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quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um Encontro Improvável


Idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, donde procede. Parece o princípio de uma confissão, uma autobiografia, mas não. Estamos no dia 30 de Dezembro de 1935, no Hotel Bragança, em Lisboa. Fica na Rua do Alecrim, à direita de quem sobe. O quarto que lhe coube é o duzentos e um. O novo hóspede podia chamar-se Jacinto e ser dono de uma quinta em Tormes, mas não. Chama-se Ricardo Reis.


O quarto tem uma janela virada para o rio, o que deixou o hóspede agradado: «Mais vale estarmos sentados ao pé um do outro ouvindo correr o rio e vendo-o». Sobre a mesa estão alguns jornais e revistas já antigos. Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só a poesia mas também a crítica inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu. Não diz mais este jornal, outro diz de outra maneira. Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite. Aqui está outro jornal que pôs a notícia na página certa, a de necrologia, e extensamente identifica o falecido. Realizou-se ontem o funeral do senhor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, escritor e poeta muito conhecido no meio literário. A leitura dos jornais foi interrompida. Uma rajada súbita fez estremecer as vidraças, a chuva desabou como um dilúvio. Batem à porta do quarto.
A janela estava aberta e não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado - Disse Ricardo Reis - Agradecia pois que limpasse o soalho. Como se chama?
Lídia.
Lídia? Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Lídia sorri, faz o que tem a fazer e sai. Ricardo Reis vai sentar-se no sofá, recosta-se, fecha os olhos. Já sonolento levanta-se, abre o guarda-fato e retira um cobertor com que se cobre. Agora sim, dorme.


Ricardo Reis está encostado a um candeeiro na praça do Chiado. Enquanto espera o eléctrico 28, que o há-de levar aos Prazeres, pode observar, ao fundo, a estátua do Camões. Não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal, mas se um lhe pusessem qual poriam? Ricardo Reis vai agora no eléctrico. Entontece. Os bancos, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-no a regiões distantes. Sai do carro exausto e sonâmbulo. Deixara de chover. Ricardo Reis foi à administração do cemitério, ao registo dos defuntos, saber onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa, falecido no dia 30 de Novembro de 1935, enterrado no dia 2 do mês que corre. Ricardo Reis agradece as explicações do funcionário e vai à procura do jazigo nº 4371. A assinalar o título de propriedade está o nome de D. Dionísia de Seabra Pessoa. Está ainda outro nome, não mais, Fernando Pessoa, com datas de nascimento e morte. Dentro do jazigo está uma velha tresloucada e está também guardado o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo. Caiu uma bátega forte, o que foi um bom motivo para Ricardo Reis se retirar.


Depois do jantar, Ricardo Reis instalou-se na sala de recepção do hotel, especialmente preparada, naquele dia, para o révellion. Estamos no último dia do ano de 1935. Ricardo Reis não fica para a festa, sobe devagar a escada até ao seu quarto. Vai descansar, mas na rua perpassa uma algazarra medonha. Já deram as onze horas, quando, bruscamente, Ricardo Reis levanta-se e sai. Sobe a Rua do Alecrim, pára diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por respeito da ortografia que o dono do nome usou. Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia. Ou, sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade? Ricardo Reis sente-se confuso. Desce o Chiado e a Rua do Carmo. O Rossio está cheio de gente. Faltam 4 minutos para a meia-noite. Depois é a gritaria da multidão, as campainhas dos eléctricos, as buzinas dos automóveis, o barulho das sereias, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso. Mas, ainda não passou um minuto, e já o som vai decrescendo. Ainda há grupos no Rossio, mas a animação é cada vez menos. A Rua do Ouro, que agora desce, está juncada de detritos e ainda se lançam pela janela fora trapos, caixas vazias, ferro-velho… Ricardo Reis, cansado, regressa ao hotel.


Entra no hotel e segue o corredor que o leva ao seu quarto, que é o duzentos e um. É então que repara que por baixo da porta passa uma réstia de luz. Ter-se-á esquecido de alguma coisa? Meteu a chave à fechadura, abriu, há alguém no quarto. Será Lídia? Não, sentado no sofá estava um homem. Reconheceu-o, imediatamente, apesar de não o ver há já 16 anos. À sua espera, estava Fernando Pessoa.
Olá! - disse Ricardo Reis, ainda que duvidando de que ele lhe responderia.
Como nem sempre o absurdo respeita a lógica, acontece que respondeu mesmo.
Viva! - respondeu Fernando Pessoa, estendendo a mão e dando-lhe um abraço.
- Então como tem passado? Um deles fez a pergunta, ou ambos, não importando saber, tão insignificante é a frase.
Ricardo Reis despiu a gabardina, pousou o chapéu e arrumou cuidadosamente o guarda-chuva no lavatório, não fosse pingar o oleado do chão. Puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante. Olham-se com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois de longa ausência. É Fernando Pessoa quem primeiro fala.
Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei.
Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse - respondeu Ricardo Reis.
Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade - explicou Fernando Pessoa.
Oito meses porquê - perguntou Ricardo Reis.
Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio - esclareceu Fernando Pessoa.
-  E agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal - perguntou Fernando Pessoa.
Ricardo Reis tirou a carteira do bolso interior do casaco, extraiu dela um papel dobrado, fez menção de o entregar a Fernando Pessoa, mas este recusou com um gesto.
Já não sei ler, leia você - disse Fernando Pessoa.
E Ricardo Reis leu: «Fernando Pessoa faleceu Stop Parto para Glasgow Stop Álvaro de Campos».
Quando recebi este telegrama decidi regressar, senti que era uma espécie de dever - acrescentou Ricardo Reis.
-  Houve ainda uma outra razão para este meu regresso, essa mais egoísta, é que em Novembro rebentou no Brasil uma revolução, estava indeciso, parto, não parto, mas depois chegou o telegrama, aí decidi-me - disse ainda Ricardo Reis.
Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de outra que provavelmente falhou também - disse Fernando Pessoa.
Em rigor eu não fugi do Brasil e talvez que ainda lá estivesse se você não tem morrido - disse Ricardo Reis.
Você continua monárquico - sublinhou Fernando Pessoa.
Continuo. Sem rei. Pode-se ser monárquico e não querer um rei - confirmou Ricardo Reis.
Ricardo Reis puxou uma cadeira e sentou-se defronte do visitante e disparou:
Bem, Fernando, conte lá, se for capaz, a história do nascimento dos heterónimos.
Vou ver se consigo responder completamente – disse Fernando Pessoa, prosseguindo - Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, você, Ricardo Reis.
Então, quer dizer, fui o princípio de tudo? – interrompeu o Ricardo Reis.
Sim, se fica contente. Ano e meio, ou dois anos depois – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos.
Está bem, não precisa de contar mais – disse Ricardo Reis.
Fernando Pessoa levantou-se do sofá, passeou um pouco pela saleta, no quarto parou diante do espelho, depois voltou. Tomou a sentar-se, cruzou a perna.
E agora, vai ficar para sempre em Portugal, ou regressa a casa? - perguntou Fernando Pessoa.
-  Ainda não sei, apenas trouxe o indispensável, pode ser que me resolva a ficar, abrir consultório, fazer clientela, também pode acontecer que regresse ao Rio - retorquiu Ricardo Reis.
Nenhum vivo pode substituir um morto - sentenciou Fernando Pessoa.
Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto - concordou Ricardo Reis.
Bem dito, com essa faria você uma daquelas odes - observou, muito a propósito, Fernando Pessoa.
Ambos sorriram.
Diga-me como soube que eu estava hospedado neste hotel - perguntou Ricardo Reis.
Quando se está morto, sabe-se tudo, é uma das vantagens.
E entrar, como foi que entrou no meu quarto?
Como qualquer outra pessoa entraria.
Não veio pelos ares, não atravessou as paredes. Que absurda ideia, meu caro, isso só acontece nos livros de fantasma - contrapôs Ricardo Reis.
Os mortos servem-se dos caminhos dos vivos, aliás nem há outros, vim por aí fora desde os Prazeres como qualquer mortal. Subi a escada, abri aquela porta, sentei me neste sofá à sua espera - explicou Fernando Pessoa.
E ninguém deu pela entrada de um desconhecido, sim, que você aqui é um desconhecido - ironizou Ricardo Reis.
-  Essa é outra vantagem de estar morto, ninguém nos vê, querendo nós
- Disse Fernando Pessoa.
Mas eu vejo-o a si - logo contrapôs Ricardo Reis.
Porque eu quero que me veja, e, além disso, se reflectirmos bem, quem é você? - Perguntou, com grande ironia, Fernando Pessoa, não esperando, obviamente, a resposta.
Ricardo Reis não respondeu. Houve um silêncio arrastado, espesso. Ouviu-se como em outro mundo o relógio do patamar, duas horas. Fernando Pessoa levantou-se.
Vou-me chegando.
Já? - interrogou-se Ricardo Reis.
Bem, não julgue que tenho horas marcadas, sou livre, é verdade que a minha avó está lá, mas deixou de me maçar - disse Fernando Pessoa.
Fique um pouco mais - implorou Ricardo Reis.
Está a fazer-se tarde, você precisa de descansar - ripostou Fernando Pessoa.
Quando volta?
Quer que eu volte? - pergunta Fernando Pessoa.
Gostaria muito, podíamos conversar, restaurar a nossa amizade, não se esqueça de que, passados dezasseis anos, sou novo na terra - quase implorou Ricardo Reis.
Mas olhe que só vamos poder estar juntos oito meses, depois acabou-se, não terei mais tempo. Quando puder, aparecerei - respondeu Fernando Pessoa.
Não quer marcar um dia, hora, local? - insistiu Ricardo Reis.
Tudo menos isso, Então até breve - retorquiu Fernando Pessoa.
Fernando, gostei de o ver.
E eu a si, Ricardo.
Fernando Pessoa abriu a porta do quarto, saiu para o corredor. Não se ouviram os seus passos. Ricardo Reis foi à janela. Pela Rua do Alecrim acima afastava-se Fernando Pessoa.

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