sobre a sua noção de Portugal, sobre o provincionismo português, da pulhice portuguesa, da maldicência, da maldade, do lado abjecto de Portugal que ele criticava. Estamos assim perante um retrato cáustico de uma sociedade em que é possível encontrar homens como o engenheiro Tomás Palma Bravo (o Infante), profundamente machista, racista, e incapaz de aceitar qualquer mudança. Estamos na década de sessenta, um período de grandes alterações em Portugal e de dúvidas sobre o futuro de um regime político que dava todos os sinais de declínio. 

O narrador, papel desempenhado pelo escritor que visita a Gafeira, é uma figura central de “O Delfim”, pois por ele passa não só a recolha da informação sobre os acontecimentos funestos ali ocorridos como a sua interpretação. Num período em que a censura intervém de forma activa, Cardoso Pires não deixa de abordar temas tabu do Portugal da época, como a homossexualidade, a traição e até o incesto (para alguns). 

Pode-se dizer que "O Delfim", o livro, retrata um certo Portugal, que tem uma galeria quase ideal desses tipos, começando pelo próprio Delfim,o Infante, o Engenheiro, uma espécie de marialva. 


O Espaço 

O Delfim” situa a acção na Gafeira (nome com reminiscência de gafaria, terra de leprosos), uma terra imaginária a centena e meia de quilómetros de Lisboa, onde ocorrem duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade a um escritor amigo da família Palma Bravo. Perto da terra está a mítica Lagoa, que também não existe, assim descrita: 

«Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo» – 

É na lagoa que tudo começa e tudo termina. A Lagoa é, de certa forma, o centro de todo o romance. É a fronteira entre a opressão e a liberdade, «agora quem quiser caçar na lagoa já não precisa da autorização do Infante para nada» - 


O narrador 

É muito interessante, porque ele começa "O Delfim" com «Cá estou». E depois, logo a seguir, vem dizer «Já temos o autor instalado». Na opinião do escritor Mário de Carvalho, esta separação narrador/autor "põe desde logo o problema: quem é que está falar? O autor, o autor que vai proceder ao inquérito, que vai interrogando, vai anotando o que lhe é dito por várias personagens, mas, ao mesmo tempo, há também um narrador que aprecia o próprio comportamento do autor e que, além disso, faz vários comentários e que se dirige ao próprio leitor e que se dirige às próprias personagens e que as apostrofa, as afronta. Portanto de vez em quando, e às vezes no mesmo parágrafo, nós temos, digamos, todos estes níveis de intervenção da escrita do JCP exemplificados". 


O tempo

Há um tempo histórico. Para o historiador Fernando Rosas "são os anos da Revolução Cultural na China, o maoismo, tudo aquilo que aqui chegava como notícia disso, São os anos da Guerra do Vietnam que mobiliza as consciências aqui e do mundo inteiro e vão ser os anos da revolta estudantil em Itália, na Alemanha e, finalmente, em França, com o Maio de 68. São anos, do ponto de vista cultural, politico, social, de uma importância enorme que, ainda por cima, em Portugal se associam à morte política de Salazar." Estamos a falar do tempo de resistência ao salazarismo, dum Portugal cinzento, a preto e branco, mas mais cinzento que preto e branco, um Portugal muito oprimido, muito abafado, onde não se respira bem. 


O narrador regressa à Gafeira, a pretexto da caça, e começa a investigar um possível crime, enquanto recorda as conversas nascidas de uma amizade, nunca esclarecida, com o Delfim. Tomás Manuel da Palma Bravo e mulher, Maria das Mercês, o criado Domingos. Todos desapareceram envoltos em enigmas de nevoeiro e fumos que perpassam todo o romance e assombram sobretudo a lagoa, propriedade exclusiva de o Delfim. Engenheiro, princípe predestinado, cujo usufruto de abundâncias e privilégios chegou por fim aos habitantes da aldeia, agora que Tomás já não mora aqui. 

O narrador regressa à Gafeira no dia 31 de Outubro de 1967, ao início da tarde, justamente 365 dias depois de lá ter estado pela primeira vez. E aqui temos dois tempos de narração: um, com duração de menos de um dia, que vai do meio dia (mais ou menos) do último dia do mês de Outubro de 1967 até à alvorada do dia seguinte; o segundo, com a duração justamente do ano antecedente, em que ele relata factos ocorridos neste lapso de tempo, de que vai tendo notícia mas com versões distintas. "Sinto-me alvoroçado com este regresso à Gafeira. Um ano vivido assim, numa tarde, desorienta"



As Personagens 

O Delfim 

O Delfim, o nome, ou cognome, uma aparente contradição entre o próprio título, que é muito irónico, que é o Delfim, no sentido de príncipe, e, depois, é um príncipe que é um ser podre por dentro. Uma aparência radiosa por fora, mas a apodrecer por dentro. É o retrato de uma pessoa que é um país. 

É sem dúvida a figura principal do romance. O Delfim é uma espécie de latifundiário, parasita, o playboy, que tem o seu automóvel de marca e que é riquíssimo, que era de certo modo é o sustentáculo desse tipo de gente e de escória social rica, era de certo modo o sustentáculo do regime e dos que o Regime também apoiava, especialmente, enfim, mentendo os trabalhadores reprimidos. Curiosamente, o autor tem um fascínio especial e muito desprezo, simultâneamente, por mais contraditório que isto pareça. 


Maria da Mercês 

Embora esposa do Delfim, não se vê reconhecida no seu estatuto de parceira do prazer. Está só, enquanto o marido vagabundeia por bares e prostitutas. Este, o Engenheiro Tomás Manuel, tem uma ideia, diria original, sobre a sexualidade conjugal «tu sabes a razão por que nenhum homem deve fornicar a mulher legítima?». E acontece ainda que é sobre Maria das Mercês que recai o estigma de mulher maninha, de mulher inabitável. «Donde vem o mal que impede os frutos?». Não há provas, mas é ela que carrega essa punição pública. Acresce que ela vive intrigada pelas relações demasiado próximas entre o marido e o criado Domingos, «esse corpo intocável para todos excepto para o seu amo», essa estranha «aliança que a torturava». E ainda a atitude marialva do Delfim em relação às mulheres, «para a cabra e para a mulher, corda curta é que se quer». E, por fim, para complicar mais ainda esta trama, uma possível interpretação de grande cumplicidade entre a Maria das Mercês e o criado Domingos, que acaba num ralacionamento amoroso (aconteceu?), o que leva alguns analistas, como EPC, a falar de incesto! Como morreu Maria das Mercês? O narrador nada nos diz, deixa-nos com as várias versões que ouviu. 


Domingos 

É o criado dos Palma Bravo. Gastara a infância nos cais do Mindelo, «conduzindo marinheiros americanos com a sua voz branda e amável» diz-nos o autor de forma sibilina. O engenheiro reconstruiu-o «peça por peça, depois de o ter arrancado a uma guilhotina da fábrica, sem um braço». Uma disciplina rígida assente num lema: «vinho por medida, rédea curta e porrada na garoupa». Por sua vez, a patroa, a Maria das Mercês impunhava-lhe trabalhos escolares que ele no final do dia apresentava à mestra para correcção. Domingos acompanhava o patrão, o Engenheiro, nas investidas aos bares do Cais do Sodré, em Lisboa. Mas estas noitadas cansavam o mestiço. Regressava a casa destruído e humilhado. «Levo-o a Lisboa, deixo-o à vontade, dou-lhe dinheironada». Conta o Engenheiro à mulher. E num desabafo «Só me faltava esta, ter um criado…». Quem matou o Domingos? Como morreu o criado Domingos? 


Há ainda uma plêiade de personagens secundários, a que chamaria, com mais propriedade ,personagens-testemunhas (a estalajadeira, o cauteleiro, o padre novo, o batedor, o regedor,…) que são o porta-vozes das várias versões dos acontecimentos ocorridos no último ano, sobretudo as duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade de todos, em particular do nosso visitante escritor. Deliciosa esta síntese na boca do cauteleiro, que o escritor ouviu e registou naquela manhã que chegou a 1ª vez à aldeia: ”Lá vai ele, o engenheiro, Palma Bravo, o Infante, dono da Lagoa, o nosso Dono, com a gaja, o preto e o cão. Filho da Puta!». 


Censura 

A questão, ou a dúvida, que se coloca é: como pôde um romance, que é um retrato cáustico de uma sociedade anémica e de um regime em declínio, ser capaz de singrar quando, para a democracia, faltavam ainda anos e o 25 de Abril não passava de uma utopia? Certo que já não existia a censura prévia, mas, manter-se no mercado e receber os louvores da crírica estrangeira, ser reeditado! Para Fernando Rosas, « os censores também se enganavam, os censores eram homens militares, eram homens pouco cultos, eram burocratas da repressão, e, portanto, eles próprios, por vezes, avaliavam a perigosidade das obras em função do que era mais explícito e do que elas apelavam de uma forma mais directa e explicita, isso tornava-os culturalmente insensíveis a outras obras que, na realidade, representavam perigos para o Regime muito mais substanciais que eles, de imediato, não se apercebiam». 


Crime? Quem matou quem? 

O narrador, investido no mistério, ouve várias versões para o mesmo alegado crime. Maria, como virgem estéril, Maria das Mercês, à mercê do todo poderoso marido, foi encontrada morta. É praticamente a única certeza absoluta, encontrada morta na Lagoa. Agora como morreu, porque morreu, disso o autor, caçador, ouvirá as mais variadas teorias: do cauteleiro, da dona da pensão, do padre, do regedor, dos batedores, enfim…que a esposa do senhor matou o aleijado Domingos, por ciúmes da relação deste com o marido e se matou em seguida, que o engenheiro a apanhou na cama com o pobre criado e a ambos castigou com um fim prematuro, que isto, que aquilo, que sim, que não. 


Um romance policial? 

O livro é todo ele uma trama extremamente complexa, que, podemos dizer, JCP executou como no cinema, para além de haver uma sinopse, ideia geral e tudo o mais, se vai acompanhando, sequência a sequência, plano a plano, e depois na montagem que, realmente, o cinema aparece como cinema, como arte narrativa. Nesse aspecto, na opinião de Maria Lúcia Lepecki, professora e crítica literária, «O Delfim é um modelo que provavelmente não se conhece outro na literatura portuguesa, de montagem, neste caso romanesca, mas que tem grandes similitudes com a montagem cinematográfica. Este é um livro feito muito com montagens, vem narrando determinada sequência, passada num determinado lugar, numa determinada época, corta, na página até aparece um pedacinho em branco, e muda de assunto. É como no cinema, corta/cola, corta/cola. E a realidade vai-nos chegando muitifacetada como na realidade ela é» 


A escrita 

Acresce que JCP é um escritor, além de ser realista, é muito anglo-saxónico, escrita enxuta, como os ingleses e mais ainda como os americanos. 

Para Maria Lucia Lepecki, «Ele pega a Língua Portuguesa e trata-a com cuidados de ourives. É acusado, e parece, que ele escreve sem adjectivos? Dizer que ele escreve sem adjectivos, não é verdade, ele escreve com adjectivos como todo o mundo, o que acontece é que ele sabe onde os colocar, “escondidinhos” que até parece ao leitor não dar conta deles. Então a utilização da lingua portuguesa que ele faz é uma utilização subtil, discreta, muito clássica, muito contida, extremamente amorosa. Ele trata a LP como se fosse uma amante.». 


O Delfim fala-nos do futuro? 

De certo modo, JCP é premonitório, quase diria, porque há ali uma rutpura (tudo mudou na Gafeira), que acaba em festa, antecipando uns anos o advento da democracia. Mas, ao mesmo tempo, noto uma certa contradição na atitude final do narrador: por um lado, ele está contente, ele desiste da caça (principal motivo do seu regresso àquela terra) para se associar à festa dos camponeses-operários ("ao arraial não falto, custe o que custar"); por outro, parece estar anestesiado (espera o sono. O sono. Sono...).

(texto apresentado ao Grupo de Leitura da casa Roque Gameiro, Amadora, no dia 19 de Abril de 2018)

sábado, 21 de abril de 2018

Devaneios cruzadísticos │José Cardoso Pires

"Palma Bravo" é o nome da personagem principal do romance "O Delfim" do escritor português José Cardoso Pires, pedido com a resolução do passatempo referente ao mês de Abril de 2018.


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Recebi respostas de: Aleme; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita; Baby; Caba; Corsário; Dupla Algarvia (Anjerod e Mister Miguel); El-Nunes; Fernando Semana; Filomena Alves; Fumega; Gilda Marques; Homotaganus; Horácio; Jani; João Bentes; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Lulopes; Mafirevi; Magno; Magriço; Manuel Amaro, Manuel Carrancha; Maria de Lurdes; My Lord; Neneiva; Olidino; Osair Kiesling; Paulo Freixinho; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva, Seven, Socrispim, Somar e Virgílio Atalaya.

A todos obrigado. Até ao próximo!

domingo, 15 de abril de 2018

O Delfim, o engenheiro Palma Bravo

Fonte: RTP │Série “Grandes Livros” – "O Delfim", de José Cardoso Pires

Escrita no fim do salazarismo, em período de guerra colonial, esta obra retrata o universo da família Palma Bravo na Gafeira. Uma localidade provinciana, conservadora, características que poderiam ser atribuídas a parte da sociedade portuguesa de época. 

Este foi o terceiro trabalho publicado por José Cardoso Pires, após “O Anjo Ancorado” e “O Hóspede de Job”. Considerado um dos melhores livros da literatura portuguesa do século vinte, “O Delfim” situa a ação na Gafeira, uma terra imaginária a centena e meia de quilómetros de Lisboa, onde ocorrem duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade a um escritor amigo da família Palma Basto. 

Com uma escrita realista, o autor faz um retrato cáustico de uma sociedade em que é possível encontrar homens como o engenheiro Tomás Palma Bravo (o Infante), profundamente machista, racista, e incapaz de aceitar qualquer mudança. Estamos na década de sessenta, um período de grandes alterações em Portugal e de dúvidas sobre o futuro de um regime político que dava todos os sinais de podridão (Salazar deixaria o poder em Setembro deste ano, 1968). 

O narrador, papel desempenhado pelo escritor que visita a Gafeira, é uma figura central de “O Delfim”, pois por ele passa não só a recolha da informação sobre os acontecimentos funestos ali ocorridos como a sua interpretação. Num período em que a censura intervém de forma ativa, Cardoso Pires não deixa de abordar temas tabu do Portugal da época, como a homossexualidade, a traição e o incesto. 



Citando o livro: “O pior de se estar morto é que se fica à mercê dos vivos, dos donos dos mortos”. 

Vóz: Em 1968, enquanto salazar morria, JCP lançava "O Delfim" e ajudava a escrever a nossa história. Por falar em história, esta história parece-lhe familiar? E foram felizes para sempre. Não, não se trata de um conto de fadas. Nunca teve esta sensação de final feliz ao terminar de ler um manual escolar dedicado à HP? A longa noite fascista, passada a correr numa dúzia de páginas e aquele final suspenso no tempo, a manhã dos cravos e da liberdade, em apenas meia dúzia de linhas? Mas o que partilham afinal um mero Manual de História e um romance sublime? E porque nos detemos a poucos metros de um edificio, antigamente tétrico, onde os fantasmas do passado se preparam para conviver com os endinheirados do presente? 

Às vezes penso que o leitor ideal é uma construção de nós mesmos diante do espelho. Escrever é um movimento constante de destruição e recriação. Nada se cria sem destruir e nada se exalta sem agredir”. Disse JCP. 

Citando o livro: «Cá estou, precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Manuel Tomás da Palma Bravo, o Engenheiro.» pp 27 

Vóz: Faz hoje um ano. De que época falamos? Que tempo histórico era esse? 

Fernando Rosas: São os anos da Revolução Cultural na China, o maoismo, tudo aquilo que aqui chegava como notícia disso, são os anos do Vietnam e da Guerra do Vietnam que mobilizam as consciências aqui e do mundo inteiro e vão ser os anos da revolta estudantil em Itália, na Alemanha e, finalmente, em França, com o Maio de 68. São anos, do ponto de vista cultural, politico, social, de uma importância enorme que, ainda por cima, em Portugal se associam à morte política de Salazar. 

Clara Ferreira Alves: Estamos a falar do tempo de resistência ao salazarismo, num Portugal cinzento, um bocadinho a preto e branco, mas mais cinzento que preto e branco, um Portugal muito oprimido, muito abafado, onde não se respira bem, em que ele descreveu certos tipos, certas personagens, com a mesma precisão com que Eça de Queiróz descreveu um certo Portugal do sec. XIX, ou finais do século XIX, disso não tenho a menor dúvida, eu diria que o retrato de um certo Portugal, no tempo de Salazar, está perfeito, no sentido em que usei a perfeição que está em JCP e está seguramente em "O Delfim", que tem uma galeria quase ideal desses tipos, começando pelo próprio Delfim, claro. Um tipo de marialva que é o Delfim. 

Inês Pedrosa: Portanto, achei graça à contradição, ou aparente contradição, a aparente contradição entre o próprio título, que é muito irónico, que é o Delfim, no sentido do príncipe, e, depois, é um príncipe que é um ser podre por dentro, uma aparência radiosa por fora, a apodrecer por dentro. É o retrato de uma pessoa que é um país. 

Abade Agostinho Saraiva (no livro que escreveu no sec. XIX): «desta terra da Gafeira quis a Providência fazer exemplo de castigo. Porque sendo dotada de águas boas na cura das feridas malignas e de abundante e saboroso pescado, não a redimiu o Senhor com a vara de sua Altísima Clemência, a qual tem duas pontas, e são a do castigo do século e a do arrependimento cristão» - pp 32. 

Maria Lúcia Lepecki: "O Delfim" é um dos livros mais fascinantes da literatura portuguesa, não só do sec XX, como, no meu entender, de todos os tempos. 

Júlio Pomar: É uma evocação do que se poderia ter passado, quase que uma narrativa jornalística, não há elucubrações, os personagens não são nem elogiados, nem denegridos, é o espectador que os vê erguerem-se e entrarem em acção, isso me parece a mim. Está ali tudo em embrião, o que viria, diria, a ter uma expressão mais visível, para evitar a palavra violento, após essa data. 

Fenando Rosas: O que isso quer dizer é que o regime ainda tinha alguns corpos dessa gente para fazer a guerra, mas tinha perdido as almas. 

Vóz: Trata, então, "O Delfim" da aterradora calma antes da tempestade, dos estranhos acontecimentos da aldeia da Gafeira, sítio fictício, de nome reminiscente da lepra, desde um ano antes quando por lá reinou o último na linhagem dos Palma Bravo. O narrador regressa então, a pretexto da caça, e começa a investigar um possível crime, enquanto recorda as conversas nascidas de uma amizade, nunca esclarecida, com o Delfim, Tomás Manuel da Palma Bravo e a mulher, Maria das Mercês, o criado Domingos, todos desapareceram envoltos em enigmas de plumas e nevoeiro, fumos que perpassam todo o romance e assombram sobretudo a lagoa, propriedade exclusiva de o Delfim. Engenheiro, princípe predestinado, cujo usufruto de abundâncias e privilégios chegou por fim aos habitantes da aldeia, agora que Tomás já não mora aqui. 

Maria Lucia Lepecki: Tive dificuldade de compreender o livro, eu sabia que aquilo era muito interessante, eu sentia que aquilo era muito interessante. De seguida, não sabia porquê, havia um conjunto de coisas que me escapavam, porque eu estudava literatura portuguesa e estudava História de Portugal, naturalmente aquelas coisas todas, mas uma coisa é estudar nos livros outra coisa você ver o lugar, que é outra coisa completamente diferente. 

Lá vai ele, o engenheiro, Palma Bravo, o Infante, dono da Lagoa, o nosso Dono, com a gaja, o preto e o cão. Filho da Puta!», fala o cauteleiro. 

Maria Lucia Lepecki: E o que é que ele me mostrava de um modo muito especial? O que me impressionou muito foi: ele mostrava um país quase que de castas, a diferença entre as classes sociais aqui era tão grande para mim, que era brasileira, que se mostrava por exemplo nos modos de tratamento na vida quotidiana, coisa que eu nunca tinha visto no Brasil, eu aqui aprendi, aqui em 68-69, p.e. uma porteira seria a senhora Maria, uma senhora não formada mas de uma certa burguesia seria Senhora Dona e a outra a Senhora Doutora e a outra Senhora Professora, e a terceira não sei quê.. 

Mário de Carvalho: A figura principal do Delfim - a tal figura pela qual, eu penso, o Cardoso Pires tem fascínio e muito desprezo, simultâneamente, por mais contraditório que isto seja - é uma espécie de latifundiário, parasita, o playboy, que tem o seu automóvel de marca e que é riquíssimo, que era de certo modo é o sustentáculo desse tipo de gente e de escória social rica, era de certo modo o sustentáculo do regime e dos que o Regime também apoiava, especialmente, enfim, mentendo os trabalhadores reprimidos. 

Vóz: Esperem, então como pode um romance destes singrar quando, para a democracia, faltavam ainda anos e o 25 de Abril não passava de uma utopia? Certo que já não existia a censura prévia, mas, manter-se no mercado e receber os louvores da crírica estrangeira, ser reeditado? 

Fernando Rosas: Mas os censores também se enganavam, os censores eram militares, eram homens pouco cultos, eram burocratas da repressão, e, portanto, eles próprios, por vezes, avaliavam a perigosidade das obras em função do que era mais explícito e do que elas apelavam de uma forma mais directa e explicita, isso tornava-os culturalmente insensíveis a outras obras que, na realidade, representavam perigos para o Regime muito mais substanciais que eles, de imediato, não se apercebiam. 

Francisco José Viegas: Eu acho que "O Delfim" é o grande livro de JCP, eu acho que é uma obra-prima, eu suponho que ele tinha uma relação muito intensa com o livro, com aquelas personagens, porque tudo aquilo que JCP, mesmo nos seus anos mais finais, se quisermos, tudo aquilo que ele falava sobre Portugal, sobre a sua noção de Portugal, sobre o provincionismo português, da pulhice portuguesa, da maldicência, da maldade, do lado abjecto de Portugal que ele criticava, que ele anotava também, penso que isso já é uma marca de "O Delfim". 

«O homem que ama a sua mulher, poupa-a» palavras de Palma Bravo – pp 95 

Vóz: O narrador, investido no mistério, ouve várias versões para o mesmo alegado crime. Maria, como virgem estéril, das Mercês, à mercê do todo poderoso marido, foi encontrada morta. É praticamente a única certeza absoluta, encontrada morta na Lagoa. Agora como morreu, porque morreu, disso o autor, caçador, ouvirá as mais variadas teorias: do cauteleiro, da dona da pensão, do padre, do regedor, dos batedores, enfim…que a esposa do senhor matou o aleijado Domingos, por ciúmes da relação deste com o marido e se matou em seguida, que o engenheiro a apanhou na cama com o pobre criado e a ambos castigou com um fim prematuro, que isto, que aquilo, que sim, que não, há até uma alusão ao possível cariz homossexual da relação entre Tomás Manuel e o seu maneta mestiço para todo o serviço. A verdade que existe é diferente consoante a boca que a exclama. O povo, agora livre enfim para usufruir da Lagoa, julga o Delfim em Africa, julga-o em Lisboa, julga-o morto. Apenas não duvida dos fantasmas. Há menções assustadas a uns cães negros, prenúncios de morte, que ensombram a aldeia. À fantasmagórica matilha não falta até um cão sem uma pata, encarnação de Domingos, o criado deficiente. Há no povo, simultaneamente, alegria e temor. Sim, temor ainda, embora na outrora omnipotente Casa da Lagoa nenhum corpo respire já e Tomás Manuel da Palma Bravo não mais a governe orgulhosamente só. 

«Se um dia fizer testamento, é na Lagoa que quero ser enterrado….É muito mais decente ficar na Lagoa do que numa cova cheia de bichos». Diz Palma Bravo – pp 60 

«Tomás, você hoje está insuportável» - diz Maria das Mercês . – pp 60. 

«Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chegar» - palavras de Palma Bravo – pp 61. 

Maria Lucia Lepecki: Eu posso responder que "O Delfim" fala de um crime que aconteceu em determinado lugar, "O Delfim" fala da mentalidade portuguesa, "O Delfim" fala do fascismo português, etc…e não estarei errada, estarei certa… mas há uma primeira coisa de que "O Delfim" seguramente fala: é que era talvez a primeira intenção de JCP, "O Delfim" fala sobre a escrita, o que é que é a escrita? O que é escrever? 

Mário de Carvalho: É muito interessante, porque ele começa "O Delfim " com “Cá estou”. E depois, logo a seguir, vem dizer “Já temos o autor instalado”. O que nos põe desde logo o problema: quem é que está falar? O autor, o autor que vai proceder ao inquérito, que vai interrogando, vai anotando o que lhe é dito por várias personagens, mas, ao mesmo tempo, há também um narrador que aprecia o próprio comportamento do autor e que, além disso, faz vários comentários e que se dirige ao próprio leitor e que se dirige às próprias personagens e que apostrofa as personagens portanto de vez em quando, e às vezes no mesmo parágrafo nós temos, digamos, todos estes níveis de intervenção da escrita do JCP exemplificados. 

Vitor Silva Tavares: O eu, o eu, é a primeira vez que aparece é em "O Delfim" e esse eu não é o eu confessional, não é o eu umbilical do JCP, é o eu autor, é o eu narrador, mas é um eu. 

Citando o livro: «Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo» – pp 99. 

Francisco José Viegas: De facto, como personagens, o engenheiro e a mulher dele, eram fantásticos e aquilo pareceu-me sempre, já nessa altura, tinha 17 anos, parecia-me a configuração de um país em ruínas, isso foi a imagem que tive sempre de "O Delfim", mesmo mais tarde, agora que passaram 10 anos sobre a morte de JCP e foi necessário ler um pouco "O Delfim", reler esta obra, não desapareceu essa imagem, a imagem de um retrato cheio de neblinas, aquelas neblinas da Lagoa, para mim a Lagoa é o centro de todo o romance. 

Vitor Silva Tavares: O JCP não falava nunca, mesmo às pessoas mais próximas, quero crer, dos seus projectos ou, pelo menos, daquilo que estava fazendo ou escrevendo, nunca se espraiava em confessionalismos de autor, digamos assim. No entanto, recordo que, uma vez, uma tarde, em casa dele, no seu escritório, ele me mostrou na parede todo um painel, um organigrama, algo complexo, a cores, onde lá estavam definidos as várias personagens, os vários tempos, e os vários lugares onde ia decorrer toda a acção de "O Delfim". Uma trama extremamente complexa e que ele estava portanto executando como no cinema, para além de haver uma sinopse, ideia geral e tudo o mais, se vai acompanhando, sequência a sequência, plano a plano, e depois na montagem que, realmente, o cinema aparece como cinema, como arte narrativa. Nesse aspecto, "O Delfim" é um modelo que não conheço outro na literatura portuguesa, de montagem, neste caso romanesca, mas que tem grandes similitudes com a montagem cinematográfica. 

Maria Lucia Lepecki: Este é um livro feito muito com montagens, vem narrando determinada sequência, passada num determinado lugar, numa determinada época, corta, na página até aparece um pedacinho em branco, e muda de assunto. É como no cinema, corta/cola, corta/cola. E a realidade vai-nos chegando muitifacetada como na realidade ela é. 

Vóz: Montagem cinematográfica? Uma lagoa de enigmáticos significados, um possível crime de contornos misteriosos e um narrador, escritor, detective, mas estamos num romance português ou num filme policial? 

Francisco José Viegas: O papel do narrador, quando chega à vila, ali ao pé da lagoa, para contar a história do Delfim, ele é o detective, ele vai constituir esse puzle. Nessa medida, é completamente policial, ele tinha um grande fascínio pelo romance policial, pelos policiais americanos, pela literatura americana, como nós sabemos. 

Inês Pedrosa: E temos uma capacidade de fazer intervir o ensaio no meio do romance muito forte, aliás, para o realista que é o JCP, que é um escritor, digamos, além de ser realista é muito anglo-saxónico, muito da escrita enxuta, dos ingleses e mais ainda dos americanos. 

Maria Lucia Lepecki: A lagoa é nossa e agora quem vende os direitos de caçar na lagoa somos nós, nós os camponeses-operários e não o latifundiário anterior. Então eles fazem um banquete, para comemorar aquela vitória. É um banquete muito engraçado. É um banquete de enguias grelhadas, lá do canto da lagoa, está vindo uma fumarada. A enguia, quando grelha, sai aquele óleo, sai aquela fumaça, muito fumo, muito cheiro.Na direcção da casa do engenheiro vem vindo aquele fumo, aquele cheiro, e o engenheiro está lá, com o seu amigo escritor, e aquele cheiro começa a chegar e a incomodar e aí o escritor refere muitas vezes o cheiro das enguias, o fumo que vem da lagoa, o fumo que está incomodando, este fumo é sinal dum tempo novo, o tempo em que os explorados conseguem chegar a cima e ter qualquer coisa deles e mandar na sua própria vida, é como se fosse um D. Sebastião colectivo chegando. 

Francisco José Viegas: A literatura portuguesa tem uma tentação teatral, dos diálogos, teatral e melodramática, e excessivamente literária, barroca até, no caso do JCP ele sacode essa espécie de poeira, ele sacode esse lixo. Aquilo que temos é o osso, mas é o osso elevado a uma perfeição de mármore. 

«Abre lá a boca, filha. Como te chamas?»  -  «Lurdes, Sr. Infante» - «Que lindo nome. Muito apropriado. Então, Lulu, toma lá 500 dele para levares o rapaz lá a cima para lhe escovares o pêlo, bem escovado, bem escovadinho» – «Será um prazer» – «Então, estão à espera de que? Serviço é serviço. Vamos embora» – «Não tenhas medo, sou boazinha» – «ouve lá, ó Lurdes, não mo estragues. Ele é meu» do filme realizado por Fernando Lopes. 

Francisco José Viegas: Ele libertou a literatura portuguesa de uma sonolência e de uma grandiloquência que eram muito prejudiciais à leitura e que mostravam a literatura portuguesa como uma espécie de teatro radiofónico. 

Maria Lucia Lepecki: Aquela personagem que é o escritor, tentando saber o que aconteceu lá naquela aldeia, na Gafeira, conversa com pessoas e escuta a versão de cada um. Aconteceu isto, aconteceu aquilo…juntando palavras orais e palavras escritas, ele faz aquela história que vocês lêem e que tem que ser lida, e nisto prestem atenção naquilo que eu vou dizer agora, tem que ser lida devagar. "O Delfim" não é feito para sair correndo, cavaleirando, lendo página atrás de página, para chegar depressa ao final da história. Não é assim, é para ler devagar, porque é a história de alguém que está procurando os factos, ele está investigando, então ele está a escrever devagar. 

«Cada novo texto sobre O Delfim é mais um círculo numa espiral de linhas que apenas nos dão, no dizer de Conrad, “a imagem do caos cósmico”. Estamos aqui muito longe de uma versão linear da história. Mas estamos mais perto (e esperemos que o círculo dos futuros leitores não nos desminta) do coração das trevas – isto é, da literatura. Ou, se preferirem, da Lagoa de O Delfim”» - Eduardo Prado Coelho, em “O Círculo dos Círculos” – Ensaios sobre "O Delfim"» - pp 22. 

Vóz: Temos então um romance de tempo suspenso, entre as memórias do ano passado e o mistério que agora decorre, entre um caçador que toma notas em vez de caçar e um Delfim prestes a perder o castelo. Uma crítica feroz do saudosismo português e, simultâneamente, um crime que busca de resolução. 

Citando o livro: «Crime, pronuncia o dente inquisidor; e sente-se que dentro do Velho se tinha levantado uma alegria mansa. A vitória do profissional de novidades que gosta de chegar primeiro. E, no momento inesperado, com a revelação que deslumbra o visitante.» - pp39. 

Vóz: Temos a guerra conjugal entre o marialva sem herdeiro e uma mulher cuja sensualidade é satisfeita ou montando a cavalo ou masturbando-se. E a guerra entre o senhor feudal e os populares oprimidos que desejariam também caçar e pescar na lagoa. Temos um presente de fantasmas e um passado recente onde já se prenunciava o seu fim. Os fumos recorrentes sobre a lagoa que, num momento, tanto podem assustar o Delfim como, noutro, encobrir a verdade dos factos sobre a morte de Maria das Mercês. 

Citando o livro: «O abade sabia muito molhar a pena sem carregar muito nas tintas e, se fez elogios aos Palma Bravo, foi suficientemente cauteloso para não se chegar demasiadamente à Lagoa. Ai não, que não foi, até porque a lagoa queima, não é assim, a lagoa queima…a lagoa queima…onde ouvi eu isto?»– pp 46. 

Vóz: Uma história que avança devagar entre metáforas e ruínas circulares, como a lagoa. E temos finalmente o romancista corajoso que revolucionou a literatura portuguesa com discurso directo, com influência saxónica e norte-americana. Contudo, perguntamos então: seria a investigação do crime realmente necessária? 

Francisco José Viegas: JCP dizia, e tinha toda a razão, eu cito sempre essa frase: toda a literatura era policial, em última análise, porque toda a literatura se serve afinal daquilo que é essencial no romance policial que é a busca, a investigação, o mistério, a procura, a resolução de um problema. Obviamente que o próprio JCP dizia que ele era o autor de um crime perfeito, a personagem que morre por esgotamento sexual, que morre no coito, é a única forma de matar alguém sem deixar a marca do crime. A marca do crime dilui-se. A marca do crime dilui-se no prazer. É um conselho que se dá a qualquer assassina com imaginação. 

Inês Pedrosa: Temos, portanto, aquele homem qu vive num tédio imenso, de copo em copo, de bar em bar, de prostituta em prostituta, com a mulher fechada numa casa de campo e que depois desenvolve um ciúme mortal, propriamente mortal, pelo seu espécie de guarda, seu mordomo particular, o que aquele rapaz acaba por ser. 

José Luís Peixoto: É um pouco paradoxal mas também nesse aspecto absolutamente moderno e até contemporâneo, é de hoje em dia, parece-me que inclusivamente essa é uma marca desse livro e é uma marca geral da grande literatura que é o facto de ser sempre contemporânea porque trata de assuntos que de alguma forma se mantêm. Depois, ao nível da própria linguagem do inesperado, de certos recursos que se sucedem de uma forma muitissimo variada e surpreendente e, ao surpreender, chama a atenção para si própria e coloca o leitor num papel também de criação. 

Vóz: Criemos, pois! Umberto Eco chamaria a “O Delfim” uma obra aberta e JCP naturalmente assim o quis. O seu eu, autor narrador, começará eventualmente a desinteressar-se de atingir uma verdade, que percebe impossível e decidirá juntar-se à festa, à demonstração de poder, finalmente realizável pelos agora livres habitantes da Gafeira. Mas sim, desconfiemos da história que JCP coloca na boca de Tomás da Palma Bravo, quando este conta ao narrador do romance o que uma das suas amigas fez ao Velho da Alta Finança, cujo dinheiro perseguia. Matou-o de excesso de prazer, muito sexo, até que um dia o coração do homem cedeu, horas após estar com ela. O crime perfeito. E essa repetida imagem do coração, presença categórica na descrição do criado Domingos, tem um coração de passarinho. Sim, talvez Maria tenha tido a sua vingança, satisfazendo com o mestiço, a sua frustração sexual. Fugido após a morte deste, só para ser castigada pela Lagoa ou então não o desejava matar, mas o coração de passarinho cedeu e Maria das Mercês acabou com a sua vida antes que o fizesse o marido. Pouco importa, sobra a Lagoa e o corpo de mulher infértil, repousando o cadáver junto à água, ingrediente primeiro da vida. 

Tudo quanto escrevi, penso eu, tem tido como objectivo principal destruir os mitos que fazem parte da cultura portuguesa: o mito do português, o mito da portuguesidade, o mito do ruralismo, como a Cartilha do Marialva, da Idade Média Contemporânea em Portugal”. escreveu JCP. 

Vitor Silva Tavares: Volto a dizer que ele não era muito de confessionalismos umbilicais, mas os amigos mais próximos sabiam que ele, enfim quando desaparecia, quando deixava de frequentar a noite, o bar, o convite, o jantar, o almoço e tal…é porque lá estava, lá estava algures, parindo a sua obra. E, portanto, ele não transportava depois para a convivência com os amigos, com a família, não transportava essas eventuais angústias do criador. Tê-la-ias. Porém, note-se, aquilo que poderia ser então um estilo torturado, onde fosse patente a dificuldade inerente a quem pretende a perfeição de um estilo, ai, aí não encontra. O estilo é fluente, fluentíssimo e até dá a sensação ao leitor que acabou de ser escritinho ali mesmo, naquele momento, acabadinho de sair do forno. 

José Luís Peixoto: Aquilo que se sente quando se lê um livro como "O Delfim" é que existe aquilo a que os autores falam como uma oficina da escrita, ou seja, não me parece que seja uma escrita que possa surgir duma forma absolutamente torrencial. E isso não tem mal nenhum, porque, na verdade, poucas coisas também são feitas dessa forma. Nós não podemos esperar que um pedreiro chegue aqui e, sem pensar, comece a construir uma casa. Existe uma reflexão. 

Clara Ferreira Alves: E o JCP dizia muitas vezes isso: as palavras são como a matemática. Isso ele dizia, eu lembro-me. A arte combinatória das palavras no fundo é um problema de resolução de equações, são abstrações, o jogo das palavras abstrações, a arte combinatória é infinita. O modo como nós podemos combinar as palavras é como escrever música, é como resolver equações ou problemas da física quântica, quer-se dizer, pode-se fazer aquilo ad infinitum e não dar certo e nunca resolver o teorema. 

Maria Lucia Lepecki: Deixem mostrar, bem mostrado, para o outro perceber. No JCP é assim: deixem sugerir, bem sugerido, para o outro perceber. Ele pega a Língua Portuguesa, trata-a com cuidados de ourives, como é que ele junta as palavras? Como é que ele põe adjectivos tão bem colocados e tão escondidinhos que você pensa que não os há? Dizer que ele escreve sem adjectivos, não, ele escreve com adjectivos como todo o mundo, o que acontece é que ele sabe onde os colocar, escondidinhos para você não ver. Então a utilização da lingua portuguesa que ele faz é uma utilização subtil, discreta, muito clássica, muito contida, extremamente amorosa. Ele trata a Língua Portuguesa como se fosse uma amante, que ele ama muito. 

«Não sou um bicho do mato, mas não tenho paciência para a vida literária, nunca tive, ia às tertúlias de tempos a tempos e bebia lá umas coisas que de um modo geral ninguém bebia. Não se contava uma anedota, era tudo “Já o Dostoievski dizia…» Citação de JCP .

Maria Lucia Lepecki: O intelectual português está numa espécie de torre de marfim, ficam todos empoleirados lá no alto a raciocinar seus raciocinios muito interessantes sem sombra da mais pequena dúvida, são todos muito competentes, mas na hora de botar a mão na massa do que são as pessoas concretas, ele não pôe a mão na massa. E como é que o JCP representa isso em "O Delfim"? O escritor está sentado no primeiro andar de uma pensão de uma aldeia, está sentado na janela olhando a praça da aldeia, a praça não, o largo, o largo é o coração da aldeia, onde passa toda a gente a toda a hora, e esse escritor está olhando a aldeia de cima para baixo, não porque a despreze, de forma nenhuma, mas porque o JCP está fazendo esse escritor representar a tal distância entre o intelectual e a realidade concreta deste país. Eu acho que é um dos dados mais importantes de "O Delfim". 

Inês Pedrosa: Tenho muitas saudades dele pelo sorriso e pelo riso que ele sabia causar, era um grande contador de histórias e, enfim, eu lembro-me de tardes e tardes passadas às vezes em encontros de amigos ou de família em que ele começava, ele estava muito caladinho a um canto, começava a contar uma história, e depois ligava histórias verdadeiras, porque teve imensas histórias, teve uma juventude aventureira, aventurosa, andava com gente da rua ali da zona de Almirante Reis e das zonas assim menos nobres, digamos assim, de Lisboa, conheceu figuras engraçadíssimas, de pequenos vigaristas, pequenos meliantes, contava umas histórias desse tempo, verdadeiras e outras que ele inventaria sobre essas. Mas eram de chorar a rir, adorava fazer os outros rir. 

José Luís Peixoto: Histórias que vou ouvindo e vou acumulando, a forma, como p.e, ele chamava ao computador máquina de apagar, que eu acho fantástico porque realmente é também isso que eu sinto em relação a esse objecto. 

Júlio Pomar: O conversador, o contador de histórias, a maneira como ele se produzia, assim como um actor se produz, e o homem fechado que está a trabalhar naquilo que para ele é importante, os seus escritos são quase de uma angústia permanente, este balanceio entre estes dois extremos nele era extramamente flagrante. 

Vóz: Mas então sofria horrores, era? Como alguns desses vultos que nos querem convencer dessa sua tortuosa mistura de masoquismo e pose? 

Mário de Carvalho: Não, ele era um homem com vida, gostava de coisas simples, gostava de futebol, gostava dos seus petiscos, gostava das suas conversas, e tinha opiniões muito firmes e muito assertivas sobre as coisas. 

Clara Ferreira Alves: No caso do JCP havia nele uma decência intrínseca e uma moral que me agradava e que o fazia ás vezes perder as estribeiras e ficar indignado e depois pequenas coisas, um enorme sentido de humor, a visão cinematográfica que ele tinha do mundo, o Dinis Machado tinha a mesma coisa, como se o mundo fosse um cinema. 

Vitor Silva Tavares: Fúrias…fúrias…ele tinha um horror completo à mediocridade e sobretudo à mediocridade enfatuada, então eram fúrias, se porventura aparecia uma gralha num texto dele, então ele tinha um cuidado obsessivo de ver, reescrever, dar, cortar, podia levar anos, por isso dizia de si mesmo escritor bissexto, se porventura depois por negligência, por estupidez, por analfabetismo, por tudo…tinha fúrias, fúrias, ficava a espumar, mas que era mesmo a espumar, aquela boca era um monte de cuspo, fúrias, fúrias… 

Inês Pedrosa: Quando se punha à máquina de escrever, ou à mão, eu acho que era mais à mão, inicialmente, mas, enfim, quando se punha diante da escrita e não saía, tocava sempre um disco que punha a tocar, “a gaivota” do Alexandre O ´Neill, com música do Alain Oulman, na versão da Amália ou, melhor, na versão do Carlos do Carmo, de quem era muito amigo e dizia que isso o inspirava. Portanto, deixava-se levar. Para mim foi uma surpresa quando soube, porque um homem, que é tão americano, de certa maneira tão internacional e cosmopolita, precisa de um fado e de um fado que fala do céu de Lisboa. 

Vóz: JCP nasce a 2 de Outubro de 1925 numa aldeia do Distrito de Castelo Branco. Fugirá sempre para o Sul, definindo aquela Beira Interior como uma Sicília abandonada, deserto de pedras, padres e pedintes. Foi comissionista de drogaria, apontador de cais, praticante de piloto sem curso, agente de vendas, correspondente de inglês, intérprete de uma companhia de aviação, copyright de publicidade, editor, jornalista, cronista, professor universitário, foi sempre o que quis ser. 

Maria Lucia Lepecki: Telefonou um dia para o Nelson de Matos, editor, amigo dele, e disse ”estou aqui na Costa de Caparica, já trabalhei a manhã inteira, não sei quantas horas, essa coisa toda, estou um bocado cansado, vê lá se podes vir almoçar comigo”. E o Nelson foi. Até à Costa de Caparica. Chegou lá, o JCP tinha trabalhado 4 horas e diz ele: “trabalhei hoje muito bem, escrevi 3 linhas”! 

Vóz: Viajou entre os destinos da Marinha Mercante e Londres, que amava, mas onde lhe cresciam as saudades da Lisboa feita sua. Dirigiu a "Revista Almanaque", cujo propósito maior seria sacudir os bons e os contentinhos e provar que a austeridade é a capa do medo e da falta de imaginação. 

Inês Pedrosa: Ele falava tão bem (não mudava o registo) para falar com ministros, não era impressionável pelo poder, não era deslumbrado, minimamente. Eu acho que isso são traços importantíssimos e são raros, quanto mais avanço na vida, mais digo que raro é uma pessoa assim. E depois tinha um amor por Lisboa e uma alegria por viver em Lisboa, criticando, que eu compreendo muito bem porque é parecido com o meu sentimento pela cidade e de uma forma mais genérica pelo país, tinha o mesmo tipo de amores e de raivas pelo país que nós todos vamos tendo, no fundo, mas não há nenhum dia por exemplo um dia de sol de inverno destes dias frios de sol em Lisboa, ele gostava imenso desses dias, e da luz particular de Lisboa. E ficava feliz por andar a passear num dia desses. 

Vóz: Em 1980, comprou a casa da Costa de Caparica, de secretária encostada à janela, para escrever de frente para o mar, o mar livre, sem barreiras, sem fronteiras, ao contrário da lagoa de "O Delfim". Sobreviveu à PIDE e evitou por duas vezes a morte. Um grave acidente de automóvel em 1994 e um avc em 1995. 

Inês Pedrosa: Depois de ter tido um avc, era extraordinário como ele tinha ainda, no meio dos problemas físicos que tinha, disponibilidade para pensar nos outros, ou seja, quando eu chegava, perguntava (eu tinha uma criança pequena á altura), perguntava sempre pela criança, o meu pai morreu nessa fase e que eu andava a trabalhar com ele, e ele teve um grande cuidado, um grande carinho por mim, ou seja, saía, no fundo, da situação infeliz em que estava para se preocupar com os outros. Mesmo nessa fase final, ele dizia “deixo tão poucos livros”, “deixa os livros que são necessários”, respondia-lhe eu, porque as conversas maiores que eu tive com ele foram precisamente na fase final da vida dele, foi quando trabalhámos na fotobiografia e ele tinha a noção que já não ia escrever um outro romance e tinha pena de não ter escrito mais. 

Vóz: Recebeu prémios e distinções, escreveu contos e peças de teatro e morreu em 1998, levando alguma tristeza por o público não ter entendido Alexandra Alpha, o preferido dos seus livros. 

Citando o livro:Enquanto as moscas passeiam, o caminhante mentém-se suspenso na primeira página do meu jornal. Se lhe descrevessem as fabulosas aventuras dos portugueses que foram antes dele, navegadores do impossível, talvez não acreditasse. Também pouco adiantaria que acreditasse ou não. Acenar com os padrões dos nossos descobridores, como resposta às façanhas dum cosmonauta, é o argumento dos olvidados e já enjoa. Estamos fartos de o ouvir nos discursos de academia e nas crónicas oficiais. Aldrin nunca teria tempo para isso, anda excessivamente atarefado com o futuro para poder dar atenção aos desprezados do séc. XX.” – pp114 e 115. 

enterrem-me esta puta, enterrem-me esta puta…enterrem-me esta puta…enterrem-me essa puta!...” Diz o delfim perante a Maria das Marcês morta – pp 243. 

Vóz: Terminamos com um mistério por esclarecer, o próprio círculo que iniciámos relacionando "O Delfim" com um Manual de História, um desses manuais incompletos. Terão os portugueses, como os habitantes da Gafeira, uma memória assim tão vaga ou é uma dificuldade inata de lidar com aquilo que tanto nos envergonha no passado? De certo modo, passámos de uma época sem liberdade de expressão para um tempo onde nós próprios auto censuramos a catarse. O edificio da PIDE, que podia ser símbolo de horror ultrapassado e farol de esperança, transformado em condomínio de luxo. Salazar, votado grande português num concurso nacional - a não inscrição da memória colectiva deste país em forma de caixão dos mais variados crimes e suspeitas, os elementos que jamais vêm à baila quando se trata do poder. Bom, voltemos por fim ao romance, às últimas palavras de “O Delfim”. 

Citando o livro: «O autor em visita despede-se, pensa na manhã e espera, espera, espera o sono, o sono, sono…» pp 246. 

Vóz: Teremos chegado a acordar do pesadelo? 

FIM