“O Delfim” foi escrito no fim do salazarismo, em período de guerra colonial, retrata o universo da família Palma Bravo na Gafeira. Uma localidade provinciana, conservadora, características que poderiam ser atribuídas a parte da sociedade portuguesa de época.
Para quem conheceu JCP, como FJV, o livro fala-nos sobre Portugal, sobre a sua noção de Portugal, sobre o provincionismo português, da pulhice portuguesa, da maldicência, da maldade, do lado abjecto de Portugal que ele criticava. Estamos assim perante um retrato cáustico de uma sociedade em que é possível encontrar homens como o engenheiro Tomás Palma Bravo (o Infante), profundamente machista, racista, e incapaz de aceitar qualquer mudança. Estamos na década de sessenta, um período de grandes alterações em Portugal e de dúvidas sobre o futuro de um regime político que dava todos os sinais de declínio.
O narrador, papel desempenhado pelo escritor que visita a Gafeira, é uma figura central de “O Delfim”, pois por ele passa não só a recolha da informação sobre os acontecimentos funestos ali ocorridos como a sua interpretação. Num período em que a censura intervém de forma activa, Cardoso Pires não deixa de abordar temas tabu do Portugal da época, como a homossexualidade, a traição e até o incesto (para alguns).
Pode-se dizer que "O Delfim", o livro, retrata um certo Portugal, que tem uma galeria quase ideal desses tipos, começando pelo próprio Delfim,o Infante, o Engenheiro, uma espécie de marialva.
O Espaço
“O Delfim” situa a acção na Gafeira (nome com reminiscência de gafaria, terra de leprosos), uma terra imaginária a centena e meia de quilómetros de Lisboa, onde ocorrem duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade a um escritor amigo da família Palma Bravo. Perto da terra está a mítica Lagoa, que também não existe, assim descrita:
«Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários, mede o universo» –
É na lagoa que tudo começa e tudo termina. A Lagoa é, de certa forma, o centro de todo o romance. É a fronteira entre a opressão e a liberdade, «agora quem quiser caçar na lagoa já não precisa da autorização do Infante para nada» -
O narrador
É muito interessante, porque ele começa "O Delfim" com «Cá estou». E depois, logo a seguir, vem dizer «Já temos o autor instalado». Na opinião do escritor Mário de Carvalho, esta separação narrador/autor "põe desde logo o problema: quem é que está falar? O autor, o autor que vai proceder ao inquérito, que vai interrogando, vai anotando o que lhe é dito por várias personagens, mas, ao mesmo tempo, há também um narrador que aprecia o próprio comportamento do autor e que, além disso, faz vários comentários e que se dirige ao próprio leitor e que se dirige às próprias personagens e que as apostrofa, as afronta. Portanto de vez em quando, e às vezes no mesmo parágrafo, nós temos, digamos, todos estes níveis de intervenção da escrita do JCP exemplificados".
O tempo
Há um tempo histórico. Para o historiador Fernando Rosas "são os anos da Revolução Cultural na China, o maoismo, tudo aquilo que aqui chegava como notícia disso, São os anos da Guerra do Vietnam que mobiliza as consciências aqui e do mundo inteiro e vão ser os anos da revolta estudantil em Itália, na Alemanha e, finalmente, em França, com o Maio de 68. São anos, do ponto de vista cultural, politico, social, de uma importância enorme que, ainda por cima, em Portugal se associam à morte política de Salazar." Estamos a falar do tempo de resistência ao salazarismo, dum Portugal cinzento, a preto e branco, mas mais cinzento que preto e branco, um Portugal muito oprimido, muito abafado, onde não se respira bem.
O narrador regressa à Gafeira, a pretexto da caça, e começa a investigar um possível crime, enquanto recorda as conversas nascidas de uma amizade, nunca esclarecida, com o Delfim. Tomás Manuel da Palma Bravo e mulher, Maria das Mercês, o criado Domingos. Todos desapareceram envoltos em enigmas de nevoeiro e fumos que perpassam todo o romance e assombram sobretudo a lagoa, propriedade exclusiva de o Delfim. Engenheiro, princípe predestinado, cujo usufruto de abundâncias e privilégios chegou por fim aos habitantes da aldeia, agora que Tomás já não mora aqui.
O narrador regressa à Gafeira no dia 31 de Outubro de 1967, ao início da tarde, justamente 365 dias depois de lá ter estado pela primeira vez. E aqui temos dois tempos de narração: um, com duração de menos de um dia, que vai do meio dia (mais ou menos) do último dia do mês de Outubro de 1967 até à alvorada do dia seguinte; o segundo, com a duração justamente do ano antecedente, em que ele relata factos ocorridos neste lapso de tempo, de que vai tendo notícia mas com versões distintas. "Sinto-me alvoroçado com este regresso à Gafeira. Um ano vivido assim, numa tarde, desorienta".
As Personagens
O Delfim
O Delfim, o nome, ou cognome, uma aparente contradição entre o próprio título, que é muito irónico, que é o Delfim, no sentido de príncipe, e, depois, é um príncipe que é um ser podre por dentro. Uma aparência radiosa por fora, mas a apodrecer por dentro. É o retrato de uma pessoa que é um país.
É sem dúvida a figura principal do romance. O Delfim é uma espécie de latifundiário, parasita, o playboy, que tem o seu automóvel de marca e que é riquíssimo, que era de certo modo é o sustentáculo desse tipo de gente e de escória social rica, era de certo modo o sustentáculo do regime e dos que o Regime também apoiava, especialmente, enfim, mentendo os trabalhadores reprimidos. Curiosamente, o autor tem um fascínio especial e muito desprezo, simultâneamente, por mais contraditório que isto pareça.
Maria da Mercês
Embora esposa do Delfim, não se vê reconhecida no seu estatuto de parceira do prazer. Está só, enquanto o marido vagabundeia por bares e prostitutas. Este, o Engenheiro Tomás Manuel, tem uma ideia, diria original, sobre a sexualidade conjugal «tu sabes a razão por que nenhum homem deve fornicar a mulher legítima?». E acontece ainda que é sobre Maria das Mercês que recai o estigma de mulher maninha, de mulher inabitável. «Donde vem o mal que impede os frutos?». Não há provas, mas é ela que carrega essa punição pública. Acresce que ela vive intrigada pelas relações demasiado próximas entre o marido e o criado Domingos, «esse corpo intocável para todos excepto para o seu amo», essa estranha «aliança que a torturava». E ainda a atitude marialva do Delfim em relação às mulheres, «para a cabra e para a mulher, corda curta é que se quer». E, por fim, para complicar mais ainda esta trama, uma possível interpretação de grande cumplicidade entre a Maria das Mercês e o criado Domingos, que acaba num ralacionamento amoroso (aconteceu?), o que leva alguns analistas, como EPC, a falar de incesto! Como morreu Maria das Mercês? O narrador nada nos diz, deixa-nos com as várias versões que ouviu.
Domingos
É o criado dos Palma Bravo. Gastara a infância nos cais do Mindelo, «conduzindo marinheiros americanos com a sua voz branda e amável» diz-nos o autor de forma sibilina. O engenheiro reconstruiu-o «peça por peça, depois de o ter arrancado a uma guilhotina da fábrica, sem um braço». Uma disciplina rígida assente num lema: «vinho por medida, rédea curta e porrada na garoupa». Por sua vez, a patroa, a Maria das Mercês impunhava-lhe trabalhos escolares que ele no final do dia apresentava à mestra para correcção. Domingos acompanhava o patrão, o Engenheiro, nas investidas aos bares do Cais do Sodré, em Lisboa. Mas estas noitadas cansavam o mestiço. Regressava a casa destruído e humilhado. «Levo-o a Lisboa, deixo-o à vontade, dou-lhe dinheiro…nada». Conta o Engenheiro à mulher. E num desabafo «Só me faltava esta, ter um criado…». Quem matou o Domingos? Como morreu o criado Domingos?
Há ainda uma plêiade de personagens secundários, a que chamaria, com mais propriedade ,personagens-testemunhas (a estalajadeira, o cauteleiro, o padre novo, o batedor, o regedor,…) que são o porta-vozes das várias versões dos acontecimentos ocorridos no último ano, sobretudo as duas mortes misteriosas que suscitam a curiosidade de todos, em particular do nosso visitante escritor. Deliciosa esta síntese na boca do cauteleiro, que o escritor ouviu e registou naquela manhã que chegou a 1ª vez à aldeia: ”Lá vai ele, o engenheiro, Palma Bravo, o Infante, dono da Lagoa, o nosso Dono, com a gaja, o preto e o cão. Filho da Puta!».
Censura
A questão, ou a dúvida, que se coloca é: como pôde um romance, que é um retrato cáustico de uma sociedade anémica e de um regime em declínio, ser capaz de singrar quando, para a democracia, faltavam ainda anos e o 25 de Abril não passava de uma utopia? Certo que já não existia a censura prévia, mas, manter-se no mercado e receber os louvores da crírica estrangeira, ser reeditado! Para Fernando Rosas, « os censores também se enganavam, os censores eram homens militares, eram homens pouco cultos, eram burocratas da repressão, e, portanto, eles próprios, por vezes, avaliavam a perigosidade das obras em função do que era mais explícito e do que elas apelavam de uma forma mais directa e explicita, isso tornava-os culturalmente insensíveis a outras obras que, na realidade, representavam perigos para o Regime muito mais substanciais que eles, de imediato, não se apercebiam».
Crime? Quem matou quem?
O narrador, investido no mistério, ouve várias versões para o mesmo alegado crime. Maria, como virgem estéril, Maria das Mercês, à mercê do todo poderoso marido, foi encontrada morta. É praticamente a única certeza absoluta, encontrada morta na Lagoa. Agora como morreu, porque morreu, disso o autor, caçador, ouvirá as mais variadas teorias: do cauteleiro, da dona da pensão, do padre, do regedor, dos batedores, enfim…que a esposa do senhor matou o aleijado Domingos, por ciúmes da relação deste com o marido e se matou em seguida, que o engenheiro a apanhou na cama com o pobre criado e a ambos castigou com um fim prematuro, que isto, que aquilo, que sim, que não.
Um romance policial?
O livro é todo ele uma trama extremamente complexa, que, podemos dizer, JCP executou como no cinema, para além de haver uma sinopse, ideia geral e tudo o mais, se vai acompanhando, sequência a sequência, plano a plano, e depois na montagem que, realmente, o cinema aparece como cinema, como arte narrativa. Nesse aspecto, na opinião de Maria Lúcia Lepecki, professora e crítica literária, «O Delfim é um modelo que provavelmente não se conhece outro na literatura portuguesa, de montagem, neste caso romanesca, mas que tem grandes similitudes com a montagem cinematográfica. Este é um livro feito muito com montagens, vem narrando determinada sequência, passada num determinado lugar, numa determinada época, corta, na página até aparece um pedacinho em branco, e muda de assunto. É como no cinema, corta/cola, corta/cola. E a realidade vai-nos chegando muitifacetada como na realidade ela é»
A escrita
Acresce que JCP é um escritor, além de ser realista, é muito anglo-saxónico, escrita enxuta, como os ingleses e mais ainda como os americanos.
Para Maria Lucia Lepecki, «Ele pega a Língua Portuguesa e trata-a com cuidados de ourives. É acusado, e parece, que ele escreve sem adjectivos? Dizer que ele escreve sem adjectivos, não é verdade, ele escreve com adjectivos como todo o mundo, o que acontece é que ele sabe onde os colocar, “escondidinhos” que até parece ao leitor não dar conta deles. Então a utilização da lingua portuguesa que ele faz é uma utilização subtil, discreta, muito clássica, muito contida, extremamente amorosa. Ele trata a LP como se fosse uma amante.».
O Delfim fala-nos do futuro?
De certo modo, JCP é premonitório, quase diria, porque há ali uma rutpura (tudo mudou na Gafeira), que acaba em festa, antecipando uns anos o advento da democracia. Mas, ao mesmo tempo, noto uma certa contradição na atitude final do narrador: por um lado, ele está contente, ele desiste da caça (principal motivo do seu regresso àquela terra) para se associar à festa dos camponeses-operários ("ao arraial não falto, custe o que custar"); por outro, parece estar anestesiado (espera o sono. O sono. Sono...).
(texto apresentado ao Grupo de Leitura da casa Roque Gameiro, Amadora, no dia 19 de Abril de 2018)
(texto apresentado ao Grupo de Leitura da casa Roque Gameiro, Amadora, no dia 19 de Abril de 2018)
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