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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Desamparado na noite

Não sei como vieste, mas estás aí: na concertina, à noite, nas pedras do adro mesmo ao lado da casa antiga. Deixa-te estar assim.


Canto Rouco

Antes que perca a memória
das pedras do adro,
antes do corpo ser
um só e quebrado
ramo sem água,
devolvei-me o canto
rouco
e desamparado
do harmónio na noite.

Mãe!, desamparado na noite.


Eugénio de Andrade, in “Coração do Dia”

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

No limite da minha infância

«Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa da minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e de minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve choro pela noite adiante – tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me ter vibrado pela vida fora esse choro que não lembro».

(Vergílio Ferreira Fotobiografia, Org. de Helder Godinho e Serafim Ferreira: 118)

domingo, 27 de dezembro de 2015

Que mãos vos colhem agora?

Entre Março e Abril

Que cheiro doce e fresco,
por entre a chuva,
me traz o sol,
me traz o rosto,
entre março e abril,
o rosto que foi meu,
o único
que foi afago e festa e primavera?

Oh cheiro puro e só da terra!
Não das mimosas,
que já tinham florido
no meio dos pinheiros;
não dos lilases,
pois era cedo ainda
para mostrarem
o coração às rosas;
mas das tímidas, dóceis flores
de cor difícil,
entre limão e vinho,
entre marfim e mel,
abertas no canteiro junto ao tanque.

Frésias,
ó pura memória
e ter cantado —
pálida, fragrantes,
entre chuva e sol
e chuva
— que mãos vos colhem,
agora que estão mortas
as mãos que foram minhas?

Eugénio de Andrade, in “Coração do Dia

sábado, 26 de dezembro de 2015

O milagre da vida

"À escala do cosmo, a espécie humana, surgida por um acaso infinitesimal, durará um breve momento. E dentro dele cada um de nós não chega quase a existir. E no entanto, é por esse instante de impensável brevidade de duração, que é o nosso dever mobilizar todo o esforço de uma intensa atenção para que o melhor do universo não se destrua. Porque nesse mínimo está o máximo concebível da grandeza e do milagre. A vida. Tão pouco e tão tanto."

Vergílio Ferreira,  in "Espaço do Invisível 5"

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Fome da Tua Luz


Vive o Teu Nome no meu nome
Eu sou David mas de Jesus
Daí a sede mais a fome
Da Tua Luz.

Vive o Teu Nome no meu nome
Não é por acaso ó meu Jesus
É no que a todos mais escondo
Que vives Tu.

David Mourão-Ferreira, “Confissão de Natal”, 1985

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Natal!


Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei !

Fernando Pessoa

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Morrer é só não ser visto


A morte é a curva da estrada,

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

Fernando Pessoa

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Lágrima, apenas

Lágrima

Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

Eugénio de Andrade, in “Coração do Dia”

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Palavras cruzadas com história - Ruy Belo

"Quero só isso nem isso quero" é o título de um poema do poeta português Ruy Belo, conforme pedido com a resolução do passatempo do mês de Dezembro. É este o poema, é tempo de o revisitar com ternura:

Quero só isso nem isso quero

Quero uma mesa e pão sobre essa mesa
na toalha de linho nódoas de vinho
quero só isso nem isso quero

Quero a casa de terra à minha volta
cães altos na noite a minha mãe mais nova
quero só isso nem isso quero

Quero a casa do forno onde eu me escondia dos relâmpagos
e trovões quando um ferro no cesto garantia uma feliz cria à galinha chocadeira
quero só isso nem isso quero

Quero de novo fundir ao lume os soldados de chumbo que no natal me punham no
[sapatinho
e tirar chouriço e toucinho do guarda-comidas
quero só isso nem isso quero

Quero fazer pequeninos adobes e construir casas pelo quintal
ver chegar o verão e comermos todos lá fora na varanda de tijolo
quero só isso nem isso quero

Quero uma aldeia umas pedras um rio
umas quantas mulheres de joelhos brancos esfregando a roupa nas pedras
quero só isso nem isso quero

Quero escrever fatais cartas de amor à rapariga dos meus oito anos
rasgar essas cartas deixá-las pra sempre dentro do tronco oco da oliveira
quero só isso nem isso quero



Quero umas cabras um pastor rico um pastor pobre
o leite quente na teta o cabrito morto soprado e esfolado
quero só isso nem isso quero

Quero a courela as perdizes no ovo a baba do cuco
laranjas de orvalho no ano novo colhidas na árvore
quero só isso nem isso quero

Quero dois montes e um paul de malmequeres a cheia na primavera
a asma o ruído dos ralos as pernas sombrias das raparigas
quero só isso nem isso quero

Quero os espargos os pinheiros bravos o primeiro pôr-do-sol
as noites de baile no carnaval as bandeiras da safra
quero só isso nem isso quero


Quero que voltem os que morreram os que emigraram
matar com eles o bicho com aguardente pela manhã antes da pega
quero só isso nem isso quero


Quero ver ao vento o véu das noivas apanhar os confeitos nos casamentos
saber pelos papéis dos registos o tempo da prenhez palavra misteriosa
quero só isso nem isso quero

Quero um páteo meu e da sombra e galinhas pedreses e árvores
uma mina de avencas uma horta uma sebe de cana umas casas caídas
quero só isso nem isso quero

Quero uma enxada uma gadanha calos nas mãos cuspo nos calos
a cava mais funda da vinha o capataz a fazer o vinho correr
quero só isso nem isso quero

Quero ajudar na rega do fim da tarde calcar os buracos das toupeiras
e dirigir com o sacho a água morna nos pés até aos regos do feijão
quero só isso nem isso quero

Quero em dezembro o varejo final da azeitona o búzio a tocar
a azeitona a cair dos ramos nos panos de serapilheira
quero só isso nem isso quero

Quero o meu pai de chapéu de chuva aberto nos dias de sol
o meu pai de manhãzinha a lavar-se e a explicar-nos latim e história
quero só isso nem isso quero

Quero nu em pelota entre todos tomar os banhos no marachão
os ninhos dos pássaros as andorinhas de asas escuras no céu azul
quero só isso nem isso quero

Quero o pátio da escola a roda das raparigas a cantar à volta do plátano
o primeiro sonho de amor as primeiras palavras gaguejadas trocadas
[com uma rapariga
quero só isso nem isso quero


Quero as feridas nos pés para poder sair à rua descalço
o pão com conduto entre os meninos pobres no recreio
quero só isso nem isso quero

Quero ir ao vale barco a malaquejo à marmeleira
roubar melões jogar ao murro ver nas festas o fogo preso
quero só isso nem isso quero

Que quero tanto que quero um mundo ou nem tanto só agora reparo
quero morder para sempre a almofada quente e densa da terra
quero só isso nem isso quero

Ruy Belo



Eis a solução completa do problema:


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Respostas de: Aleme; Anjerod; António Amaro; Antoques; Arjacasa; Baby; Caba; Corsário; Fumega; Homotaganus; Horácio; Jani; João Carlos Rodrigues; João Rodrigues; Joaquim Pombo; José Bernardo; Mafirevi; Magno; Manuel Carrancha; Manuel Ramos; Mister Miguel; Olidino; Osair Kiesling; Ricardo Campos; Rui Gazela; Russo; Salete Saraiva; Virgílio Atalaya.

Obrigado a todos. Até breve! 

domingo, 20 de dezembro de 2015

Ao meu encontro

Coração do Dia

Olhas-me ainda, não sei se morta:
desprendida
de inumeráveis, melancólicos muros;
só lembrada
que fomos jovens e formosos,
alados e frescos e diurnos.

De que lado adormeces?
Alma: nada te dói?
Não te dói nada, eu sei;
agora o corpo é formosura
urgente de ser rio:
ao meu encontro voa.

Nada te fere, nada te ofende.
Numa paisagem de água,
tranquilamente,
estende os teus ramos
que só a brisa afaga.
A brisa e os meus dedos
fragrantes do teu rosto.

Mãe, já nada nos separa.
Na tua mão me levas,
uma vez mais,
o bosque onde me sento
à tua sombra.
- Como tu cresceste! -
suspiras.

Alma: como eu cresci.
E como tu és
agora
pequena, frágil, orvalhada.

Eugénio de Andrade, in “Coração do Dia”

sábado, 19 de dezembro de 2015

Sem ti

Sem ti

E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas mãos
ouço a música das tuas.

Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Um caminho para regressar da morte


Conheço este poema do poeta Eugénio de Andrade há muito tempo e li-o muitas vezes. E já então me emocionava muito. E pensava “um dia, só não sei quando, estarei em completa comunhão com o poeta...”. Só não esperava que fosse tão breve. O poema chama-se “Pequena Elegia de Setembro”. O poeta fala-nos da morte de sua mãe, figura nuclear da sua obra poética. A mãe está já morta, mas o poeta (e eu) vê-a ainda sentada no jardim….

Pequena elegia de setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade, in "Coração do Dia"

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

À memória do Armando


À memória do Armando, meu camarada de guerra

Quando um amigo parte, a língua entaramela-se-nos, as palavras fogem-nos. Já esperada, a notícia chegou, abruptamente, ao final da noite de ontem. Provavelmente já te encontrarás à vontade entre novos amigos, sem saudade dos últimos dois anos. Agora que começaste a última viagem, a única evidência é caminhar para o sol. Até breve!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo


Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo

Quando morre um poeta é fatal a ANOP
«sempre em cima do evento» debita o seu telegrama
tantos anos uma «obra ímpar» etc.
foi assim com o Ruy Belo mas o flash
pedia para se não dar a notícia o que me levou
à conclusão irresistível de que mais uma vez este
se entretinha a reinar aos cowboys
ó Ruy tu mascarado de Jesse James o vingador vingando
as malas-artes da retórica idiota
o que me levou à conclusão irresistível de que
esperaria mais pormenores para «confirmação da informação»
seguiram-se telefonemas de recurso a localizar em férias
o João Miguel Fernandes Jorge não estava
no Bombarral em casa dos pais não estava na Consolação
Lisboa: ele próprio atende e diz
que o Ruy Belo foi-se em Queluz de não entende o quê
asma ou parecido há o problema do funeral quando
mas certamente para a aldeia «João» e ele
responde baixo «sozinho» «tinha vindo tratar de uns papéis»
a porra da a triste da a caca da vida que levamos sacudida sobre os ombros
passa esse dia do telegrama da ANOP os jornais afinal noticiam
redijo setenta linhas que acompanho com uma chamada de primeira página em positivo sobre rede pensando muito na hipótese de um dia um colega meu sacar da máquina um telex ou ouvir ao bigophone olha o gajo marchou dá lá recados
e o chefe (o meu sucessor de carteira) breve a «duas colunas com foto» havendo apesar de tudo um certo cuidado porque era da «malta»
e tu que eras da malta não tive cuidado nenhum fui um coiro devia esmerar-me
devia mesmo esmerar-me

então agora ficamos sem o Ruy Belo

Francisco Assis Pacheco (1978), escrito reagindo à notícia da morte do poeta,

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Palavras cruzadas com história - Ruy Belo

Ruy Belo nasceu em 1933, em São João da Ribeira, Rio Maior, e morreu em 1978, na sua casa em Monte Abraão, concelho de Sintra, com apenas 55 anos. Foi poeta e ensaísta.

Apesar do curto período de actividade literária, Ruy Belo tornou-se um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes.

A sua obra, organizada em três volumes sob o título Obra Poética de Ruy Belo, em 1981, tendo sido, entretanto, alvo de revisitação crítica.

Em 1951, Ruy Belo entrou para a Universidade de Coimbra como aluno de Direito e tornou-se membro da Opus Dei. Concluiu o curso de Direito em Lisboa, em 1956, ano em que partiu para Roma, doutorando-se em Direito Canónico pela Universidade de S. Tomás de Aquino.

Regressado a Portugal, trabalhou no campo editorial e em 1961 entrou na Faculdade de Letras de Lisboa, recebendo uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para investigação. Abandonou a Opus Dei e foi leitor de Português em Madrid entre 1971 e 1977.

Exerceu, ainda que brevemente, um cargo de director-adjunto no então Ministério da Educação Nacional, mas o seu relacionamento com opositores ao regime da época, levaram a que as suas actividades fossem vigiadas e condicionadas. Foi-lhe recusada a possibilidade de leccionar na Faculdade de Letras de Lisboa, dando aulas na Escola Técnica do Cacém, no ensino nocturno. Uma experiência totalmente fracassada. 

Um dia, estando com a família na Praia da Consolação, leu um anúncio no jornal de uma vaga de Assistente na Faculdade. Veio sozinho a Lisboa para se candidatar e já não voltou. Foi em Agosto de 1978… 

Numa homenagem breve a este poeta, o desafio deste mês é, pois, resolver este passatempo de Palavras-Cruzadas e, no final, descobrir o título de um dos seus poemas (seis palavras na horizontal).


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 HORIZONTAIS: 1 – Grande quantidade; Desejo. 2 – Decote; Infantil. 3 – Madre; Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de compra. 4 – Apenas; Fedor; Essas coisas. 5 – Liga; Bem-feito. 6 – Domesticador de serpentes. 7 – Aldrabice [fig.]; Não. 8 – Exclamação que exprime aprovação; Torna balofo; Acusada. 9 – Únicos; Abalas. 10 – Suaves; Pertenciam. 11 – Equipar; Procuro. 

VERTICAIS: 1 – Culpa; Mania. 2 – Burla; Ter por costume [pouco usado]. 3 – Interjeição usada para saudar; Igualmente. 4 – Legará; Vantagem; Gálio [símbolo químico]. 5 – Ocidente; Semelhante. 6 – Lugar de refúgio. 7 – Quão; Esconde. 8União Europeia [sigla]; Passado; Vara. 9 – Diz-se do órgão vegetal com as bordas desiguais; Utilização Racional de Energia [sigla]. 10 – Cruzes; Não trabalhar. 11 – Designação de várias substâncias, líquidas à temperatura ambiente, gordurosas e inflamáveis, de origem vegetal, animal ou mineral [plural]; Semelhante.

Clique Aqui para imprimir.

Aceito respostas até dia 20 de Dezembro, por mensagem particular no Facebook ou para o meu endereço electrónico, boavida.joaquim@gmail.com. Em data posterior, apresentarei a solução, assim como os nomes dos participantes.

Vemo-nos por aqui, até breve!