Coração do Dia
Olhas-me ainda, não sei se morta:
desprendida
de inumeráveis, melancólicos muros;
só lembrada
que fomos jovens e formosos,
alados e frescos e diurnos.
De que lado adormeces?
Alma: nada te dói?
Não te dói nada, eu sei;
agora o corpo é formosura
urgente de ser rio:
ao meu encontro voa.
Nada te fere, nada te ofende.
Numa paisagem de água,
tranquilamente,
estende os teus ramos
que só a brisa afaga.
A brisa e os meus dedos
fragrantes do teu rosto.
Mãe, já nada nos separa.
Na tua mão me levas,
uma vez mais,
o bosque onde me sento
à tua sombra.
- Como tu cresceste! -
suspiras.
Alma: como eu cresci.
E como tu és
agora
pequena, frágil, orvalhada.
Eugénio de Andrade, in “Coração do Dia”
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