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sexta-feira, 23 de junho de 2017

Vila do Conde, espraiada

Foi já no passado dia 13, dia de Santo António, que peregrinei por Vila do Conde e voltei a entrar na Casa-Museu José Régio. Como numa catedral, em silêncio e em comunhão com o poeta. 

Na despedida, subi ao Convento de Santa Clara, para visitar a Capela dos Fundadores. Não foi possível, está fechada para obras de restauro. Mas foi possível desfrutar e guardar a vista do rio que só conhecia do poema do Régio.



Romance de Vila do Conde

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Já me ponho a suspirar.

Vento Norte, ai vento norte,
Ventinho da beira-mar,
Vento de Vila do Conde,
Que é a minha terra natal!,
Nenhum remédio me vale
Se me não vens cá buscar,
Vento norte, ai vento norte,
Que em sonhos sinto assoprar...

Bom cheirinho dos pinheiros,
A que não sei outro igual,
Do pinheiral de Mindelo,
Que é um belo pinheiral
Que em Azurara começa
E ao Porto vai acabar...,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale
Nenhum remédio me vale,
Se te não posso cheirar...

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Mais nada posso lembrar.

Bom cheirinho dos pinheiros...,
Sei de um que quase te vale:
É o cheiro da maresia,
- Sargaços, névoas e sal -
A que cheira toda a vila
Nas manhãs de temporal.
Ai mar de Vila do Conde,
Ai mar dos mares, meu mar!,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum remédio me vale,
Nem chega a remediar…

Abria, de manhãzinha,
As vidraças par em par.
Entrava o mar no meu quarto
Só pelo cheiro do ar.
Ia à praia, e via a espuma
Rolando pelo areal,
Espuma verde e amarela
Da noite de temporal!
Empurrada pelo vento,
Que em sonhos ouço ventar,
Ia à praia e via a espuma
Pelo areal a rolar...

Espuma verde e amarela
Das noites de temporal,
Quem te viu como eu te via,
Se te pudera olvidar!
E ai não me posso curar,
Nenhum remédio me vale,
Se te não tenho nos braços,
Se te não posso beijar…

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Passo a tarde a divagar…

Até Senhora da Guia
Me deixava ir devagar,
Até Senhora da Guia,
Que entra já dentro do mar,
Como uma pomba que as ondas
Receassem de levar;
Talvez como uma gaivota
Colhida num vendaval…
Ou rosa branca, trazida
Quem sabe de que lugar,
Que embaraçando nas pedras,
Ficasse ali, sem murchar,
O pé metido no rio,
A flor já n’água do mar.

Lá de cima do seu monte,
Sobre o fundo do pinhal,
Senhora Sant’Ana, ao longe,
Parece um lenço a acenar.
Convento de Santa Clara,
Que vulto fazes no ar,
Que aos marinheiros no mar
Deitas o «pelo sinal»!
E o sol desmaia na cal
Da capela a branquejar
Da Senhora do Socorro,
Onde sonhei me ir casar…

Da banda de lá do rio,
As gaivotas a voar
Sobre Azurara se esfolham
Como um grande roseiral!

Lembranças da minha terra,
Da minha terra natal,
Nenhum remédio me vale
Se me não vindes buscar!
Nenhum me pode salvar,
Morro em pecado mortal…

Vila do Conde, espraiada
entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Sinto os olhos a turvar…

Ia até Poça da Barca,
Meu muito amado local,
(E quem diz Poça da Barca
Diz Caxinas, sua igual)
E parava a olhar de longe,
Estátuas de bronze a andar,
As belas gentes do mar…
Parava a olhar o estendal
Das águas a rebrilhar,
E o arco-íris das cores,
Cada qual mais singular,
Que à tarde, pelos céus fora,
Se entornavam devagar…

Caía a noite, e eu, parado,
Via, subindo no ar,
A Lua juncar as ondas
De espadanas de luar…

Duma vez, estava eu triste,
Senti que o Anjo do Mal
Vinha para me tentar!
Caio de bruços na areia,
Ponho as mãos, e, sem rezar,
Aguardo que Deus me valha,
Me não deixe desgraçar…
Foi então que ouvi, distinta,
Distinta!, posso-o jurar,
Posto vagarosa, grave
Do seu repouso eternal,
A voz de Ana, que partira
Lá para melhor Lugar,
Do fundo do seu coval
Cantar-me o velho cantar:
«…Tomou-o um Anjo nos braços,
Não no deixou afogar»…

Nenhum remédio me vale,
Ou sou eu que não sei qual,
Se me não levam depressa
A ver o extenso areal
Onde se davam mistérios,
Que eu sabia decifrar…

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Não me posso conformar…

Aquela funda toada,
Por toda a vila a toar,
Nas negras noites de inverno
Me vinha à cama acordar.
Vinha do cabo do mundo…?
Vinha do fundo do mar…?
Vinha do céu, ou do inferno?
Vinha de nenhum lugar…?

De olhos abertos no escuro
Me estarrecia a escutar…
E o meu gosto de a sondar
Que bem me fazia, ou mal!

Pela doçura outonal
Das tardinhas de Setembro,
Vai e vem, que bem me lembro!,
Como sabia embalar!
Vinha de longe, de longe,
Soturna e familiar,
Cada vez mais se achegando
Para se logo afastar…
Mas que viria dizer-me,
Que me diria, afinal,
Aquele canto fatal
Das ondas sempre a rolar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Ai! Nem me quero lembrar!

Mas sei de um som quase igual
A que o posso comparar:
O som do vento rolando
Nas copas dum pinheiral…
Pinhal do Corgo, seguido
De outro mais longo pinhal,
E esse outro seguido de outro
Té onde a vista alcançar,
Como te posso olvidar
Se é na minh’alma, afinal,
Que chora, como num búzio,
Teu canto irmão do mar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Caía num meditar
Que era pairar noutros mundos…
Ai! Nem me quero lembrar!

Não quero, e nada mais lembro,
Nada me pode agradar,
Nada alcança distrair-me,
Nada me vem consolar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum me pode salvar,
Nenhum mitiga este mal
Que eu gosto de exacerbar,
Morro em pecado mortal,
Sem me poder confessar…,
Se me não levam depressa,
Depressa! Estou sem vagar,
A tomar ar! O meu ar
Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar…


José Régio, Poesia I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Devaneios cruzadísticos-Camilo Castelo Branco

"O Bem e o Mal" é o nome do livro do escritor português Camilo Castelo Branco, pedido com a resolução do passatempo do mês de Junho de 2017.


Foi escrito em 1863, um ano antes Camilo publicara um dos seus romances mais apreciados - "Amor de Perdição". Depois desta obra e, ainda, de "Memórias do Cárcere" escrita no mesmo ano, Camilo brindou o seu público, nesse ano de 1863, com o romance "O Bem e o Mal". O que nos convida sempre a ler Camilo é, antes de mais, o seu extraordinário dom narrativo. Um pequeno extracto deste "O Bem e o Mal":

[...O homem foi sempre mau; será mau até ao fim. A sociedade parece melhor do que foi, olhada colectivamente: é parte nisto a lei, e, grande parte o cálculo. Cada indivíduo se constrange e enfreia no pacto social para auferir as vantagens de o não romper; porém, o instinto de cada homem, em comunidade de homens, está de contínuo repuxando para a desorganização. Eu aceito, como puros, os corações formados na solidão, a não se dar a segunda hipótese do provérbio, que disse: homem sozinho, das duas uma: ou Deus ou bruto. [...]

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Respostas de: Aleme; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Bábita; Baby; Caba; Corsário; Dupla Algarvia (Anjerod e Mister Miguel); El-Nunes; Fumega; Gilda Marques; Homotaganus; Horácio; Jani; João Bentes; João Carlos Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bento; José Bernardo; Lurdes Polido; Mafirevi; Magno; Magriço; Manuel Amaro, Manuel Carrancha; Manuel Ramos; My Lord; Olidino; Osair Kiesling; Paulo Freixinho; Raquel Atalaya; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva e Virgílio Atalaya.

Até breve!

sábado, 17 de junho de 2017

A tua nudez...


Fez ontem 20 anos que o poeta David Mourão-Ferreira partiu. Aqui fica, com um dia de atraso, a minha homenagem ao poeta do amor e da sensualidade. Razão especial para escolher este poema? A descoberta do último verso, por aí... nos meus devaneios...ia-me custando o meu último neurónio. 

Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez Não quis que te despisses


David Mourão-Ferreira in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR, Antol. org. por Vasco Graça Moura, (Lisboa, Quetzal, 2003)

sábado, 10 de junho de 2017

Luís de Camões, o genial poeta


A Ilha dos Amores é o mais célebre episódio d´Os Lusíadas. Luís de Camões oferece aos protagonistas um paraíso na Terra. É a justa recompensa dos deuses para os marinheiros de Vasco da Gama. Mas, para Camões, o paraíso é o local para celebrar os prazeres do corpo, o prazer do sexo. A cena é explicita. Um grupo de marinheiros arriba a uma ilha desconhecida. Estão cansados e com o desalento na alma. A ilha está repleta de jovens e belas ninfas que rapidamente sucumbem aos desejos irreprimíveis dos sôfregos machos.

“Oh! Que famintos beijos na floresta, / E que mimoso choro que soava! / Que afagos tão suaves, que ira honesta, / Que em risinhos alegres se tornava. /… Canto IX, est. 83 – pp 313

Em 1572, sexo era, no entanto, uma palavra interdita. O corpo não é fonte de prazer; é, antes, objecto de castigo severo, de renúncia, de suplício. O Santo Ofício da Inquisição reina em absoluto sobre as matérias da carne e do espírito. A luxúria conduz à tortura e à fogueira. Qual terá sido a reacção do Santo Ofício aos versos de Camões? Frei Bartolomeu Ferreira, censor da Inquisição, escreve:

« […] Vi por mandado da Santa e Geral Inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa, e não achei neles cousa algũa escandalosa, nem contraria à fé e aos bons costumes […] »

400 anos depois, o enigma persiste. A 1ª Ed. d´Os Lusíadas foi uma espécie de milagre. O que permitiu a Camões obter da Inquisição um parecer elogioso para blasfémias tão provocadoras?


Texto adoptado de Os Lusíadas │Série Grandes Livros (RTP 2009)


10 de Junho. o único feriado nacional que celebra o aniversário das morte de um poeta: Luís de Vaz de Camões. É oficialmente o Dia de Portugal e Camões é o poeta oficial da Pátria. “Os Lusíadas” é a sua bíblia definitiva, 

"As armas e os barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana / Por mares nunca dantes navegados / Passaram ainda além da Taprobana/…” Canto I, est. 1 - pp 71.

Poucos são os portugueses que não conhecem os primeiros versos d´“Os Lusíadas”. Mas quantos conhecem a obra de facto? Olhando para alguém lendo "Os Lusíadas" num espaço público, convoca uma ideia de estudo e dever a cumprir. É um livro que se lê por obrigação. Por que se trata de uma obra difícil? Sem dúvida. Mas também porque “Os Lusíadas” têm sido usados como peça central no projecto de construção da identidade nacional. E a obra de Camões remete involuntariamente para o universo de um nacionalismo anacrónico fora de moda. 

Diz Helder Macedo (especialista em estudos sobre Camões): “Pode ser usado e tem sido usado para bandeira não importa de quê. Sei lá. Da democracia ao fascismo”. 

Diz João Carlos Seabra Pereira (Coordenador dos Estudos Camonianos – CIEC): “E nós vemos isso, por exemplo, no século XIX. É tão importante para liberais como para legitimistas. E depois é tão importante para a propaganda republicana como para a reacção monárquica a essa propaganda. É tão importante para a 1ª República, como depois para o Estado Novo”. 

Foram os republicamos a instituir o 10 de Junho como Feriado Municipal em Lisboa, em 1910. Mas seria o Estado Novo a decretar o Dia de Camões como Feriado Nacional. 

Ao falar de Camões, é difícil chegar ao escritor original, sem dar de caras com o que fizeram dele: um Símbolo Nacional. Será impossível falar d “Os Lusíadas” apenas por aquilo que são, em primeiro lugar, uma das obras primas da Literatura Mundial 

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Uma das razões pelas quais “Os Lusíadas” se afirma logo como uma obra-prima e foi a razão principal para Camões ser logo considerado o Príncipe dos poetas portugueses, o Príncipe dos poetas da Península Ibéria no seu tempo e um dos maiores da Europa, é porque ele é, ao mesmo tempo, sendo uma epopeia, é um canto de exaltação e um canto já de crise”.

“Os Lusíadas” foram publicados em 1572 no final de um século prodigioso. A acção acompanha a histórica viagem realizada por Vasco da Gama à India, em 1497. Ao mesmo tempo, descreve a grande aventura dos portugueses desde a fundação da nacionalidade. 

Diz Hélder Macedo: “Mas ele está a escrever quase um século depois, 70 anos depois disso ter acontecido. E Portugal mudou, entretanto. E está em crise”. 

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Há ali uma aura. A aura do canto imperial começa a empalidecer e, por outro lado, a própria visão do Homem já não é tão confiante, tão exaltante, como a que seria próprio de um poema puramente renascentista”. 

Para o Portugal contemporâneo e periférico é difícil imaginar o que será estar no centro do Mundo. Mas no século XVI, o Mundo era literalmente dos portugueses, metade do mundo para ser exacto. As coroas espanhola e portuguesa tinham, por iniciativa própria, repartido entre si os dois hemisférios do Globo. E os portugueses esticavam-se temerários de uma parte à outra metade que lhes coubera.

 …/ De África tem marítimos assentos; / É na Ásia mais que todas soberana; / Na quarta parte nova os campos ara; / E, se mais mundo houvera, lá chegara.” Canto VII, est. 14 – pp 248.

Era o momento da História em que todas as probabilidades estavam em aberto. O avanço científico e tecnológico dos portugueses sustentava fabulosas ilusões de grandeza. Garcia de Orta expressa-o de forma exemplar, «digo que se sabe mais agora num dia pelos portugueses do que se sabia em 100 anos pelos romanos». 

No contexto de tal realidade histórica, era natural a tentativa de celebrar a literatura os feitos da Nação. 

Diz José Hermano Saraiva (historiador), “Camões é um homem sem imaginação, sem imaginação, é um homem que não precisa de imaginar. A realidade para ele dá-lhe matéria completa para fazer a espantosa lírica que é, para mim, muito superior à épica.

Mas, a Língua Portuguesa era ainda rude e vulgar. Na corte, entre 1501 e 1536, as peças de Gil Vicente representavam-se em castelhano, as aulas eram dadas em latim, a língua erudita. A primeira Gramática Portuguesa data apenas de 1536. Os portugueses tinham-se afirmado como Nação Imperial, mas faltava à Língua Portuguesa idêntico prestígio no plano internacional. E o poema épico representava o mais alto desígnio a que uma Língua podia aspirar. 

Diz João Carlos Seabra Pereira: «A epopeia estava no topo do cânone dos géneros literários, juntamente com a tragédia e, por isso, era muito importante, porque seria a forma mais prestigiosa de a literatura poder enaltecer os feitos dos portugueses.» 

Outros poetas e escritores tentaram a escrita duma epopeia em português: Diogo do Couto, Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros, António Ferreira, mas apenas Camões foi capaz de levar a bom porto esse projecto nacional. 

Diz José Hermano Saraiva: “Ele tinha uma capacidade fabulosa de manipular o idioma e transformar a prosa em verso. Todas as estrofes do Camões são lapidares.

Há uma ironia amarga nisto: do homem de quem herdámos uma História, pouco sabemos da sua história. Sobre a vida de Camões, são mais os mitos que circulam que os factos comprovados. 

Diz José Hermano Saraiva: “Não existe um único documento sobre Camões, só que, por isso, é que a biografia tem andado assim. Não há biografia, não há documentos. Foi tudo sistematicamente destruído. Um homem que passou a vida a escrever não há uma só linha escrita por ele.

Nem mesmo a data do seu nascimento é certa. Alguns apontam para 1525, outros por volta de 1517. A sua erudição indica que terá tido formação académica, em Coimbra, presume-se. Tem sido retratado como fidalgo pobre, mas bem relacionado.

Por volta de 1545, andará por Lisboa, onde frequenta os salões aristocráticos e a própria corte. Tem amigos nobres, e, diz-se, faz sucesso entre as damas. A imagem do jovem poeta, fogoso e sedutor. 

Diz a voz de Camões, em diálogo, com uma dama, “escrevi alguns versos que ainda ninguém conhece – Por que não os diz agora? – queria reservá-los, senhora, para ocasião que não se repartissem por tantos ouvidos.”

Diz Hélder Macedo: “Camões vem de uma classe aristocrática, sem grandes meios financeiros e, como tal, tinha de agradar às suas protecções. E uma maneira de agradar era ser-se culto, contar histórias, escrever poemas…

Mítico é também o seu carácter de aventureiro, tumultuoso. Terá perdido um olho numa expedição militar a Ceuta entre 1549 a 1551. E o cadastro criminal é o que resistiu melhor à memória do tempo. Um dos poucos factos documentados é a sua agressão a Gonçalo Borges, um funcionário do Rei. Acontece em 1552 em pleno dia da procissão do Corpo de Deus. É então encarcerado na prisão do Tronco, onde fica até 1553. Será apenas a primeira das muitas celas que conheceu. Pouco depois de ser libertado, embarca para a Índia. Parte de livre vontade ou desterrado pelo Rei? As opiniões dividem-se. Mas será para Camões um exílio de 17 anos. É longe do país que escreve a maior parte d ´ “Os Lusíadas”.

Diz Kátia Guerreiro, fadista: “Luís de Camões quando partiu, partiu para escrever tudo aquilo que absorveu dessa enorme viagem que foram os Descobrimentos. Toda a descrição em “Os Lusíadas” é muito representativa daquilo que ele viu com os seus próprios olhos, sentiu na sua própria pele.” 

“Já no largo Oceano navegavam, / As inquietas ondas apartando; / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as velas côncavas inchando;…/” Canto I est. 19 - pp 75.

A acção d´ “Os Lusíadas” inicia-se com a armada de Vasco da Gama já perto do objectivo. Mas não tem forma de o saber. O mapa para a India é apenas uma folha em branco. É neste momento que Júpiter reúne os deuses no Olimpo. Devem decidir o que fazer em relação aos destemidos marinheiros que “…cometendo/O duvidoso mar num lenho leve”, Canto I, Est. 27 – pp 77. 

Vénus, deusa do amor, é a grande aliada dos portugueses. São um povo de sangue quente e paixões intensas. Será celebrada onde quer que cheguem. Baco é o principal antagonista e tudo fará para impedir que as naus cheguem à India. 

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Quanto á mitologia, ela vem, por um lado, dar um plano de alegoria, de sentido, e de garantir-lhe assim outra elevação e outra perenidade; por outro lado, era uma forma de Camões estruturar, de outra forma, a composição da narrativa.

São os deuses pagãos que comandam toda a acção d´Os Lusíadas. No entanto, é ao Deus cristão que Vasco da Gama implora protecção. 

«Divina Guarda, angélica, celeste, / Que os Céus, o Mar e Terra senhoreias: / …./ Porque somos de Ti desemparados, / Se este nosso trabalho não Te ofende / Mas antes Teu serviço só pretende?” Canto VI, Est.s 81 e 82 – pp 239

O convívio natural entre o maravilhoso mundo pagão e o mundo cristão é um dos truques narrativos mais eficazes da obra. Baco dirige os portugueses para sucessivas armadilhas na Ilha de Moçambique e depois em Mombaça. É Vénus que protege Vasco da Gama e conduz as naus até Melinde. Aqui, encontra um porto de abrigo onde os portugueses podem descansar. O acolhimento do Rei de Melinde é bem-vindo. A viagem por mares nunca dantes navegados durará demasiado tempo. Decorreram largos meses desde a partida de Lisboa a 8 de Julho de 1497. Sabe-se que Gama irá atingir a Índia um ano quase depois, a 9 de Maio de 1498. Entretanto, Camões aproveita esta pausa para ir iniciar uma outra viagem. Uma viagem no tempo. O Rei de Melinde pede a Vasco da Gama que lhe conte a História de Portugal e a sua aventura marítima. 

Diz Zhang Weimin, tradutor d´Os Lusíadas para Chinês: “Eu acho Camões um génio, o que eu queria perguntar como é que podia ter narrado tantos acontecimentos para nós. Mesmo com a obra na mão, mesmo com a biblioteca ao lado, mesmo com internet à nossa frente, nós precisamos fazer muita pesquisa e é impossível memorizar tantos conhecimentos.”

Diz Hélder Macedo: “Ele, tendo estado tanto tempo fora sem bibliotecas, sem esse acesso, as referências que ele faz são tão exactas, tão precisas, e são tantas, e tão complexas, que ele tinha que ter aquilo na memória

A memória de Camões é vasta e o seu conhecimento prodigioso. História de Portugal e História Universal, Geografia, Ciências Naturais, Ética, Filosofia, Mitologia, autores clássicos como Virgílio, Homero, Horácio, Plutarco; e autores modernos como Petrarca, Sanazaro, Ariosto…Uma erudição que situa Camões no devido lugar da História. É um homem que sintetiza plenamente o ideal renascentista. Homem de Cultura, homem de acção, e supremo artesão das palavras.

…/ Nem me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado, / Nem engenho, que aqui vereis presente, / Cousas que juntas se acham raramente”. Canto X, Est. 154 – pp 355

Diz Hélder Macedo: “É o herói que reconcilia os feitos das armas e a escrita. Há um debate ao longo do poema:  as armas ou as letras? O que é que é melhor: fazer as coisas ou escrever sobre elas?” 

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Nos Lusíadas está também a experiência, a experiência de um homem que andou embarcado, que combateu em vários pontos do Império, e, sobretudo, que se apresentou sempre como alguém que, pessoalmente, estava pronto a realizar aquilo que ele próprio nos apresenta nos Lusíadas como o ideal heróico de vida

Diz Hélder Macedo: “Ele estava a valorizar a escrita como aquilo que faz a História. A História é feita de palavras e não de feitos. Estes morrem, o que perpetua os feitos é a escrita

Vasco da Gama narra a História de Portugal ao Rei de Melinde pela voz do seu protagonista. Camões dá, das principais figuras da História nacional, a dimensão mítica dos grandes heróis da Antiguidade Clássica

Diz Hélder Macedo: “Sem um Homero e sem um Virgílio, não há nem Aquiles, nem Eneias. Quem faz os heróis é quem escreve sobre eles

“…/ Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta.” Canto I, Est. 3 – pp 71.

Camões canta, com voz segura, o seu amor pela Pátria, mas será que a Pátria lhe retribui o sentimento? Será que a Pátria o merece sequer?

Nos Lusíadas, Camões cruza a dimensão épica dos feitos das armas, das batalhas, da conquista do território, com o retrato íntimo da tragédia amorosa. O Mundo bruto dos homens, o mundo de morte e violência contrasta com o impulso amoroso, a pulsar de vida do universo feminino. E, no confronto directo, é inevitável, quem perde são as mulheres.

Estavas, linda Inês, posta em sossego, / De teus anos colhendo doce fruto, / Naquele engano da alma, ledo e cego, / Que a Fortuna não deixa durar muito, /…” Canto III, Est. 120 – pp 159.

Diz Hélder Macedo: “Camões era um homem que amava, acreditava no valor do amor como uma forma de conhecimento, não só do outro, desejo de conhecer o outro, como veículo para o próprio conhecimento de si, o que era também uma concepção muito interessante do amor

“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito / (Se de humano é matar hûa donzela, / Fraca e sem força, só por ter sujeito / O coração a quem soube vencê-la),…” Canto III, Est. 127 – pp 160

O amor trágico de Inês de Castro é um símbolo maior do amor eterno. Camões, porém, valorizava e celebrava a diversidade amorosa. Ao contrário de autores como Dante ou Petrarca, que cultivavam o amor singular de mulher ideal.

Diz Hélder Macedo: “Camões faz exactamente o oposto, ele valoriza cada experiência que teve, valoriza cada amor que teve, na sua diversidade e na integridade específica de cada uma dessas relações que ele teve

Camões vai ainda mais longe. Celebra, através do amor, uma espécie de multiculturidade precoce. O amor, para ele, não conhece fronteiras de raça, de cultura ou de classe. Sedutor experiente, a sua lírica subverte os cânones da beleza e do comportamento da época, e reproduz os hábitos dos marinheiros portugueses que espalham o gene lusitano por onde aportam.

Diz Hélder Macedo: “Nenhum outro poeta do tempo dele, como o nosso, valorizam tanto a sexualidade feminina, enquanto feminina, como Camões, o que é uma coisa extraordinária”

Para Portugal ser dono do Mundo, revelou-se tarefa árdua. D. João III reconheceu logo os sinais de crise. O império era demasiado vasto e descontinuo. Os portugueses eram poucos, não chegavam a 1 milhão e meio. Controlar o espaço equivalente a metade do globo, era impossível. As praças do Norte de África estão sob permanente ameaça dos muçulmanos. Os turcos, no mar Índico, tentam retomar o controlo do comércio de especiarias. Castelhanos, ingleses, holandeses e franceses desafiam o monopólio das rotas marítimas para o Oriente. O esforço militar e económico é insustentável. D. João III, pragramático, abandona o projecto imperial do pai e do avô. Retira de algumas praças em África, Safim e Azamor, em 1541, Arzila e Alcácer Ceguer, em 1549. E concentra a sua atenção no Brasil, iniciando-se a sua colonização.

Diz Hélder Macedo: "Estava-se a começar, no tempo de D. João III, a tentar uma nova política colonial em relação ao Brasil, mas isso exigia escravatura; não falo apenas do aspecto moral da escravatura, mas também dos recursos de apanhar escravos, porque os amerindios não trabalhavam,  estava-se numa fase de grande crise” 

“«Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade, a quem chamamos Fama! / Ó fraudulento gosto, que se atiça / Cûa aura popular, que honra de chama /…” Canto IV, Est. 95 – pp188

No momento de partida de Vasco da Gama de Lisboa, Camões introduz a personagem do Velho do Restelo.

“A que novos desastres determinas / De levar estes Reinos a esta gente? / Que perigos, que mortes lhes destinas, / Debaixo dalgum nome preminente / …” Canto IV, Est. 98 – pp 189.

O Velho do Restelo é uma figura que entrou para o imaginário popular, ainda hoje simboliza o conservadorismo, a incapacidade de arriscar, o medo de inovar. Mas não será ele afinal a voz do realismo inevitável? 

Diz João Carlos Seabra Pereira: “O Velho do Restelo é representativo de uma corrente de opinião, com certeza forte, em Portugal, céptica em relação às capacidades do Estado português em termos de recursos, que não são muitos, não só monetários, mas também humanos, para poder continuar, não só a expandir-se mais, mas até a sustentar o que era já um enorme encargo do Império"

Deixas criar às portas o inimigo / Por ires buscar outro tão longe, / Por quem se despovoe o Reino antigo, / Se enfraqueça e se vá deitando a longe! /…” Canto IV, Est. 101 – pp 190 

A despedida dos marinheiros é um momento de mágoa e aflição. Vão deixar as mães, as esposas, os filhos. As palavras do Velho acrescentam um tom de perversa emotividade. Em nome do quê arriscam aqueles homens as suas vidas? 

Diz João Garcia, alpinista: “Hoje em dia temos essa noção que partiam sem grande rumo, com uma fé desmesurada, de quem vai subir uma montanha, mas não sabe sequer se lá conseguem chegar. Talvez as minhas primeiras montanhas tenham sido assim, não sabia, queria saber, vim a saber.

O projecto inicial, eufórico, do poema épico de Camões ganha aos poucos contornos sombrios. As palavras do Velho do Restelo reflectem a opinião do poeta? O que sucedeu a Camões para mudar o seu ímpeto original?

Diz João Carlos Seabra Pereira: “A elaboração do poema demorou bastante tempo, ele ter-se-á situado, grosso modo, entre 1555 e 1570, se não mais tempo, e que, provavelmente, ao longo dessa elaboração, com esse decurso do tempo, o próprio poeta, Luís de Camões, foi sofrendo uma evolução nessa sua relação com o Mundo e, em particular, nessa sua visão do destino dos portugueses

Terminada a sua narrativa, Vasco da Gama também retoma a viagem. O Rei de Melinde cede-lhe um piloto que conhece bem a rota da Índia. O destino de Gama está próximo. Mas antes do alcançar, terá de enfrentar uma última e definitiva tempestade. Baco convocara os deuses do céu e do mar para sepultar nas águas os portugueses.

Agora sobre as nuvens os subiam / As ondas de Neptuno furibundo; / Agora a ver parece que deciam / As íntimas entranhas do Profundo. /…” Canto VI, Est. 76 – pp 238.

Vénus intervém de novo, as suas ninfas seduzem e acalmam os ventos furiosos. O caminho de Gama está livre e a armada em breve vê recompensado o esforço da longa viagem. Chegam por fim à cidade de Calecute na Costa Ocidental da Índia.

…Entrando o mensageiro pelo rio / Que ali nas ondas entra, a não vista arte, / A cor, o gesto estranho, o trajo novo, / Fez concorrer a vê-lo todo o povo.” Canto VII, Estrofe 23.

Diz Hélder Macedo: “Camões estava muito atento à diferença, àquilo que é diferente, daquilo que somos ou que julgamos que somos”.

Um dos principais traços de personalidade de Vasco da Gama é a sua hábil diplomacia. É portador de um humanismo discreto, que lhe permitiu ler as diferenças quando encontra o outro, o desconhecido. A expansão portuguesa marca o início do mundo moderno, do mundo globalizado. E Gama sintetiza uma vocação natural dos portugueses para o encontro de Culturas. 

Diz Hélder Macedo: “Camões foi possivelmente (é sem dúvida) o primeiro grande poeta, o primeiro escritor europeu, não apenas português, que teve conhecimento directo de outras Culturas, de outras Raças, e que esse conhecimento se manifesta na sua poesia"

É claro que não foi o encontro de Culturas a motivar a expansão marítima. Foi, como é óbvio, uma estratégia económica, a procura de novas rotas comerciais e o acesso a produtos e matérias primas. Esse projecto, no entanto, pôs em marcha o fenómeno que hoje chamamos globalização. Os portugueses foram os primeiros a colocarem em contacto directo os extremos do Planeta e misturá-los de forma expontânea. A suposta aptidão dos portugueses para conhecer e acolher outras Culturas é um mito que prevalece até hoje. É o mito do luso-tropicalismo, que é a nossa disposição inata para aceitar o que é diferente. Mas o processo de construção de uma identidade envolve sempre a produção de uma diferença grosseira e para forjar uma identidade colectiva do povo português, o peito ilustre lusitano, Camões precisa de um inimigo. Nos Lusíadas quem cumpre esse papel são os muçulmanos, recentemente expulsos da Península Ibérica. Apelida-os de «maligna gente serracena», canto IX, est. 6, ou, ainda, «o povo imundo», canto VII, est. 2. 

Os Mouros são os principais aliados de Baco, o grande obstáculo ao império português e à expansão cristã. A construção histórica do muçulmano, como símbolo do mal, da barbárie, e do atraso civilizacional, tem afinal raízes profundas. Camões celebra a diferença mas estabelece ainda assim diferenças identitárias bem definidas. Bem chegado, Vasco da Gama é recebido pelo catual em Calecute. Oferece-lhe a amizade do Rei de Portugal e propõe um pacto de comércio. Tudo parece encaminhar-se para um desfecho pacífico, mas novas intrigas de Baco criam desconfianças sobre os portugueses. Vasco da Gama é retido como prisioneiro. Consegue comprar a liberdade e sabe de uma frota que vem de Meca para destruir as naus portuguesas. Gama dá a missão por concluída e inicia a viagem de regresso. E então que Vénus decide premiá-los pelo esforço e conduz os portugueses à Ilha dos Amores.

“Nesta frescura tal desembarcavam / Já das naus os segundos Argonautas, / Onde pela floresta se deixavam / Andar as belas Deusas, como incautas. / …” Canto IX, est. 64 - pp 309.

Diz Pedro Freitas, sexologista clínico: “No episódio da Ilha dos Amores as mulheres têm um papel submisso, um papel passivo, não esqueçamos que o autor era homem, a epopeia marítima dá-se apenas com homens, Vasco da Gama e todos os seus marinheiros e logicamente toda ela é muito masculina, muito numa visão masculina”

“Algûas, que na forma descoberta / Do belo corpo estavam confiadas / Posta a artificiosa fermosura,/ …” Canto IX, Est. 65 – pp 309.

Diz Pedro Freitas: “Nós sabemos que a sexualidade masculina é muito visual, ao contrário da feminina, portanto, logicamente, existe um recurso a muitos atributos visuais, que são muito importantes para a primeira fase do ciclo sexual humano e, neste caso, o masculino tem a ver com a excitação”

“De hûa os cabelos de ouro o vento leva, / Correndo, e de outra as fraldas delicadas; / Acende-se o desejo, que se ceva / Nas alvas carnes, súbito mostradas. /…” Canto IX, est. 71 – pp 310.

A Ilha dos Amores é a celebração de uma sexualidade plena, feliz e assumida, o oposto da Moral reprimida da época. Mas esta não é uma pura visão hedonista do Mundo. O seu valor maior reside na alegoria do amor, como motor do conhecimento, da acção e do destino dos homens na Terra. Para Camões, o amor é a única força capaz de devolver ao mundo a harmonia perdida. Representa o mais alto grau de perfeição que a imperfeita condição humana pode aspirar.

Em 1553, Camões está em Goa. Durante 3 anos, terá prestado serviço militar como escudeiro em diversas expedições. Depois, leva uma existência errática, miserável, não tem dinheiro, a sua personalidade explosiva, orgulhosa, arrogante até, dificulta o acesso à classe aristocrática, àqueles que lhe podem dar um trabalho digno da sua condição, da sua inteligência. Ou será que é vítima da má fé e da conspiração dos poderosos locais? Impossível sabê-lo. 

Diz Hélder Macedo: “Camões é um homem que se queixa amargamente da injustiça de que foi vítima, muitas das injustiças foram causadas por actos dele, ele era tudo menos um cidadão bem comportado, era um malandrão de toda a espécie

Terá sido nestes anos que iniciou a escrita d´Os Lusíadas. Conta-se que está a maior parte do tempo desempregado. Em 1563, é nomeado Provedor dos Defuntos para Macau pelo vice-rei Francisco Coutinho. É o único cargo oficial que lhe conhecemos. Provedor dos Defuntos. E, de certo modo, é a continuidade do seu ofício lírico, de prover á imortalidade daqueles que deram a vida para a construção do império. 3 anos depois, no regresso de Macau, Camões naufraga ao largo da foz do Rio Mekong, É o momento que define para sempre o seu ícone, Camões, entre as ondas, nadando para salvar a vida e o manuscrito d´Os Lusíadas. Impotente, no entanto, para salvar a sua amada chinesa Dinamene.

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste / Quem não deixara nunca de querer-te! / Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te, / Tão asinha esta vida desprezaste!

É o grande episódio trágico da biografia de Camões. Mas, aconteceu realmente? Ou pertence à categoria dos mitos? Este é um dos enigmas que mais divide os especialistas.

Voltamos a encontrar Camões pela referência do amigo Diogo do Couto, em Moçambique. De novo, preso por dívidas, na penúria, vivendo da caridade dos amigos, sempre, conta Diogo do Couto, trabalhando nas suas Lusíadas. 

….Mas, ó cego, / Eu, que cometo, insano e temerário, / Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, / Por caminho tão árduo, longo e vário! / Vosso favor invoco, que navego / Por alto mar, com vento tão contrário” ) Que, se não me ajudais, hei grande medo / Que o meu fraco batel se alague cedo.” Canto VII, Est. 78 – pp 204.

Diogo do Couto e outros amigos de Camões decidem pagar-lhe a viagem de regresso ao reino.

Lisboa, 1570, Camões também é outro no regresso a Portugal. Encontra um país que não conhece, um país dominado pela instabilidade política e pela intriga palaciana.

O que acontecera nos 17 anos que estivera ausente? 

D. João III morre em 1557. O herdeiro natural da coroa é o neto D. Sebastião que tem apenas 3 anos e meio. O Cardeal D. Henrique, tio-avô da criança, reclama a Regência. Mas é D. Catarina, avó e rainha viúva, quem acaba por assumir o cargo. Em 1567, o Cardeal consegue afastá-la e assumir o poder. Por pouco tempo. D. Catarina manobra para que D. Sebastião, aos 14 anos, seja declarado maior e suba ao trono. D. Sebastião é apenas um adolescente. Educado pelos jesuítas, cedo revela ser um monarca insensato. Dispensa do Governo os velhos conselheiros e rodeia-se de jovens fidalgos que lhe satisfaçam os caprichos. Religioso devoto, sonha com a glória e os feitos de armas. Foge do amor e das mulheres. Em vão, o tentam casar. Sabem que é o último descendente vivo na linha de sucessão da coroa. Tudo concorre para que o desastre se precipite. É este ambiente político tenso, confuso e incerto, que Luís de Camões encontra no seu regresso a lisboa. É aqui que terminará de escrever Os Lusíadas.

Diz José Hermano Saraiva: “Ele nunca teve dúvidas nenhumas, era enorme, mas o país está metido realmente no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza

Camões dedica o épico a D. Sebastião, tenro e novo ramo florescente da nação, mas deixa ao longo do poema sérias advertências ao jovem rei.

“Por isso vós, ó Rei, que por divino / Conselho estais no régio sólio posto, / Olhai que sois (e vede as outras gentes) / Senhor só de vassalos excelentes.” Canto X, est. 146 - pp 353.

Diz Hélder Macedo: “Ele apresenta-se, de algum modo, como o herói que regressou da Índia para dizer aos portugueses, que estão na Europa, as verdades necessárias para eles aprenderem com a experiência do Império” 

“Dando os corpos a fome e vigias, / A ferro, a fogo, a setas e pilouros, / A quentes regiões, a plagas frias, / A golpes de Idolatras e de Mouros, / A perigos incógnitos do mundo, / A naufrágios, a pexes, ao profundo!” Canto X, est. 147 - pp 353.

Diz João Carlos Seabra Pereira: “O que Camões conhecia, até pela sua vida, conhecia os sinais iniludíveis de que o poderio português e, sobretudo, do Império Português, dava sinais claros de crise, de dificuldades, de ameaça, de colapso até

Tomai conselho só d´experimentados, / Que viram largos anos, largos meses, / Que, posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o experto sabe.” Canto X, est. 152 – pp 355.

Em Lisboa, Camões prepara a publicação da sua obra. Consegue o Alvará do Rei. Falta-lhe apenas passar pelo crivo da Inquisição. A epopeia está repleta de passagens supostamente sacrílegas. A Ilha dos Amores é apenas uma delas. Mas o censor do Santo Ofício não lhe encontra defeito. Até elogia a obra. Escreve o seguinte:

«Vi por mandado da Santa e Geral Inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa, e não achei neles cousa algũa escandalosa, nem contraria à fé e aos bons costumes; somente me pareceu que era necessário advertir os lectores que o Autor, pêra esclarecer a dificuldade da navegação e entrada dos Portugueses na Índia, usa de ua ficção dos Deuses dos Gentios. E ainda que Sancto Agostinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos livros que compôs De Ordine às Musas “Deusas”, todavia, como isto é Poesia e fingimento, e o Autor como poeta não pretenda mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos Deuses na obra, conhecendo-a por tal e ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé que todos os Deuses dos gentios são demónios. E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir, e o Autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas. Em fé do qual assinei aqui.
Frei Bertholameu Ferreira»

A obra tem um óbvio valor literário, ideológico, como épico nacional. Mas há, talvez, outros interesses políticos por trás da sua publicação.

Os dois irmãos Câmara, influentes conselheiros do Rei, governam, como déspotas, à rédea solta. D. Sebastião entrega-lhes a maior parte dos assuntos do Estado. Ninguém se atreve a contestá-los, mas são odiados por muitos. Pensa-se que Camões lhes tece várias críticas ferozes.

A primeira vez, ao falar da Ilha da Madeira (aqueles irmãos Câmara eram da Madeira), em que diz "Mais célebre por nome que por fama"  Canto V, est. 5, verso 4 - pp 194

A segunda, quando diz: "Nenhum que use de seu poder bastante/…/ Quem, com hábito honesto e grave, veio / Por contentar o Rei, no ofício novo, / A despir e roubar o pobre povo"  Canto VII, Est. 85 - pp 266.

A terceira, quando diz “Oh, Quanto deve o Rei que bem governa / De olhar que os conselheiros ou privados, / De consciência e de virtude interna / E de sincero amor sejam dotados!” Canto VIII, est. 54 – pp 280.

O Cardeal D. Henrique é adversário politico dos Câmara e é também o Inquisidor Geral do Reino. Poderá ter sido ele a intervir directamente para aprovar a publicação da obra de Camões? 

Diz José Hermano Saraiva: “O que é extraordinário. Como é que o Santo Ofício elogia um livro daqueles, cheio de alusões e até de pornografia, porque o Canto IX, com a Ilha dos Amores, é uma coisa de intensa sensualidade, que Inquisição nunca deixaria publicar, mas ali realmente fizeram o frete ao Cardeal. E o livro saiu.

A obra teve certamente algum impacto quando foi publicada. Em 1580, apenas 8 anos depois, já circulavam em Espanha 2 traduções integrais d´Os Lusíadas. Milagrosamente, livres também da Censura Eclesiástica. No plano literário, os deuses parecem favorecer o poeta. A recepção em Espanha foi estrondosa e Camões teve grande influência na literatura castelhana. É bem conhecida a referência de Miguel Cervantes ao famoso Camões no seu D. Quixote de la Mancha.

E em Portugal? Bom, é preciso compreender que o maior sucesso editorial do sec. XVI é uma obra do Frei Heitor Pinto chamada “Imagem da Vida Cristã”. É um guia prático para a condição humana e determina que a perfeição está ao alcance de quem deixa as coisas humanas pelas divinas e se entrega a Deus em holocausto e perpétuo sacrifício. Estamos muito longe da Ilha dos Amores. 

Camões está porém muito próximo do ideal cristão de entrega a esse perpétuo sacrifício. Nos últimos anos de vida está fisicamente debilitado e outra vez em apertos financeiros. O rei atribui-lhe uma pensão de 15.000 réis.

José Hermano Saraiva: “A pensão que ele recebeu não tem nada a ver com a obra literária. É uma pensão pelo serviço militar»

João de Barros, por exemplo, recebia uma pensão anual de 200.000 réis. O valor pago a Camões era metade de um salário de um pedreiro ou de um carpinteiro. 

Diz José Hermano Saraiva: “Mas ele, nos últimos anos de vida, não passou fome, porque ele era profissionalmente um autor de versos. Ele fez versos para muita gente, conhecemos pelas anedotas: o Duque de Aveiro, o Senhor de Cascais, era gente que lhe pagava, em géneros, versos que ele fazia por encomenda»

Ao mesmo tempo, Portugal vive a pior crise da sua História. Em 1578, D. Sebastião morre vítima da sua insensatez na batalha de Álcácer Quibir. Não tem descendentes. O Cardeal D. Henrique assumiu mais uma vez o trono mas é velho e não tem descendência.

É apenas uma questão de tempo até que a coroa passe para as mãos do legítimo herdeiro, Filipe II de Castela. Em 1580, na morte do cardeal, a unificação dos tronos da Península cumpre enfim um velho sonho de Castela e de alguns portugueses. Luís Vaz de Camões morre a 10 de Julho do mesmo ano. “Morro com a Pátria” é a frase mítica que lhe é atribuída. Não há muitos dados sobre a sua morte, mas alguns historiadores afirmam que o seu corpo terá sido lançado em vala comum e que é impossível saber se os despojos do seu túmulo oficial são realmente os seus.

O poeta não chegou a assistir à chegada a Lisboa de Filipe II, já Filipe I de Portugal. Consta, no entanto, que este terá perguntado por Camões, o Príncipe dos Poetas. Sabe então que morreu e mostra sincero lamento.

…/A troco dos descansos que esperava, / Das capelas de louro que me honrassem, / Trabalhos nunca usados me inventaram, / Com que em tão duro estado me deitaram!” Canto VII, est. 81- pp 265.

Diz Hélder Macedo: “Camões não foi um homem feliz, no sentido convencional ou no sentido burguês do termo. Foi uma alma torturada, sem dúvida nenhuma”

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Podemos dizer que Camões é já um poeta do desconserto do Mundo e que se considera ele próprio uma vítima, uma vítima principal desse desconserto do Mundo"

Diz Katia Guerreiro: “Talvez os poetas portugueses tenham uma maior apetência para transpor para o papel aquilo que nós identificamos muito como sendo o “modus vivendi” dos portugueses, que é sempre um pouco mais nostálgico e intimista, um pouco mais saudosista do que é habitual noutros povos ou noutra poesia mundial, a nível mundial»

Katia Guerreiro canta: «Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha / Perdigão que o pensamento / Subiu a um alto lugar, / Perde a pena do voar / Ganha a pena do tormento./ Não tem no ar nem no vento / Asas com que se sustenha: /Não há mal que lhe não venha / Perdigão perdeu a pena»

A maior herança de Camões foi a modernização da Língua Portuguesa, agora capaz de rivalizar, na forma e no conteúdo, com os grandes idiomas do Mundo. Ao mesmo tempo, resgatou para si próprio a imortalidade que propôs inicialmente para Vasco da Gama e para o povo português. Os Lusíadas são, na própria génese, um projecto colossal. As condições em que Camões escreveu a obra são por si só uma epopeia literária sem equivalente. Não é apenas uma Bíblia da Pátria.

Diz João Carlos Seabra Pereira: “Os Lusíadas não são apenas um exercício de historiografia em verso, são muito mais do que isso

Diz José Hermano Saraiva: “Camões consegue fazer um percurso literário extraordinário. Ele vem do sec. XV e vai até ao XVII, na forma. De facto ele era um génio

Diz Moacyr Scliar (escritor brasileiro): «A minha geração tinha, quase sempre, contado com Camões na Escola. Começava (o estudo de Camões) muito cedo e inevitavelmente nós eramos apresentados aos Lusíadas que era um poema que causava uma profunda impressão, ainda que nós tivéssemos, como crianças, dificuldades com o vocabulário. Mas aquele ritmo, a força das palavras, produziu um verdadeiro encantamento e também esse apelo, essa evocação do espírito aventureiro dos portugueses, para nós teve um efeito emocional muito grande. E, então, era hábito nas escolas da minha cidade onde estudei – Porto Alegre – apresentar muito precocemente Os Lusíadas de Camões aos estudantes»

Diz Paulina Chiziane, escritora moçambicana: “quando nós falamos da língua portuguesa, muitas vezes apelidamos da Língua de Camões. Todo o mundo sabe o que é a Língua de Camões. E os jovens, sobretudo, ainda hoje, gostam dos poemas de Camões, sobretudo quando se fala de amor. Quando eles querem começar a escrever as primeiras cartinhas, enfim, aqueles primeiros ensaios de paixão, Luís de Camões é um grande recurso, é verdade

Diz Zhang Weimin, tradutor d´Os Lusíadas para Chinês, (lê em mandarim?): “As armas e os barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana / Por mares nunca dantes navegados / Passaram ainda além da Taprobana / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram;//…” Canto I, est. 1 - pp 71.

Os Lusíadas permanece, afinal, no topo das nossas criações artísticas, ultrapassa em larga medida os limites da própria Literatura.

“Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo / De vós não conhecido nem sonhado? / Da boca dos pequenos sei, contudo, / Que o louvor sai às vezes acabado./…" Canto X, est. 154 – pp 355

Os Lusíadas│ Ed. Porto Editora